José Gabriel da Costa:

Trajetória de um brasileiro, Mestre e Autor da União do Vegetal

Sérgio Brissac

1. Introdução

Este texto visa traçar a trajetória de José Gabriel da Costa, fundador da União do Vegetal, e relacioná-la com aspectos da especificidade cultural brasileira. Acompanhando o percurso de sua vida, é possível tecer uma ampla rede de relações com diversas configurações culturais presentes na sociedade brasileira. Este texto restringir-se-á a uma breve exposição dessa trajetória, através do recurso às poucas fontes de informação disponíveis, limitando-se a apontar somente algumas possíveis linhas de investigação, a serem desenvolvidas oportunamente[1].

Em 22 de julho de 1961, José Gabriel da Costa, chamado por seus discípulos de Mestre Gabriel, fundou a União do Vegetal, a UDV, na Amazônia, em região próxima à fronteira entre o Brasil e a Bolívia. . Como centro da atividade religiosa do grupo está a ingestão da Hoasca ou Vegetal, chá obtido a partir de duas plantas, um cipó denominado mariri, Banisteriopsis caapi, e um arbusto chamado chacrona, Psychotria viridis. No ano de 1965, José Gabriel da Costa mudou-se para Porto Velho, onde consolidou a União recém-fundada. Em 1967, após incidentes de perseguição policial ao grupo em Porto Velho, é encaminhada a constituição de uma entidade civil, primeiramente denominada Sociedade Beneficente União do Vegetal, adotando depois o nome definitivo de Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Ainda em vida de Mestre Gabriel, foi fundado o núcleo de Manaus e em 1972, um ano após seu falecimento, já se inaugurou o núcleo de São Paulo. Em 1998, havia em torno de 70 núcleos espalhados por todo o Brasil, totalizando aproximadamente 7 mil sócios.

2. José, o menino de Coração de Maria

No dia 10 de fevereiro de 1922, na localidade de Coração de Maria, próxima a Feira de Santana, Bahia, nasce José Gabriel da Costa. Filho de Manuel Gabriel da Costa e Prima Feliciana da Costa, José nasce em uma numerosa família de treze irmãos: João, Dionísio, Otacílio, Pedro, Romão, Maria, “Miúda”, José Gabriel, “Sinhá”, Alfredo, Antônio, Maximiano, Hipólito[2]. No livro União do Vegetal: Hoasca; Fundamentos e Objetivos, o único texto editado para o grande público até o momento pela instituição, apenas três páginas tratam da vida do fundador da UDV. Assim, tivemos de buscar informações junto a parentes e outras pessoas que com ele conviveram, além de pesquisar no jornal Alto Falante, do Departamento de Memória e Documentação da UDV.

Segundo seus parentes, desde pequeno, José já se destacava como alguém especial. Contam que ainda criança, ele auxiliou uma mulher com dificuldades de parto. O bebê se encontrava mal posicionado e a parteira temia que morressem mãe e filho. José entra no quarto, manda todos saírem, tranca a porta e logo em seguida a destranca. Quando o menino abre a porta, simultaneamente nasce a criança.

Na década de 20, o menino José cresce em um meio rural fortemente marcado pelo catolicismo popular. Uma recordação que narram de sua infância é que o “garoto ia aos domingos à igreja de sua cidade e levava com ele um barbante. Durante a missa, amarrava as pessoas umas às outras, pelos passantes das roupas, sem que elas percebessem”[3]. Nas chamadas, hinos entoados durante o ritual da UDV, há referências constantes a Jesus e a vários santos católicos: a Virgem da Conceição, São João Batista, a Senhora Santana, São Cosmo e São Damião.

Aos 13 anos de idade, em 1935, José vai trabalhar em Salvador. Emprega-se em diversos estabelecimentos comerciais. Aos 18 anos, presta serviço militar voluntariamente na Polícia Militar da Bahia, chegando em poucos meses à patente de cabo de esquadra.  Segundo seu irmão Antônio, atualmente também mestre na UDV, José Gabriel “conheceu todas as religiões, conheceu os terreiros de Salvador, andou por todas as religiões procurando a realidade”[4].  Segundo outro mestre, José iniciou na “ciência espírita” com apenas 14 anos. Provavelmente, esta informação refere-se à participação de José em terreiros de candomblé, e não em centros kardecistas, com os quais entretanto ele também entrou em contato, só que posteriormente, ainda quando morava em Salvador.

