Os 25 anos da CEHILA:
da História da Igreja
 à história do fenômeno religioso na América Latina.

Sérgio Ricardo Coutinho*
UniCEUB

INTRODUÇÃO

Este texto tem por finalidade analisar, muito brevemente, os 25 anos de produção historiográfica da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA), especialmente no Brasil.

Pensei também em colocar em questão a opção epistemológica pelo pobre como pressuposto para a análise da história da Igreja, do Cristianismo e do fenômeno religioso. Finalmente, quero levantar algumas questões acerca do futuro da CEHILA, principalmente em relação aos novos projetos e as opções teórico-metodológicas.

Da história geral ao fenômeno religioso: BREVE HISTÓRICO.

Em janeiro de 1973, na cidade de Quito (Equador), um grupo de teólogos, com proximidades no estudo histórico, sob a liderança do argentino Enrique Dussel, fundam a Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA), um organismo autônomo, sem nenhum vínculo com a hierarquia católica, apesar de seus primeiros associados serem todos católicos e, alguns, membros do clero.

Esta independência alcançada logo de início foi extremamente positiva pois possibilitou ao grupo escrever uma história não corporativista da igreja. O projeto delineado naquela reunião era extremamente ambicioso: tratava-se de escrever uma “História Geral da Igreja na América Latina”, de início concebida em 12 volumes.[1]

Na avaliação de Fernando Londoño,

a História Geral da Igreja na América Latina da CEHILA, (...), supôs pela primeira vez a existência, na América, de um grande projeto continental, sustentado numa divisão em oito áreas regionais que superassem os limites nacionais, organizadas em torno de uma periodização geral comum que devia outorgar-lhe um sentido histórico dos fatos considerados. Assim, e isto era fundamental, aquele projeto deveria ser construído dentro de uma proposta historiográfica e teológica que fazia dos pobres o centro do cristianismo.[2]

Neste ponto, gostaria de abordar um pouco mais sobre a discussão metodológica em torno da periodização, bem como avaliar os volumes relativos ao Brasil. Outro ponto importante que quero trabalhar mais adiante, é a opção epistemológica pelo pobre, opção esta muito polêmica nos meios acadêmicos.

Sobre a proposta de periodização, esta foi formulada por Enrique Dussel ainda no ano de 1967, e depois melhor definida em 1972 na obra Historia de la Iglesia en America Latina. Coloniaje y liberación (1492-1972)[3]. A periodização, era vista por Dussel, como o grande instrumento da história que queria fazer. Deste modo, propôs a divisão em três grandes períodos e que prevaleceu no projeto da História Geral: a) A Cristandade Americana (1492-1808); b) A Igreja e os novos Estados (1808-1930); e c) Rumo a uma Igreja Latino-americana (1930-...). Esta não estava totalmente distante de outras propostas feitas pelos cientistas sociais para a América Latina a partir da chave do colonialismo.

Dussel introduzia, como ponto de partida, a chave interpretativa a partir do conceito teológico, ou melhor, eclesiológico de Cristandade. Este conceito foi amplamente aceito pelos membros da CEHILA, sendo Pablo Richard um dos seus expoentes. Na obra Morte das Cristandades e nascimento da Igreja[4] , este autor define aquele conceito como um modelo histórico de “Igreja” que busca assegurar sua presença e expandir seu poder na sociedade utilizando a mediação do Estado, sendo este último considerado um instrumento dos interesses da classe dominante. Assim, a Igreja institucional, sob distintas formas, dá legitimidade ao sistema de dominação e tende a se organizar internamente segundo esta lógica de dominação.

Historicamente falando, a “morte” deste conceito, ou melhor, de uma Igreja sob o modelo de cristandade, se daria quando ela se comprometesse com os pobres, fazendo surgir assim um novo modelo eclesiológico: a Igreja popular. Sob este modelo, a Igreja não pretende dar nenhum tipo de legitimidade ao Estado, mas assegura sua existência por meio de uma inserção entre os grupos oprimidos, e busca organizar-se internamente segundo relações de fraternidade.

Deste modo, a tônica geral da obra se revela por meio da análise das relações políticas entre a Igreja-instituição X Estado, daí uma ênfase sobre a prática do setor clerical, reduzindo a Igreja a um grupo que centralizou o poder. Por ser um conceito eminentemente “católico”, a História Geral deixou muito a desejar em relação a presença do protestantismo no continente, ou seja, não estabelece uma visão ecumênica, pois sua referência é basicamente a aliança histórica entre a Igreja Católica e o poder do Estado.

