O CÂNTICO DOS CÂNTICOS: UM EXEMPLO DE ATIVIDADE EXPLORATÓRIA NA INTERFACE ENTRE OS ESTUDOS DA TRADUÇÃO E OS ESTUDOS DA RELIGIÃO

 

Geraldo Luiz de Carvalho Neto

UFMG

 

1. INTRODUÇÃO

 

            A Bíblia é um dos livros mais lidos no mundo e sua leitura não se limita ao exame de aspectos puramente religiosos, sua abrangência se estende aos domínios da história, geografia, costumes sociais entre outros. Porém, dentre seus leitores, nas palavras de GABEL e WHEELER (1993: 205), “nem a metade de um por cento leu as suas palavras reais”, visto que a Bíblia está escrita em línguas antigas, o hebraico, o aramaico (uma pequena parte dos textos) e o grego, a que apenas um pequeno número de pessoas tem acesso. No entanto, a expressão “palavras reais” enseja um conceito demasiado subjetivo e engloba uma discussão deveras polêmica sobre originais, manuscritos e tradição copista. Prefiro empregar, destarte, o termo texto hebraico para designar a língua de partida para os trabalhos de tradução de uma determinada edição da Bíblia hebraica, na dependência dos quais se encontram as possíveis leituras dos textos bíblicos para a maioria dos estudiosos e interessados através dos tempos.

 

            É nesta esfera que as fronteiras entre os estudos da religião e os estudos da tradução se tornam fluidas. Os estudos da tradução vêm apoiar o estudioso da religião em sua tarefa junto ao texto sagrado, com o objetivo de lhe fornecer um instrumento imprescindível para análise das escrituras, o que faz com que as possibilidades interpretativas se desdobrem através da tradução.

 

            As primeiras traduções, entre elas a Septuaginta (em grego) e a Vulgata (em latim), serviram de base para um sem número de traduções feitas posteriormente até nossos dias. Porém, Martinho Lutero, p.ex., entendeu que a tradução para uma língua vernácula tinha que ser feita, para manter seu caráter de fidelidade, diretamente a partir do Antigo Testamento hebraico e do Novo Testamento grego, de onde surgiu sua versão da Bíblia em língua alemã. Esse fato também contribuiu para o surgimento de uma língua padrão na Alemanha. Traduções inglesas da Bíblia, como a King James Version, a Revised Version e a American Standard Version também desempenharam um papel significativo na história da tradução dos livros sagrados. E outras traduções continuaram sendo publicadas até a época atual.

 

            No entanto, como saber se uma tradução preserva um mínimo de suas características de conformidade ao texto de partida? Os leitores habituais da Bíblia, em geral, não são capazes de discernir se aquela versão de que dispõem foi feita por um tradutor com os requisitos requeridos para o processo de tradução das escrituras. Segundo GABEL e WHEELER (1993: 220):

 

Depender de uma tradução (...) é depender de certo número de qualidades dos autores de traduções: o seu conhecimento das línguas originais da Bíblia e das culturas, sistemas religiosos e situações históricas que produziram os textos originais; o grau de seu compromisso com a objetividade; sua habilidade e imaginação no uso da língua receptora; e a sua consciência da real natureza do processo de tradução.

 

            Na seqüência de sua explanação, os autores acima sugerem acertadamente um meio simples de diminuir a subordinação do leitor a uma determinada tradução. Para tanto, ele deve comparar diferentes traduções da Bíblia para poder interpretar um certo trecho da forma mais fiel possível ao respectivo texto hebraico ou grego. É através da comparação de versões variadas que se pode ampliar a compreensão do texto. “Sendo mais detalhada, essa comparação entre traduções indica que confiança o intérprete pode depositar na tradução de uma dada passagem feita em alguma versão particular” (p.220).

 

            Outros importantes fatores a serem considerados em uma tradução são citados por Carlos GOHN (2001) em seu artigo “Pesquisas em torno de textos sensíveis: os livros sagrados”, quais sejam: questões ligadas à crítica da aplicação de categorias de funcionalidade, intencionalidade e conceitualização na tradução de textos sagrados. Por funcionalidade entende-se “a preocupação em procurar resguardar, na língua de chegada, a mesma função que o texto de partida tem na língua de origem” (p.151), buscando-se uma “equivalência funcional (ou dinâmica)”. Também a crítica aos que dizem dever ser levado em conta “a intencionalidade e o objetivo comunicativo do ‘autor’ sagrado (se é que se pode falar de um ‘autor’ para os textos sagrados)” (p.152). Outra grande dificuldade na tradução é o fator denominado de conceitualização, ou seja, a dificuldade de traduzir uma palavra que não tem um correspondente exato na língua alvo.