Segundo o pesquisador Afrânio Patrocínio de Andrade, José Gabriel freqüentou sessões espíritas kardecistas na Bahia[5] . Foi, aliás, em Salvador que teve início o espiritismo kardecista no Brasil, no ano de 1865. Luís Olímpio Teles de Menezes fundou nesse ano o centro espírita Grupo Familiar do Espiritismo[6]. De acordo com Patrocínio de Andrade, certos temas recorrentes na União do Vegetal poderiam ter sido colhidos do espiritismo kardecista. Antes de mais nada, a visão reencarnacionista, um dos eixos fundamentais da visão de mundo da UDV. Assim como o lema “Luz, Paz e Amor”, denominado o “símbolo da União”, poderia provir dos temas espíritas da “luz interior”, da “paz de espírito” e do “amor ao próximo” (ou caridade). A própria ênfase na “União” é freqüente entre os espíritas no Brasil.[7]

3. O capoeirista

Segundo declarações de familiares, o jovem José foi considerado pelos prosadores populares um dos melhores da região. Como cantador repentista teve sucesso inclusive em Alagoas e Sergipe. Também se destacou na capoeira, chegando a ser considerado um dos melhores do Nordeste. O livro de Ruth Landes, A cidade das mulheres, nos auxilia a traçar um panorama dos ares soteropolitanos da década de 30, que José tantas vezes respirou. A autora é levada por Edison Carneiro para assistir uma capoeira. Ela descreve detalhadamente a seqüência do jogo, e em certo momento, observa: “silenciados os ecos do desafio, terminada a rodada, os dois homens andavam e corriam sem descanso em sentido contrário aos ponteiros do relógio, um atrás do outro, o campeão à frente com os braços levantados”[8]. É interessante notar que no ritual da UDV a circulação das pessoas no salão se faz também no sentido anti-horário, pois “este é o sentido da força”. Na capoeira, José cultiva uma série de habilidades postas em prática posteriormente, em suas experiências de incorporação nos toques de caboclo como Sultão das Matas. Do mesmo modo, tais habilidades também foram exercitadas como Mestre da UDV.

Evocadora desse ambiente capoeirista é a cantiga de domínio público gravada por Nara Leão, às vezes tocada em sessões da UDV:

“Minino, quem foi teu mestre?

Meu mestre foi Salomão.

A ele devo dinheiro,

saber e obrigação.

O segredo de São Cosme

quem sabe é São Damião, olê

Água de beber, camarada

água de beber, olê

Água de beber, camarada

faca de cortar, olê

Faca de cortar, camarada,

Ferro de engomar, olê

Ferro de engomar, camarada

Perna de brigar, olê

Perna de brigar, camarada.

Minino, quem foi teu mestre?”[9]

Parece estar relacionada à capoeiragem a decisão do jovem José de viajar da Bahia para o Norte. De acordo com relato de seu filho Carmiro da Costa, em 1943 José envolve-se num conflito. Um amigo seu, de nome Mário, tem o pé pisado por um policial. José Gabriel “compra a briga do Mário”. Este foge e os policiais seguram José. Num golpe de destreza, ele consegue se desvencilhar dos policiais. Segue para um navio, para onde tinha ido se refugiar o amigo Mário. Os dois se alistam no “Exército da Borracha” e rumam para o Norte no navio Pará, da frota do Lloyd Brasileiro. Chegando a Manaus, embarcam no navio Rio Mar, com destino a Porto Velho, onde chegam no dia 13 de setembro de 1943. Os dois vão juntos para o trabalho na seringa e fazem um “pacto de amigo”, de só se separarem pela morte. No seringal, José Gabriel cumpre até o fim esse pacto, cuidando de Mário, que adoece com leishmaniose. Chega a carregar Mário nas costas por vários quilômetros. Quando o doente morre, seu amigo sozinho o enterra na floresta.[10]  Tudo indica que Mário era companheiro de capoeira de José Gabriel.  No mundo da capoeiragem na época, a ética dos grupos sublinhava a importância da solidariedade e fidelidade entre os camaradas. E eram freqüentes os conflitos entre os grupos, com a polícia ou com indivíduos de outros segmentos da sociedade. Em dissertação acerca da capoeira no Rio de Janeiro de 1890 a 1937, Antonio Pires afirma que “as relações de conflito e solidariedade na capoeiragem estiveram permanentemente relacionadas com os conflitos mais gerais da sociedade”[11]. Parece que já se esboça nesse tempo a preocupação de José Gabriel com a “justiça”. Sua participação na capoeiragem em Salvador não conflita com seu engajamento profissional, primeiramente como comerciário e depois como enfermeiro. Como observa Antonio Pires quanto à capoeira no Rio, “a maioria dos capoeiras comprovaram manter vínculos com o ‘mundo do trabalho’, descaracterizando o estereótipo de vadios construído em relação a eles.”[12]