Intimamente ligado a esta questão, estava a opção epistemológica pelo pobre e da conseqüente evolução da Igreja: de uma Cristandade para uma Igreja Popular. É importante refletirmos aqui sobre esta opção.

Primeiramente, devemos falar da influência direta exercida pela Teologia da Libertação (TdL) na fundamentação teórica da CEHILA. A TdL surgiu nas décadas de 60 e 70, como uma nova forma de fazer teologia. À medida que assumiu as práticas sócio-políticas e eclesias como um “lugar teológico”, passa a elaborar uma teologia política como uma necessária resposta aos “sinais dos tempos” e aos desafios históricos concretos daquela realidade. Para isso, em primeiro lugar, os teólogos da libertação recorreram não tanto às mediações filosóficas mas às ciências sociais. As mediações filosóficas, pelo seu alto grau de abstração, se apresentavam como pouco aptas a alcançar os indivíduos concretos, historicamente determinados. Em oposição a isto, as mediações das ciências sociais, criticamente assumidas, propiciavam decifrar, analítica e “cientificamente”, a dura e concreta realidade histórica da pobreza e da miséria. Em segundo lugar, procuraram interpretar tal realidade, hermenêutica e teologicamente, à luz da fé, isto é, da “Palavra de Deus” testemunhada nas Sagradas Escrituras. Com isso, se redescobriram o caráter libertário e a “opção pelos pobres” contidos nos próprios textos bíblicos e o aspecto político da fé[5].

Desta forma, para Enrique Dussel, escrever uma história da Igreja na América Latina era uma tarefa com estreita relação com a teologia. Vejamos:

O ato interpretativo da história da Igreja é um ato teológico, e não simplesmente da história profana ou da história mundial, ainda que possa sê-lo. Ou seja, pode haver uma história da Igreja como parte da história comum, realizada por um não-crente e sem formação teológica. O que acontecerá é que o sentido dos fatos será diverso, porque diverso é o marco teórico de interpretação. Daí que o critério evangélico de reler a história a partir dos pobres é uma exigência cristã na interpetação científica.[6]

Para Dussel, o ponto de partida do historiador da Igreja é seu marco teológico. Se a CEHILA propõe como critério fundamental de interpretação uma história “desde os pobres”, significa uma opção prática histórica, fundamentada e fruto da reflexão teológica.

Porém, como bem colocou Pierre Sanchis, a categoria “pobre” começou a sofrer uma metamorfose. Inicialmente, era dada uma ênfase na perspectiva político-econômica, procurava-se a identificação do “pobre” nas relações de produção. Foi do cerne mesmo da análise sócio-econômica da América Latina que se projetou o seu ultrapassamento. Foram introduzidas pouco a pouco duas outras dimensões, o da diferença identitária: a dimensão do racismo e a do resgate necessário de umas culturas marginalizadas. Mais à frente se incorporava a “mulher”.

Deste modo, num primeiro momento, tratava-se de identificar um “rosto” sob a categoria um tanto abstrata do “pobre” membro da classe explorada. Negros e indígenas, num outro sentido mulheres, oferecerão a este “pobre” o seu rosto. Mas um segundo momento, conforme análise de Sanchis, traslada em parte a ênfase: da classe para a etnia, da etnia para a cultura e, daí, para a identidade. De modo mais abrangente, para aquilo que as ciências humanas tematizam com cada vez maior intensidade: a “diferença” e a “alteridade”[7].

Uma “metamorfose” metodológica também foi percebida e debatida no interior da CEHILA. Foram a mobilização contínua das equipes e as discussões das mais variadas, através dos inúmeros simpósios organizados em todo o continente, que proporcionaram esta “metamorfose”[8].

Houve uma renovação a partir da obra de Maximiliano Salinas, que propunha uma história mais próxima da vida cotidiana dos “pobres”, deixando de lado a tônica eclesiocêntrica que vinha tomando conta da CEHILA já por algum tempo. Isto implicava a busca de novas fontes como textos de viajantes, folcloristas, literatos e da literatura popular[9].

A partir daí, Eduardo Hoornaert propôs um novo projeto: a de se escrever a história do Cristianismo na América Latina e no Caribe[10]. Para ele era urgente redefinir o conceito de “Igreja” para superar a idéia demasiado institucional e clerical da mesma. No entanto, não se podia perder de vista o papel histórico da Igreja, para não cair num reducionismo, onde tudo é cultural e deixa-se de ver os processos de luta política.  Esta proposta reforçou ainda mais a produção de uma história ecumênica das igrejas no continente latino-americano. 