 

            Como vimos, são muitas as questões envolvendo a tradução dos chamados textos sensíveis. Para exemplificar a questão, tomarei como ponto de referência uma passagem de um livro do Antigo Testamento da Bíblia hebraica, o Cântico dos Cânticos de Salomão. Meu intuito é de apenas mostrar, baseando-me em exemplos, a importância da comparação entre diferentes versões. Partirei sempre da versão hebraica usando a Biblia Hebraica Stuttgartensia e da versão de Martin Buber em língua alemã, comparando-as com a tradução de Lutero e algumas outras em inglês e português, não antes de refletir um pouco sobre o processo de tradução, neste caso o de textos sagrados.

 

2. TRADUZINDO O CÂNTICO DOS CÂNTICOS

 

            Literalmente, o hebraico Shîr Hashshîrîm significa canto dos cantos, composto poeticamente, de autoria atribuída a Salomão. STADELMANN (1993: 25) explica o título como “um hebraísmo que exprime a idéia de superlativo: ‘o cântico por excelência’”. A forma em que este livro foi redigido, não pode ser de maneira alguma desconsiderada no momento da tradução. A poesia hebraica era criada para ser escutada, para ser lida em voz alta. Nas palavras de SCHÖKEL e ZUNO (1977: 156): “El Cantar exalta la materia sonora para crear un ambiente mágico”. Desprezar tal característica ocorreria em uma transgressão à função primária do texto.

 

Factor esencial del poema hebreo es la sonoridad. Toda la poesía hebrea se componía para ser leída o declamada o cantada, y el factor sonoro desempeñaba un papel muy importante. (...) La rima, excepcional en la poesía hebrea, es aquí frecuente, aunque sea principalmente rima morfológica, de sufijos repetidos. Aunque la asonancia vocálica no tenía curso legal en la poesía hebrea, algunas repeticiones vocálicas del Cantar parecen tener una función especial. Son abundantes las aliteraciones, recurso frecuente en la poesía hebrea, y no faltan fragmentos con algún sonido dominante. (SCHÖKEL e ZUNO, 1977: 155-156)

 

           

            Contudo, de modo geral, ainda nos reportando a GABEL e WHEELER, não é possível traduzir “o ritmo, a rima e o jogo de palavras” do hebraico, embora “elementos equivalentes” na língua receptora possam cuidar de uma substituição. Não sem muita controvérsia, poder-se-ia dizer que a riqueza e a beleza das construções de uma língua (no caso particular, a hebraica) perdem muito na tradução e que uma tradução nunca tem o mesmo valor do texto de origem. O sentido aproximado de um trecho pode ser repassado para uma outra língua, mas grande parte de outros itens não o podem. No entanto:

 

Isso não significa (...) que a forma poética deva ser ignorada pelo tradutor ou que a sua existência seja ocultada dos olhos do leitor. Uma das coisas mais importantes de uma passagem é saber, se ela for poética, que ela o é: estamos preparados para compreender uma passagem que consideramos poética de um modo diferente daquele pelo qual compreendemos uma passagem que consideramos prosa. Por isso, é importante que as traduções de poesia pareçam poesia, mesmo que muitos efeitos poéticos do original não possam ser representados na tradução. (GABEL e WHEELER, 1993: 217)

 

 

            Os tradutores atuais têm procurado respeitar a forma do texto a ser traduzido. A título de exemplo, não posso deixar de citar o trabalho do alemão Martin Buber (em uma primeira etapa, juntamente com Franz Rosenzweig) em seu empenho em traduzir livros da Bíblia hebraica para sua língua, mantendo a forma e muitos aspectos do texto hebraico, em um anseio de hebraizar o idioma alemão. Do seu ponto de vista, não se pode dissociar conteúdo e forma de um texto composto para a expressão oral. Neste âmbito, “(...) o modo como se diz algo não pode ser separado do que tem que ser dito: isto só pôde ser dito assim” (BUBER, 1997: 20).