4. O seringueiro do Exército da Borracha

Chegando no Território de Guaporé, atual Estado de Rondônia, José Gabriel se insere num ambiente com uma configuração ecológica e sócio-cultural bem distinta da Cidade de Salvador. O extrativismo da borracha, depois de seu período de boom, entre 1890 e 1912, havia em seguida atravessado uma fase de declínio, devido à concorrência no mercado internacional da borracha extraída na Ásia. Com a Segunda Guerra Mundial, apresentou-se a necessidade de borracha para os exércitos Aliados. Com a assinatura de acordos com os Estados Unidos, o Governo Vargas iniciou uma ampla campanha de recrutamento de trabalhadores, principalmente nordestinos, para a extração gomífera no Norte. Foi criado o SEMTA, Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, que, somente no ano de 1943, encaminhou 13 mil pessoas, segundo dados oficiais[13].

No mesmo ano de 1943, José Gabriel integra essa massa de trabalhadores nordestinos que se lançam como “brabos” nos seringais amazônicos. “Brabo é gente que nunca cortou seringa, nunca andou na floresta. Sofremos muito, como brabo” - declara Pequenina, esposa de José Gabriel[14]. O sofrimento daqueles homens, submetidos a condições de vida e trabalho extremamente penosas, em um ambiente desconhecido, sem o auxílio governamental prometido pela propaganda oficial, ficou bem marcado na memória dos sobreviventes da “batalha da borracha”. A antropóloga Lúcia Arrais, que está elaborando sua tese de doutorado a respeito dos soldados da borracha, recolheu o seguinte depoimento, de um Sr. Chico, ex-soldado da borracha, que bem se assemelha ao da esposa de José Gabriel: “.... a casa dele era bem pequenininha num tinha onde a gente dormir. Dormimo no teto mermo. Carapanã! Carapanã, Lúcia! e agora, a comida? Tudo brabo, tudo... a gente já tinha deixado a Companhia [SEMTA] já... Aí fiquemo aí sofrendo.. fiquemo jogado que nem cachorro na beira do rio... [Qual?] era o Solimões acima de Tefé. Aí eu disse: ‘ombora pessoal! vamo meu povo!, bora cuidar!, bora se virar’.”[15] Arrais observa que aqueles que conseguiram sobreviver a condições tão adversas foram homens de significativa inteligência e iniciativa, que conseguiram adaptar seus esquemas de percepção e recursos cognitivos à nova realidade em que se encontravam: “Numa atitude de quem vive em estado de autodefesa permanente, o Sr. Chico diz: ‘ombora pessoal! bora se virar!’. E então escolhem uma linha de ação onde predomina a iniciativa e a coragem. Onde prevalece a concentração dos recursos da percepção, da memória e da atenção para dirigir esforços na  descoberta de meios capazes de resolver a questão.”[16] José Gabriel foi um desses homens de aguda inteligência e destreza, que não somente conseguiu sobreviver como chegou a ser considerado pelos seus companheiros como o “Tuxáua”, o seringueiro que coletava maior quantidade de seringa na região. Tais êxitos eram acompanhados de dureza e sofrimento, como quando José Gabriel   pisou em uma arraia, e teve de passar “um ano e dez meses sem poder andar, de muleta”.[17]