Porém, o processo de “metamorfose” se amplia ainda mais, pois o cristianismo não é a única religião dos povos da América Latina e do Caribe. Se fazia necessário avançar para uma perspectiva verdadeiramente ecumênica (universal), rompendo as fronteiras das igrejas cristãs e dialogar com outras religiões presentes no continente. Assim, a CEHILA tendeu a ampliar o objeto de estudo para uma história do fenômeno religioso. Para Armando Lampe, esta opção não significa pensar no “fim da história” da CEHILA, como que a partir daquele momento se produziria única e exclusivamente história das religiões: “Seguem sendo necessárias obras de história da Igreja-instituição e de história do cristianismo, mas há que transcender toda posição discriminatória das religiões não-cristãs.”[11] Deste modo, cada vez mais, a CEHILA vem procurando a valorização da diversidade.

A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA BRASILEIRA DA CEHILA.

Retornando ao projeto da História Geral, apesar dos critérios teórico-metodológicos e dos esforços por fazer uma obra homogênea em torno daquela proposta, isto é, o de uma história “a partir dos pobres”, vários autores acabaram trabalhando de forma independente. Assim, encontraremos textos que dão prioridade às ações da hierarquia, outros que outorgam um maior protagonismo aos movimentos populares, enquanto outros priorizam a participação dos leigos.

Poderíamos afirmar que, os dois volumes dedicados ao Brasil[12], se situam num espaço intermediário entre as tendências detectadas acima. Mesmo sendo uma obra de extrema abrangência e, consequentemente, em diversos momentos, muito sintética, ela mereceu ser citada por Peter Burke como um bom exemplo de “história vista tanto de baixo, como de cima”[13].

A maioria dos autores, dos dois volumes referentes ao Brasil, tinham algum vínculo institucional com a Igreja Católica e eram “militantes” do ponto de vista da TdL. No entanto, como revelou um dos fundadores do CEHILA/Brasil, Eduardo Hoornaert, a presença do Pe. José Oscar Beozzo deu a obra um tom mais acadêmico. Formado em Sociologia na Universidade de Lovaine na Bélgica, trouxe ao grupo brasileiro uma maior aproximação com a “história social, a ideologia das sociedades, a demografia, os métodos quantitativos”. Passou-se a tratar a igreja diante do mundo camponês, do mundo operário, do mundo indígena, do mundo feminino e além disso, trouxe uma maior integração com o mundo acadêmico, pelo menos no Brasil[14].

Se utilizando de modelos de análise – atualmente inaceitáveis para diversos intelectuais - oriundos do marxismo e, de modo especial, da Teoria da Dependência[15], Beozzo se colocava diante do estudo da história da Igreja de maneira bem diversa de Enrique Dussel. Ele concordava em gênero e grau com seu colega de se escrever uma história “vista de baixo”, pois era gritante o caráter fundamentalmente apologético e triunfalista da história da Igreja praticada nos meios eclesiásticos, porém defendia um distanciamento da história em relação a teologia. Para ele,

O trabalho do investigador está sujei­to às regras do método histórico, aos avanços ou insuficiências metodológicas e não se nutre simplesmente da fé do historiador. Para o investigador, enquanto inves­tigador, não há como estabelecer para a Igreja um estatuto que ultrapasse o de uma realidade dentro da história, regida por leis, relações e vicissitudes próprias de todas as instituições humanas e de construções sociais, religiosas, econômicas, políticas e ideológicas. Pretender al­go diferente é produzir uma confusão de planos que não aporta nada de bom a fé, nem a investigação histórica.

Deve-se manter como rigor a autonomia das ciências sociais e  legitimidade de seus métodos de investigação, deixando a crítica interna a tarefa de comprovar ou informar hipóteses e explicações. Pedir a história que proceda com a Igreja de maneira di­ferente daquela que aplica a outros obje­tos de investigação, é submeter a ciência-­histórica ao arbítrio de outra instância ideológica (...) que precisa provar a legitimidade de sua intervenção e sua competência neste campo especifico que é a história.[16]

Não poderíamos também de deixar de falar que Beozzo não estava sozinho. A presença fundamental de um Eduardo Hoornaert e de um Riolando Azzi, fez da obra um trabalho excepcional, em relação a tudo o que se tinha feito antes. Sem dúvida que não é uma obra com grandes questões teóricas, nem tinha o objetivo de ser um estudo monográfico, mas a partir de suas limitações nos fornece uma visão macro-religiosa do catolicismo em nosso país. Vale lembrar ainda que o público alvo era aquele que tinha algum tipo de vínculo eclesial, isto é, seminaristas, religiosos e religiosas, líderes pastorais, teólogos, membros do clero, leigos, etc.