 

            E o que quis dizer o Cântico dos Cânticos? O Cântico representa um livro demasiado polêmico na literatura bíblica. Trata-se de um poema erótico, destacando-se pelo seu caráter altamente sensual. Relata a beleza física, sem, em momento algum, falar de Deus, fato que há muito intriga exegetas bíblicos. Interessante de se notar são as metáforas da natureza usadas nas descrições tanto da paisagem quanto dos corpos, um caso de fácil solução se considerarmos as características do pensamento judaico. BOMAN (1960) atesta que a aparência física raramente é relatada nos escritos bíblicos e, mesmo quando mencionada, a beleza nunca é colocada de uma maneira pormenorizada. Mais importante que as imagens são as qualidades da pessoa humana. No Cântico dos Cânticos de Salomão, segundo BOMAN (1960:77): “(...) we apparently have extensive descriptions of human appearance; these descriptions (...) show immediately with their grotesque images, however, that here are no descriptions in our sense of the word”. GIBSON explica que a mente judia, diferentemente da ocidental, procura primeiramente pelas “impressões”, pelo caráter funcional. Se tomarmos como exemplo os capítulos 4 e 7, “a mente moderna veria uma MULHER FEIA... a mente bíblica, por sua vez, veria a linda personalidade e o coração da mulher” (GIBSON).

 

Trata-se, então, de um cântico profano ou sagrado? Segundo a introdução ao Cântico dos Cânticos na tradução ecumênica da Bíblia (Ed. Loyola), a interpretação do cântico como uma alegoria veio amenizar o escândalo deste poema erótico na Bíblia. Interpreta-se o poema não como a relação carnal entre dois amantes, mas como a relação entre “o Senhor e seu povo” (Deus e Israel) ou “Cristo e a Igreja”, “Cristo e a Humanidade”, “o Espírito Santo e Maria”. STADELMANN afirma, mesmo, que a intenção do autor foi dissimular “a promoção do nacionalismo judaico”, servindo-se de um texto “cifrado”, frente ao domínio persa. Outros estudiosos tendem a desmentir estas interpretações alegóricas, afirmando que adulterariam o sentido literal do texto. O comentário sobre o Cântico na tradução ecumênica sugere uma solução à questão sobre o verdadeiro significado do poema alternando entre “o sagrado e alegórico” e o “sexual e profano”. Declara que “é bem possível que o amor de que fala o Cântico seja ao mesmo tempo sexual e sagrado, e a negação de um destes dois aspectos teria conduzido, num caso, ao sentido profano e, no outro, ao sentido alegórico”. Neste caso, conclui, o poema “descreve o amor humano como tendo um fim em si mesmo, na obra boa que é a criação de Deus (...)”.

 

            Tomarei agora uma passagem previamente selecionada e, após confrontá-la com algumas traduções, tecerei alguns comentários no tocante à forma, à seleção vocabular e ao sentido do respectivo texto. Imediatamente após o texto hebraico da Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS, 1997), juntamente com uma versão interlinear e sua transliteração em caracteres latinos, apresento a versão de Martin Buber (MBÜ, 1997) e a de Martinho Lutero (MLÜ, 1984), ambas em alemão. Em seguida, vêm os textos em inglês da New International Version (NIV, US 1984), da New Revised Standard Version (NRS, US 1989) e da New Jerusalem Bible (NJB, Great Britain 1990). Por fim, transcrevo as respectivas passagens de traduções em português de João Ferreira de Almeida (Edição Revista e Atualizada no Brasil – RAB 1969 – e Edição Revista e Corrigida – ERC 1969) e da tradução ecumênica das Edições Loyola (TEB).

 

3. Verso 1,5:

BHS: ~l'iv'Wry>     tAnB.      hw"an"w>    ynIa].    hr'Axv.

         Jerusalem     daughters-of      yet-lovely         I              dark

           (shehôrâ ‘anî wena’wâ benôt yerushalaim)

MBÜ:            “Schwarz bin und anmutig ich,

            Töchter Jerusalems”

MLÜ:   “Ich bin braun, aber gar lieblich, ihr Töchter Jerusalems”

NIV:    Dark am I, yet lovely, O daughters of Jerusalem”

NRS:   “I am black and beautiful, O daughters of Jerusalem”

NJB:    “I am black but lovely, daughters of Jerusalem”

RAB:   “Eu estou morena, porém formosa, ó filhas de Jerusalém”

ERC:    “Eu sou morena, mas agradável, ó filhas de Jerusalém”

TEB:    “Eu sou preta, mas bela, filhas de Jerusalém”

 