5. O ogã do terreiro de Chica Macaxeira

Depois de trabalhar um tempo no seringal, José Gabriel muda-se para Porto Velho, onde fica trabalhando como servidor público, enfermeiro no Hospital São José. Conhece, em 1946, Raimunda Ferreira, chamada Pequenina, com quem se casa no ano seguinte.  Em Porto Velho, “Seu” Gabriel atendia pessoas em sua casa, pois jogava búzios. Mais tarde, se torna Ogã e Pai do Terreiro de São Benedito, de Mãe Chica Macaxeira[18]. Esse terreiro foi citado por Nunes Pereira[19], que o visitou, possivelmente em meados da década de 60 ou no início dos anos 70. O pesquisador maranhense reconhece o terreiro de Porto Velho como sendo da tradição mina-jeje, oriundo da Casa das Minas. “Os toques, inegavelmente, tinham a rítmica que me era familiar não só da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão, como do Bogum de Mãe Valentina, em Salvador, Estado da Bahia.”[20]

É surpreendente descobrir que Nunes Pereira encontrou no Terreiro de Chica Macaxeira uma “inovação no ritual mina-jeje, o uso da ayahuasca. E isso, sem dúvida, para estimular , paralelamente, com os cânticos rituais e com a voz sagrada dos tambores, ogãs e gôs, o estado de transe, a possessão que ligam os Voduns do panteão daomeano ou do ioruba às gonjais e noviches que o cultuam”[21]. Ora, no tempo em que José Gabriel lá trabalhava como Ogã, não havia utilização da ayahuasca no culto, tanto que ele somente viria a conhecer a bebida anos depois, no seringal. Assim, é legítimo deduzir que a Mãe-de-Terreiro Chica Macaxeira conheceu a ayahuasca através de seu antigo Ogã e Pai-de-Terreiro José Gabriel. Quando Nunes Pereira visitou o terreiro, o conjunto dos cânticos era lá denominado Doutrina da Ayahuasca. “Nomes de santos católicos, nalguns desses cânticos, se misturaram com os dos Voduns mina-jejes, tais como Xangô, Badé, Avêrêquête, e os ditos Barão de Goré, Sultão das Matas, Marangalá, Jatêpequare, Tindarerê, etc.”[22] É significativo que nos anos 60 ou 70 haja a presença do Sultão das Matas na lista das entidades do terreiro, já que, como se verá adiante, José Gabriel “recebia” esse caboclo quando trabalhava num terreiro que armou no seringal, nos anos 50.

6. O Sultão das Matas e os xamãs da fronteira boliviana

Até 1950, José Gabriel morava com Pequenina em Porto Velho. O casal já tivera dois filhos: Getúlio e Jair. Além de trabalhar como enfermeiro, ele tinha também uma taberna de bebidas. E gostava de política. Diante dos dois partidos que disputavam o governo do Território de Guaporé, o de Rondon e o de Aluísio, José Gabriel era pró-Rondon. No entanto, seu candidato perdeu, e ele foi perseguido em seu emprego público no hospital. Tendo de se afastar de seu trabalho, José resolve voltar para o seringal. E sua mulher discorda: “Eu disse: ‘Não, o que é isso? Eu não nasci no seringal, em mato. Não quero criar meus filhos sem saber ler e escrever.’ Ele disse: ‘É porque eu vou atrás de um tesouro.’ Mas eu era uma pessoa de cabeça cheia de muitas coisas e achei que era riqueza material que ele ia achar, e nós ia enricar, ter uma vida de rosa. Então, quando ele disse que ia, eu disse: ‘Então, vamos.’ Então eu digo que esse tesouro que ele encontrou junto comigo e os dois filhos, pra mim, é um tesouro tão maravilhoso que dinheiro nenhum não paga essa felicidade. (...) Então, esse tesouro, que é a União do Vegetal, tem me amparado.”[23]  Nestas palavras de Mestre Pequenina e provavelmente também na afirmação de José Gabriel, poder-se-ia detectar a presença dos motivos edênicos que povoaram o imaginário das populações que se defrontaram com a floresta amazônica. Nos sonhos e anseios dos nordestinos pobres que se lançam na aventura da borracha ecoam ainda as buscas das “estranhas coisas deste Brasil”: do Eldorado, da Lagoa do Vupabuçu, ou da serra anunciada por Filipe Guillén, “que ‘resplandece muito’ e que, por esse seu resplendor era chamada ‘sol da terra’ ”[24]. Posteriormente, o sonho do tesouro a ser encontrado na selva é resignificado, passando a expressar a União do Vegetal, que nasce da floresta, de um líquido também dourado, denominado por vezes de “chá misterioso”[25].