Os dois volumes referentes ao Brasil, pela composição de sua bibliografia, fontes consultadas e da estruturação da obra, são contribuições importantíssimas e referências obrigatórias para todos aqueles que quiserem iniciar qualquer trabalho sobre a Igreja no Brasil entre os séculos XVI e XIX. Nomes como os de Sérgio Miceli, Laura de Mello e Souza, Ronaldo Vainfas, Mary Del Priori e Luís Mott, por exemplo, fazem referência em suas obras do material da CEHILA. Apesar de tudo, ela teve uma boa recepção na academia.

Porém, simultaneamente a este trabalho, os estudos monográficos começaram a se multiplicar e os enfoques teórico-metodológicos também. Como exemplo, vejamos a História da Igreja na Amazônia e os estudos de Riolando Azzi, para o Brasil, em torno de uma História da Vida Religiosa e da História do Pensamento Católico no Brasil.

Seguindo de perto a trilha deixada pela História Geral, está uma obra que considero importantíssima: a História da Igreja na Amazônia[17].

O projeto de escrever uma obra sobre a Igreja na Amazônia partiu da constatação de que a “História da Igreja no Brasil” não cobria suficientemente aquela área e pelas próprias questões relativas a defesa da Amazônia.

Nos artigos que compõe a obra, procuraram evitar o perigo de apresentar o indígena amazônico como um ser paradisíaco e artificial, e, por isso, iniciaram com um texto da autoria de Antônio Porro, que situa a história do cristianismo amazônico no vasto cenário anterior à penetração colonial. Outro perigo que poderiam ter caído era o de escrever uma história quase exclusivamente eclesiástica. Para isso, escreveram também sobre a “religião do povo” amazônico, pois, afinal, o cristianismo amazônico formou-se longe dos parâmetros clericais e dos centros de coerção. Por outro lado, não se recusaram a entrar na atualidade da Igreja Católica na região.

Para mim, que venho investindo atualmente em estudar a Igreja na Amazônia colonial, esta obra é, em diversos pontos, inovadora pois traz fontes inéditas, uma farta bibliografia e, principalmente, as boas análises nos textos de Carlos de Araújo Moreira Neto e Hugo Fragoso.

Sob os  títulos “A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos” e “Os religiosos no Brasil: enfoques históricos”, Riolando Azzi organiza uma série de textos monográficos importantes que oferecem elementos para uma reflexão a respeito da atuação dos religiosos e religiosas no nosso país. O primeiro livro inicia-se com uma periodização de conjunto, - Riolando Azzi, “História dos Religosos no Brasil” e continua  com uma série de ensaios monográficos: Riolando Azzi e Maria Valéria Rezende, “A vida religiosa feminina no Brasil colonial”; Eduardo Hoornaert, “De beatas a freiras: evolução histórica do recolhimento da Glória no Recife”; Ferdinand Azevedo “A espiritualidade ultramontana do nordeste (1866-1874)”; José Oscar Beozzo “A decadência e morte, restauração e multiplicação  das ordens e congregações religiosas no Brasil: 1870-1930”; J. Jongmans, “A reforma da ordem beneditina (1890-1910)”; Hugo Fragoso. “Uma contribuição para a história vocacional da província franciscana de Santo Antônio”; João Santos, “A primeira fundação religiosa feminina da Amazônia”.