No seringal Orion, José Gabriel abriu o terreiro no qual “recebia” o caboclo Sultão das Matas. Como recorda Mestre Pequenina, “vinha gente de tudo quanto era seringal”[26] consultar o Sultão das Matas. E ele curava as pessoas, assim como indicava o lugar certo onde se encontrava caça. Adaptando-se a um novo contexto sócio-ecológico-cultural, José Gabriel dirige um rito sincrético afro-indígena, no qual o valor simbólico da floresta, que perpassa toda a vida dos seringueiros, fica evidente. Tal rito, designado pelo filho de José Gabriel simplesmente como “macumba”[27], parece assemelhar-se à pajelança cabocla amazônica[28], uma forma de xamanismo não-indígena na qual tem importância fundamental a noção de incorporação do curador por entidades espirituais que agem através dele para a cura dos doentes. No entanto, certamente permaneciam marcantes nos toques do Seringal Orion os elementos religiosos afros vivenciados anteriormente por José Gabriel, seja na Bahia, seja em sua participação no Terreiro de São Benedito de Porto Velho.

Mais tarde, quando já estão em outro seringal, Pequenina fica sabendo de um chá: “o pessoal vê isso, vê aquilo, o cara falou até com o filho depois de morto”[29]. Ela fala a José Gabriel e ele vai pedir o chá ayahuasca a quem o distribuía no lugar. Mas o homem disse que “não dava o Vegetal praquele baiano que sabe aonde as andorinhas dormem”[30]. Tempos depois, no seringal Guarapari, numa colocação chamada Capinzal, na região da fronteira boliviana, José Gabriel recebe pela primeira vez o chá de um seringueiro chamado Chico Lourenço, no dia 1° de abril de 1959. Chico Lourenço representa uma tradição indígena-mestiça de uso xamânico da ayahuasca que se espalha por uma ampla região da Amazônia ocidental. Tal tradição é designada posteriormente pela UDV como a dos “Mestres da Curiosidade”. Aí se inicia nova etapa na trajetória de José Gabriel.[31]

7. O Mestre e Autor da União do Vegetal

José Gabriel bebe apenas três vezes o chá com Chico Lourenço. Logo depois, viaja por um mês para levar um filho doente a Vila Plácido, no Acre, e quando retorna traz um balde com o cipó mariri e a folhas de chacrona que colheu no caminho. Diz à mulher: “Sou Mestre, Pequenina, e vou preparar o mariri”[32]. Segundo seu filho Jair, “nesse período o Mestre Gabriel não deixou a macumba não. Ele fazia uma Sessão de Vegetal e uma de umbanda.”[33]

Somente em 1961 ele reuniu as pessoas e disse: “Eu quero falar pra vocês que tudo que o Sultão das Matas fez eu sei: Sultão das Matas sou eu.”[34] Este é um dos momentos mais importantes de ruptura de José Gabriel com a tradição religiosa à qual estava ligado anteriormente. Ao postular para si mesmo o poder antes atribuído à entidade Sultão das Matas, o agora Mestre Gabriel nega a incorporação dos cultos de caboclo e configura o transe que será típico da União do Vegetal: a burracheira. A burracheira, que segundo Mestre Gabriel significa “força estranha”, é a presença da força e da luz do Vegetal na consciência daquele que bebeu o chá. Assim, trata-se de um transe diverso, no qual não há perda da consciência, mas sim iluminação e percepção de uma força desconhecida. Há uma potencialização dos sentimentos, das percepções e da consciência do indivíduo.