O segundo volume, publicado sob a coordenação de Riolando Azzi e José Oscar Beozzo, inclui os seguintes estudos: Riolando Azzi, “Os dominicanos no Brasil durante a época imperial”;  “As irmãzinhas da Imaculada Conceição”; “As filhas de Maria Auxiliadora no Brasil”; “Os redentoristas no Brasil na última década do século passado”; Hugo Fragoso, “Novas fundações franciscanas no nordeste”; João Santos, “Os franciscanos no Rio Tapajós”; Ferdinand Azevedo, “A volta dos jesuítas portugueses ao Brasil em 1910”; Martin Dreher, “Vida religiosa consagrada no protestantismo brasileiro” e Maria José F. Rosado Nunes, “Prática político-religiosa das congregações femininas no Brasil - uma aproximação histórico-social”.[18]

Já em relação a História do Pensamento Católico, este é um trabalho de fôlego, de anos de pesquisa, reunidos em 5 volumes. Não é uma história sobre escritores de filosofia ou de teologia, mas história do pensamento católico. O contexto da pesquisa se amplia: não somente estudiosos que influenciam em outros estudiosos, mas procura analisar todo o quadro de condições culturais, sociais, políticas e econômicas que interferem na visão católica da sociedade em cada período histórico. Azzi acentua o estudo da relação entre as condições sociais de cada época e as transformações no pensamento católico.

Por outro lado, Riolando Azzi continua extremamente ligado ao conceito de “cristandade”, daí o “pensamento católico” sempre se reduzir a construção de projetos políticos e enfatizando, como sempre, as relações Igreja-Estado. Assim, teríamos um projeto autoritário na Colônia, um projeto liberal no 1º Reinado, um projeto conservador no 2º Reinado, um projeto ultramontano na República Velha e um projeto restaurador no Estado Novo[19].

Cabe observar neste momento, que os três trabalhos visavam atingir um público mais acadêmico que teológico-pastoral.

A CEHILA no Brasil também não deixou de lado o esforço de se escrever um “história popular” da Igreja. Talvez esteja aí, na minha ótica, sua grande contribuição.

Desde o primeiro encontro da CEHILA em Quito, Equador, em janeiro de 1973, levantou-se a questão dos destinatários do seu projeto historiográfico. Quem eram os destinatários da história da Igreja na América Latina? Se o ponto de partida básico consiste em escrever a história do povo, das classes oprimidas, não seria lógico orientar esta produção para o mesmo povo? Estas questões foram amadurecendo até que na V assembléia da CEHILA , realizada em Salvador, Bahia, em 1977, criou-se um projeto específico denominado Projeto de Versão Popular ou CEHILA-Popular.

Eduardo Hoornaert, então coordenador do Projeto, constituiu em Recife, Pernambuco, uma Equipe de quatro pessoas que iniciou experiências em diversas frentes: publicações, encontros de poetas populares, resgate da memória dos velhos, simpósios, contatos com outras entidades espalhadas pelo continente, etc.

As publicações do projeto cobrem variados setores. Durante os primeiros anos, foram elaborados dez folhetos no gênero “cordel”,  literatura de fronteira com a cultura oral do povo nordestino do Brasil. Esta pequena coleção foi publicada pela Ed. Vozes e mereceu amplo esforço de divulgação.

Esta primeira experiência de se contar a história do povo, através de um instrumento genuinamente popular, permitiu ver a necessidade de um encontro mais vivencial com os poetas populares. Surgiram, então,  os encontros de poetas populares que entre 1981 e 1991, se realizaram uma vez ao ano,  ao nível regional. Nesse período, foram também realizados encontros menores, micro-regionais, em Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Paraíba.  A CEHILA-Popular começou a publicar o “Boletim dos Poetas Populares”, para informar e animar os poetas, nesse processo de organização.

Seguindo ainda método próximo à literatura de “cordel”, publicou-se pelas Edições Paulinas duas séries intituladas Caminhos de Escravidão e Caminhos de Libertação. Essas Séries contam com diversos livretos, resultantes, quase todos, dos Encontros de Poetas Populares: Navio Negreiro (1981), As raízes da escravidão (1983), Um povo sem rosto (1983), Quando os atabaques batem (1984), Palmares de liberdade e engenhos de escravidão (1985), Antonio Conselheiro e a tragédia de Canudos (1986).

Mais tarde, a partir de 1988, os poetas criaram o seu próprio movimento: o Movimento de Poetas Populares, hoje coordenado pelo sacerdote-missionário-poeta Roberto Eufrásio de Oliveira, atuando sobretudo na região do brejo paraibano.  Estes poetas já produzem sua própria literatura[20].

A partir do tomo relativo a História da Igreja no Brasil, foi elaborado um pequeno livro que trata da Igreja no Brasil Colonial com o título Não se pode servir a dois senhores, Lins (São Paulo), Editora Todos Irmãos, que até 1985 tinha chegado  a uma quarta edição, convertendo-se no maior sucesso da CEHILA-Popular em termos de divulgação: mais de 20 mil exemplares vendidos. Em 1987, foi publicada a 5a. edição por Ed. Paulinas.