Em seguida, Mestre Gabriel e sua família se mudam para o seringal Sunta. No dia 22 de julho de 1961, ele reúne as pessoas para um preparo de Vegetal. Nesse dia, o Mestre Gabriel declara criada a União do Vegetal. Ou melhor, afirma que a UDV foi recriada, já que ela teria existido no passado, quando ele mesmo teria vivido em outra encarnação. No dia 6 de janeiro do ano seguinte, Mestre Gabriel se reúne com doze Mestres da Curiosidade no Acre, em Vila Plácido. Numa sessão, eles reconhecem Gabriel como o Mestre Superior. Finalmente, no dia 1° de novembro de 1964 é realizada uma sessão na qual o Mestre Gabriel afirma que fez a Confirmação da União do Vegetal no Astral Superior. Logo depois, em 1965, ele se muda para Porto Velho, para lá consolidar a nascente instituição. Apenas seis anos depois, se deu o falecimento de José Gabriel da Costa, no dia 24 de setembro de 1971.

8. Conclusão

Descrevendo-se em largos traços a vida de José Gabriel da Costa, fica patente a sua participação numa larga seqüência de configurações culturais muito próprias da sociedade brasileira: o catolicismo popular rural do interior da Bahia, a capoeiragem e os cultos afro-brasileiros de Salvador, a vida sofrida de seringueiro na Amazônia, a experiência de incorporação dos cultos de caboclo, o transe xamânico do hoasqueiro, e, finalmente, a atuação carismática do fundador de um novo movimento religioso.

A maleabilidade, a destreza, a vivacidade e a ginga da capoeira contribuíram para que José Gabriel viesse a elaborar uma inovadora síntese de diversos elementos culturais e religiosos, num culto profundamente adaptado à realidade sócio-cultural amazônica. E não apenas adaptado a esta, mas com virtualidades para se expandir por todo o Brasil, exatamente por ser constituído por uma criação vigorosa que se apropriou de configurações provenientes de diversas regiões brasileiras.

O que ensina Gilberto Freyre pode inspirar a conclusão deste texto: “Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando para o individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes. Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, de relações quase de família entre os santos e os homens, que das capelas patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas - batizados, casamentos, ‘festas de bandeira’ de santos, crismas, novenas - presidiu o desenvolvimento social brasileiro.”[35] José Gabriel da Costa, nascido nessa sociedade propensa a hibridismos, plena de plasticidade e inclusividade, elabora uma nova religião que também é “doce”, na medida em que privilegia o sentir e propicia ao indivíduo espaço para que ele próprio construa suas reinvenções criativas.

*       *       *

Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES), em Belo Horizonte, Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade de São Paulo e Bacharel em Teologia pelo CES, o autor atualmente faz o Mestrado do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde 1992 vem estudando a União do Vegetal, e o tema de sua dissertação será a respeito dos discípulos urbanos da UDV. 

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Regina. A doutrina do Santo Daime. in: Leilah Landim (org.) Sinais dos tempos - Diversidade religiosa no Brasil, Rio de Janeiro, ISER, 1990. pp. 253-263. (Col. Cadernos do ISER nº23).

ANDRADE, Afrânio. A União do Vegetal no Astral Superior. in: Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, ano 7 nº 30, 1988. pp. 61-65.

_________________ O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla. Um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação de Mestrado na Pós-Graduação em Ciências da Religião do Instituto Metodista de Ensino Superior. São Bernardo do Campo, 1995.

ARARIPE, Flamínio de Alencar. União do Vegetal: a oasca e a religião do sentir. in: Planeta, São Paulo, nº 105, junho de 1981. pp. 34-41.

ARRAIS, Lúcia. Tese de doutorado em elaboração a respeito dos soldados da borracha para o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - UFRJ.

BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo, 1971, 3a. ed. 567 p.

CARNEIRO, Edison. Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro, 1974. 212 p.

CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE União do Vegetal. União do Vegetal: Hoasca. Fundamentos e objetivos. Brasília, 1989. 141 p.

COUTO, Fernando de la Rocque. Santos e xamãs. Dissertação de mestrado em Antropologia - UnB. Brasília, mimeo, 1989. 242 p.

ELIADE, Mircea. Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase. Paris, 1968. 2a. ed. rev. 405 p.

FREYRE,  Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro, 1992, 31a. ed. 569 p.

GIUMBELI, Emerson Alessandro. O cuidado dos mortos: os discursos e intervenções sobre o “Espiritismo” e a trajetória da “Federação Espírita Brasileira” (1890-1950). Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional - UFRJ. Rio de Janeiro, 1995. 197 p.