Entre 1983 e 1987, CEHILA-Popular organizou simpósios anuais a respeito de  temas históricos de interesse popular. Em 1983, foi analisada a situação do Padre Ibiapina, falecido em 1883, que foi marcante em rincões nordestinos. O material  foi publicado com o título Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres, São Paulo, Edições Paulinas, 1984. Em 1984, foi estudada a situação do Nordeste no final do século XIX, ilustrada pelas figuras de Antonio Conselheiro, do Padre Cícero e  do Padre Ibiapina. Em 1985, foi realizado o terceiro simpósio, durante o qual,  tratou-se de estudar, com maior profundidade, o processo de formação da sociedade nos “sertões” nordestinos. Os trabalhos apresentados nos simpósios de 1984 e 1985 foram reunidos em: A Igreja e a questão agrária do Nordeste, subsídios históricos, São Paulo, Edições Paulinas, 1986. Em setembro de 1986, foi realizado em João Pessoa (Paraíba) o quarto simpósio, cujos resultados foram publicados em: A Igreja e o controle social nos sertões nordestinos, São Paulo, Edições Paulinas, 1988. Em 1988, editou-se pela Editora Vozes de Petrópolis (Rio de Janeiro), o livreto História dos africanos na América Latina.

Uma experiência nova, realizada em 1986 e 1987, foi o Calendário do povo latino-americano, cujos temas, que abrangiam a maior parte dos países latino-americanos e caribenhos, davam prioridade às lutas e à resistência dos pobres, dos índios, dos negros, das mulheres, dos defensores dos oprimidos, isto é,  de todos aqueles que são ignorados na história oficial. A aceitação do calendário foi muito boa e passou a ser utilizado, não só entre agentes de pastoral e membros da comunidades cristãs de base, mas também entre estudantes.

Em 1990, iniciou-se nova coleção intitulada “Homens e mulheres do Nordeste”, publicada também por Edições Paulinas. Até agora, foram editadas dez pequenas biografias de nordestinos e nordestinas que marcaram a história, com seu compromisso em favor do povo. Seus títulos são: Joaquim Nabuco, Zumbi, Dolores Borges, Frei Caneca, Josué de Castro, Ulisses Pernambuco, Padre Cícero, Padre Ibiapina, a beata Maria de Araújo e José Lourenço.

Por ocasião dos 500 anos da colonização européia, foi organizada uma coleção: “500 anos: visão dos vencidos”, Edições Paulinas, com os seguintes títulos: Os mexicas, Os maias, Os incas, Os Povos selvagens e A grande marcha da humanidade. Também para essa ocasião, Paulo Tonucci (falecido em 1994) e Eduardo Hoornaert elaboraram em parceria  o livro: Protagonistas e testemunhas da conquista, no qual apresentam figuras do século XVI.

Atualmente, como anda o CEHILA/Brasil? Nos últimos 5 anos, o CEHILA/Brasil vem sofrendo uma renovação nos seus quadros. Esta transição está ocorrendo de maneira lenta. Aos poucos, uma segunda geração de historiadores começam a ocupar espaços deixados pelos da primeira geração. Nenhum “grande” projeto foi construído, muito menos novos trabalhos foram publicados, mas nem por isso a equipe está alheia aos debates teórico-metodológicos. Por meio de seus simpósios anuais, o CEHILA/Brasil vem se preocupando em conhecer e estudar melhor as realidades religiosas de cada região brasileira, bem como discutir e incorporar outras metodologias de trabalho, com ótimos resultados na academia, como por exemplo a “história oral”, a “micro-história” e os estudos “iconográficos”. Em 1996, na cidade de São Paulo, um simpósio foi organizado para melhor aprofundar a presença protestante e pentecostal no Brasil. Em Recife, no ano de 97, realizou-se um simpósio sob o tema Religiões no Nordeste do Brasil: uma história de confrontos e convergências; em Juiz de Fora, em 98, tivemos Uma busca de sentido: as religiões nas Gerais; e, neste ano, o simpósio anual se realizará em Brasília, com o tema Religiosidades, misticismo e história no Brasil Central.

CONCLUSÃO

A título de conclusão, gostaríamos de propor uma questão que considero muito importante na atividade do historiador, questão esta também levantada por Fernando Londoño: o problema do sentido de fazer a história das Igrejas e das Religiões na América Latina.

Paulo Siepierski, em artigo extremamente crítico, propõe uma revisão da opção epistemológica da CEHILA (a opção pelos pobres) porque esta não se adequaria a própria proposta de ampliação de horizonte sugerida por seu fundador Enrique Dussel, ou seja,  deixando de escrever somente uma História da Igreja e passando para uma história do fenômeno religioso na América Latina. Deste modo, a CEHILA teria que buscar um diálogo com outros grupos que também estudam o fenômeno religioso, mas que “podem não possuir compromisso algum com os pobres”, daí a necessidade do critério central deixar de estar atrelado a uma exigência estritamente cristã”. Afirma ainda: “A CEHILA deve elaborar mais a questão da opção pelos pobres buscando uma fundamentação que não seja exclusivamente teológica, para ter validade universal [21].

Seria uma ingenuidade nossa afirmar que os estudos acadêmicos sobre o fenômeno religioso não têm influenciado os estudos da CEHILA. O diálogo sempre foi positivo e enriquecedor. No entanto, acreditamos ser possível manter a opção pelos pobres e o diálogo com outros grupos que não tem a mesma preferência. Pergunto: por que é necessário buscar uma fundamentação que tenha “validade universal”? Quem estabelece o que tem e o que não tem “valor universal”? A Universidade? Ou a CEHILA não teria condições de estabelecer tal valor por si só? Ela só é influenciada e não influencia? Onde estaria o diálogo?

Siepierski sabe que tal fato é difícil de acontecer, porém sugere algo interessante : “(...) um resgate do desenvolvimento da reflexão sobre a ética social na tradição ocidental, enriquecido com os ensinos éticos de outras tradições (...)”[22]. A partir disso, queremos trazer à tona uma discussão sobre “ética social entre os historiadores”.

Recentemente, com as mudanças de posturas teórico-metodológicas, principalmente com a cada vez maior adesão à “história social” e o crescimento de uma “história vista de baixo”, o conhecimento do passado “popular” ficou mais fácil. Isto fica claro nos temas de estudo: fenômenos de consciência coletiva; vida popular; formas de resistência e de luta; religiosidade popular, enfim, uma série de temas onde se busca “explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja existência é tão freqüentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem (...)” pelos historiadores da “elite”[23].

Apesar disso, Jean Chesnaux alerta para a total falta de compromisso dos jovens historiadores com seus “objetos” de estudo. Os esforços de expansão destes temas, relativo aos “marginalizados”, têm por objetivo apenas renovar, consolidar a instituição universitária. Trabalham de acordo com os critérios do discurso profissional dos historiadores. Os excluídos, explorados, camponeses, operários, enfim os “pobres”, estão abocanhados pela máquina universitária através da intermediação daqueles que escolheram fazer deles sua “especialidade”. Sem dúvida que a expansão dos temas é frutífero, porém o “saber histórico ampliado para o povo só é popular na forma porque ele se mantém exterior a nós; em nome dos usos acadêmicos e dos compromissos necessários, ele se recusa a enraizar-se ativamente nas lutas do presente”[24].

Sabemos bem da grande contribuição que a Academia tem trazido para o estudo e compreensão do fenômeno religioso no país e na América Latina. A produção histórica nesta área está em plena expansão. Porém, esta expansão oculta uma questão, levantada pelo historiador francês, e que, neste momento, é importante para uma reflexão: “ela atua em que sentido e a favor de quem?”. E sentencia: tantos os novos como os velhos historiadores, adeptos desta ou daquela corrente teórica, “ignoram a relação fundamental entre saber histórico e prática social”.[25]

Desta forma, e no meu modo de ver, a CEHILA, com sua opção hermenêutica, tem contribuído em muito na questão de uma “ética social” entre os historiadores, ou melhor, na relação entre saber histórico e prática social. A CEHILA não pode perder de vista seu marco inicial e, por isso, tem ainda muito a influenciar.



* Mestre e doutorando em História na Universidade de Brasília, professor do departamento de História do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), professor de História da Igreja do Instituto São Boaventura e membro do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA).

[1] Dos 12 volumes projetados estão faltando dois: a segunda parte da Introdução Geral e o terceiro volume da História da Igreja no Brasil.

[2] LONDOÑO, Fernando T. “Produção historiográfica sobre a Igreja da América Latina nos últimos 50 anos” in HOORNAERT, Eduardo (org.). História da Igreja na América Latina e no Caribe (1945-1995): o debate metodológico, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 194. As oito áreas citadas são: México, Caribe, América Central, Colômbia-Venezuela, Andino-Incaica, Cone Sul, Brasil e Hispanos nos Estados Unidos.