GROISMAN, Alberto. “Eu venho da floresta”: ecletismo e práxis xamânica daimista no “Céu do Mapiá”. Dissertação de mestrado em Antropologia Social - UFSC. Florianópolis, 1991. 91 p.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo, 1994. 365 p.

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, 1967. 316 p.

LUNA, Luis Eduardo. Vegetalismo. In: Shamanism among the mestizo population of the peruvian Amazon. Estocolmo, Almqvist & Wiksell International, 1986.

__________________ Ayahuasca em cultos urbanos brasileiros. Estudo contrastivo de alguns aspectos do Centro Espírita e Obra de Caridade Príncipe Espadarte Reino da Paz (a Barquinha) e o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV). Trabalho apresentado para o concurso de professor adjunto em antropologia, Departamento de Ciências Sociais da UFSC. Florianópolis, 1995. 77 p.

LUNA, Luis Eduardo e AMARINGO, Pablo. Ayahuasca visions. The religious iconography of a peruvian shaman. Berkeley, 1991, 160 p.

MACRAE, Edward. Guiado pela lua. Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime. São Paulo, 1992, 163 p.

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas: Catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém: CEJUP.

PIRES, Antonio Liberac Cardos Simões. A capoeira no jogo das cores: criminalidade, cultura e racismo na Cidade do Rio de Janeiro (1890-1937). Dissertação de mestrado em História - UNICAMP . Campinas, 1996. 258 p.

PEREIRA, Nunes. A casa das minas. Contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos voduns do panteão daomeano, no estado do Maranhão, Brasil. Petrópolis, 1979, 2a. ed. 245 p.

SILVA, Clodomir Monteiro da. O palácio de Juramidan. Santo Daime: um ritual de transcendência e despoluição. Dissertação de mestrado em Antropologia Cultural - UFPE. Recife, 1983. 202 p.

SOARES, Luiz Eduardo. Misticismo e reflexão.  in: Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, nº 37, pp. 42-49.

______________________O Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa. in: Leilah Landim (org.) Sinais dos tempos - Diversidade religiosa no Brasil, Rio de Janeiro, ISER, 1990. pp. 265-274. (Col. Cadernos do ISER nº 23).

____________________ Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecológico no Brasil. In: Leilah Landim (org.) Sinais dos tempos - Tradições religiosas no Brasil, Rio de Janeiro, ISER, 1989. pp. 121- 144. (Col. Cadernos do ISER nº 22).

JORNAIS

1. ALTO-FALANTE. Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília.

a)  Mar / Jul 92 - CONFEN libera chá por unanimidade.

b)  Dez 92 / Jan 93 - No relato dos pioneiros, o perfil do Mestre.

c)  Jan / Jul 93 - pp. 10-13 - Entrevista com M. Nonato.

d)  Ago 93 / Fev 94 - pp. 8-10 - Entrevista com M. Cícero.

e)  Mar / Abr 94 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Sidon.

f)  Mai / Jun / Jul 94 - pp. 8-11 - Entrevista com M. Pernambuco.

g)  Ago / Set / Out 94 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Roberto Souto.

h)  Nov / Dez 94 / Jan 95 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Manoel Nogueira.

i)  Abr / Jun 95 - pp. 8-11 - Entrevista com Cons. Paixão.

j)  Ago / Set / Out 95 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Pequenina e M. Jair.

l)  Nov / Dez 95 / Jan 96 - pp. 4-5 - Entrevista com M. Monteiro.

m)  Fev / Set 96 - pp. 8-11 - Entrevista com M. Florêncio.

2. CORREIO BRAZILIENSE. Brasília.

a) 10 de julho de 1996. Caderno Cidades, p. 4 - Chá Hoasca é inofensivo à saúde.

3. O Alto Madeira. Porto Velho.

a)      6 de outubro de 1967. Artigo: Convicção do Mestre.



[1] Este texto integrará a minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - UFRJ, a respeito dos Discípulos da União do Vegetal na realidade urbana brasileira.

[2]  Depoimento de Antônio da Costa, irmão de José Gabriel da Costa, ao autor, em 4 de novembro de 1995.

[3] DEPARTAMENTO DE ESTUDOS MÉDICOS DA UDV. Texto do Programa Oficial do II Congresso em Saúde. Hoasca e desenvolvimento integral do ser humano. Campinas, 1993. p. 1. O texto continua: “José Gabriel da Costa - Mestre Gabriel - era esse menino. Fundou a União do Vegetal para continuar unindo as pessoas.”

[4]  Depoimento de Antônio da Costa. Idem.

[5] ANDRADE, Afrânio Patrocínio de. O fenômeno do chá e a religiosidade cabocla. Um estudo centrado na União do Vegetal. Dissertação de Mestrado na Pós-Graduação em Ciências da Religião do Instituto Metodista de Ensino Superior. São Bernardo do Campo, 1995. p. 170.

[6] GIUMBELI, Emerson Alessandro. O cuidado dos mortos: os discursos e intervenções sobre o “Espiritismo” e a trajetória da “Federação Espírita Brasileira” (1890-1950). Dissertação do PPGAS - UFRJ, 1995. p. 29. Ver tb.  KLOPENBURG, Boaventura. O espiritismo no Brasil. Petrópolis, 1960. p. 25.

[7]  ANDRADE, Afrânio Patrocínio de. Idem.

[8]  LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, 1967. p. 117. O grifo é nosso.

[9]  Cf. outra cantiga semelhante, recolhida por Edison Carneiro:

“Minino, quem foi teu mestre?

quem te ensinô a jogá?

- Sô discip’o que aprendo

Meu mestre foi Mangangá

Na roda que ele esteve,

outro mestre lá não há.”

In: Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro, 1974. p. 138.

[10]   Depoimento de Carmiro da Costa, filho de José Gabriel da Costa, ao autor, em 4 de novembro de 1995.

[11]  PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. A capoeira no jogo das cores: criminalidade, cultura e racismo na Cidade do Rio de Janeiro (1890-1937). Dissertação de mestrado em História - UNICAMP . Campinas, 1996. p. 143.

[12]   Idem, p. 201.

[13] Em 13 de agosto de 1946, Paulo de Assis Ribeiro, Chefe do SEMTA, declarou à CPI acerca dos soldados da borracha ser esse o número de pessoas encaminhadas à Amazônia. Depoimento publicado no Diário Oficial de 24 agosto de 1946. Dado informado pela antropóloga Lúcia Arrais.

[14] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília, agosto-outubro 1995, p. 6.

[15]  In: ARRAIS, Lúcia. No capítulo Dados ignorados da tese de doutorado em elaboração a respeito dos soldados da borracha para o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da UFRJ. Agradeço à autora por me possibilitar o acesso a esse texto, ainda inédito.

[16] ARRAIS, Lúcia. Idem.

[17] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem, p. 6.

[18]  Entrevista do Conselheiro Paixão. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília, abril-junho 1995, pp. 8-9.

[19] PEREIRA, Nunes. A casa das minas. Contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos voduns do panteão daomeano, no estado do Maranhão, Brasil. Petrópolis, 1979, 2a. ed. pp. 121-143. 223-225.

[20]  Idem, p. 223.

[21]  Idem, p. 142.

[22]   Idem, p. 143. O grifo é nosso.

[23]  Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília, agosto-outubro 1995, p. 7.

[24] HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo, 1994. pp. 36-37.

[25]   Artigo: Convicção do Mestre. In: O Alto Madeira. Jornal. Porto Velho, 7 de outubro de 1967.

[26] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília, agosto-outubro 1995, p. 7.

[27] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem, p. 9.

[28] Cf. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas: Catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém: CEJUP.

[29] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem. p. 7.

[30]  Ibidem. p. 7.

[31] Haveria muito a observar acerca da tradição “vegetalista” amazônica, o que transbordaria o âmbito desta breve exposição da trajetória de José Gabriel da Costa. Prefiro remeter aos textos de Luis Eduardo Luna e Edward MacRae citados na bibliografia.

[32]  Ibidem. p. 8.

[33]  Ibidem. p. 9.

[34]  Ibidem. p. 9.

[35] FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro, 1992, 31a. ed. p. 355.