[3] Barcelona, Terra Nova, 1972. A obra anterior é: Hipóteses para una História de la Iglesia en América Latina, Barcelona, Estela, 1967.

[4] Ed. Paulinas, SP, 1984.

[5] BORDIN, Luigi. “Teologia da Libertação e Marxismo no contexto da Globalização” in Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, Vozes, fasc. 233, vol. 59, março/1999, p.128.

[6] DUSSEL, Enrique. Historia General de la Iglesia en América Latina, tomo I/1, CEHILA, Madrid, Ed. Sígueme, 1983, pp. 19-20. Os grifos são meus.

[7] SANCHIS, Pierre. “O futuro da ‘Igreja Popular’ no Brasil”, mimeo., 1998, pp. 2-3. Trabalho apresentado nas VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, SP, 22-25/09/1998, USP.

[8] LONDOÑO, op. cit., p.196.

[9] SALINAS, Maximiliano. Historia del Pueblo de Dios en Chile: la evolución del cristianismo desde la perspectiva de los pobres, CEHILA-Ediciones Rehue, Santiago de Chile, 1987.

[10] Este debate ocorreu em 1993, na capital paraguaia de Assunção, quando a CEHILA avaliava os 20 anos de produção historiográfica.

[11] LAMPE, Armando. “El debate metodológico en CEHILA. Un aporte crítico” in Idem. Ética e a Filosofia da Libertação: festschrift Enrique Dussel, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 70.

[12] HOORNAERT, Eduardo et alli. História da Igreja no Brasil, Petrópolis/SP, Vozes/Paulinas, tomo II/1 e 2, 1977.

[13] BURKE, Peter. “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro” in Idem. A Escrita da História: novas perspectivas, SP, Ed. UNESP, 1992, p. 13.

[14] HOORNAERT, Eduardo. “CEHILA: memória da primeira década (1973-1984)” in LAMPE, op. cit., p. 217 e 219.

[15] Cf. BEOZZO, José Oscar. “As Américas Negras e a História da Igreja: questões metodológicas” in CEHILA, Escravidão Negra e História da Igreja na América Latina e no Caribe, Petrópolis, Vozes, 1987, pp.27-64.

[16] Idem. “Valor e limite da explicação histórica” in Vida Pastoral, SP, Paulinas, nº. 121, mar.-abr./85, pp.19-20. Os grifos são meus.

[17] Petrópolis, Vozes, 1992.

[18] São Paulo, Edições Paulinas, 1983, 216 pp. e  São Paulo, Edições Paulinas, 1986, 218 pp..

[19] AZZI, Riolando. A Cristandade Colonial: um projeto autoritário, História do Pensamento Católico no Brasil, vol. I, SP, Paulinas, 1987; Idem. A crise da Cristandade e o projeto liberal, vol II, SP, Paulinas, 1991; Idem. O Altar unido ao Trono: um projeto conservador, vol. III, 1992; Idem. O Estado Leigo e o projeto ultramontano, vol. IV, SP, Paulus, 1994; Idem. A Neocristandade: um projeto restaurador, vol V, SP, Paulus, 1994. Falta ainda a ser publicado o volume VI acerca da relação do pensamento católico e a “opção pelos pobres”.

[20] A trágica e planejada morte do padre Josimo, Centro de Evangelização da Periferia de Salvador (Bahia), 1988, 28 págs.;  Do sangue de Margarida nascem margaridas (sobre a vida e a morte da líder sindical Margarida Alves, camponesa do interior da Paraíba), edição própria de CEHILA-Popular, 1991; Guerra dos bárbaros (peleja entre índios e colonizadores no nordeste brasileiro), 1992, 25 págs.

[21] Cf. SIEPIERSKI, Paulo D. “(Re) (Des)Cobrindo o fenômeno religioso na América Latina” in HOORNAERT, Eduardo (org.). História da Igreja na América Latina e no Caribe (1945-1995): o debate metodológico, Petrópolis, Vozes, 1995, pp.161-187 (o grifo é nosso).

[22] Id. Ibid., p.163 (o grifo é nosso).

[23] SHARPE, Jim. “A história vista de baixo” in BURKE, op. cit., p.41.

[24] CHESNAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores, SP, Ed. Ática, 1995, p.151.

[25] Id. Ibid., p.27.