            Faz-se necessária aqui, em primeiro lugar, uma análise vocabular e gramatical do texto hebraico que divido aqui em três partes para melhor esclarecimento. 1. “Shehôrâ” é o feminino do adjetivo “shahôr” com o significado de preta ao qual está posposto o pronome pessoal “’anî” (eu). Estes dois vocábulos (predicado e sujeito) formam uma frase nominal, onde se subentendem os verbos “ser/estar”. Com a anteposição do predicado, a ênfase é colocada em uma nova informação ligada a um sujeito já conhecido (SCHNEIDER, § 44.3). Logo, o fato de a mulher ser ou estar preta comunica ao leitor uma novidade. 2. A segunda parte da frase (“wena’wâ”) é iniciada pela conjunção w, cuja vocalização varia de acordo com a combinação com outras letras. W tem, entre outros significados, tanto o de uma conjunção aditiva “e”, quanto o de uma conjunção adversativa mas, porém. No trecho em questão, esta partícula coloca dois termos em oposição: shehôrâ e na’wâ. Este último é também um adjetivo feminino, significando “bela, formosa, graciosa, descente, agradável, conveniente”. 3. Por fim, temos “benôt Yerushalaim” que, literalmente, pode ser traduzido como “filhas de Jerusalém”. Não posso deixar de mencionar aqui que “Yerushalaim” carrega em si o radical de palavras como “paz, plenitude, lei, ensinamento e recompensa”.

 

            Antes de comentar as traduções selecionadas, faz-se mister entender corretamente o que o autor quis dizer com a cor “preta”. Na segunda parte do verso em análise, pelo uso de símile, a mulher é comparada às tendas de Quedar. STADELMANN (1993: 40) esclarece que estas tendas situadas no deserto da Arábia Saudita e habitadas por beduínos (povos hostis à civilização) têm as “lonas confeccionadas com os pêlos pretos das cabras” e que esta metáfora de “tendas da cor do azeviche, aninhadas entre as dunas reverberantes dos raios solares” não seria usada por uma mulher ao descrever seu aspecto físico, teria tão só um cunho “depreciativo”. Portanto, continua, “a cor ‘preta’ (shehôrâ) não é (...) indicação de sua identidade racial, mas cultural e social, pela discriminação entre grupos sociais de diferente nível cultural e procedência social”. As “filhas de Jerusalém”, habitantes refinadas da cidade e de tez clara, formam o contraste com a mulher rústica, de tez escura, bronzeada pelo sol devido ao seu trabalho no campo, como elucida o verso seguinte. Em contraposição à sua “rusticidade”, a amada se descreve como “bela, graciosa”, comparada – na segunda metade do verso também por símile – aos “pavilhões” de Salomão, imagem de suntuosidade; este sentido é dado pela conjunção w empregada aqui em sua conotação adversativa ao unir termos com sentidos opostos: preta – graciosa.

 

            Extremo cuidado é requerido na exegese deste verso. Fora do contexto em que se encontra, a leitura pode vir imbuída de interpretações racistas, o que vai de encontro ao sentido literal do texto. Note-se que Lutero usou “braun” (de pele morena) e em seguida “aber gar lieblich” (mas muito graciosa). Na língua alemã, o adjetivo “braun” designa tanto a cor marrom, castanho quanto a cor da pele morena ou bronzeada, queimada de sol. É neste último sentido que Lutero o emprega e o contrapõe à graciosidade da mulher, enfatizando mesmo o adjetivo “lieblich” ao usar o advérbio “gar” (muito, bastante) nesta conotação de uso freqüente na linguagem poética. As traduções selecionadas em língua inglesa optam pelos adjetivos “dark” e “black”. “Black” traz em si uma conotação racial, designando uma raça de cor negra, podendo ser também às vezes de uso insultante (vide Oxford Advanced Learner’s Dictionary). De acordo com os comentários de STADELMANN vistos acima, este não seria o sentido do texto. Já “dark” indica a cor escura ou morena da pele. Porém, este termo não está livre de ambigüidades, visto que, etimologicamente, provém do Old English “deorc” (relacionado ao alemão atual “tarnen”) com o significado de “escondido, secreto”, mostrando o lado obscuro de algo ou alguém. Ao ligar “dark” e “black” a “lovely”, a NIV e a NJB usaram respectivamente “yet” e “but”, ambas conjunções adversativas. Para evitar obscuridades e margens a outras interpretações, entendo que “tanned” teria sido mais apropriado na tradução do verso, visto ser um adjetivo designando a cor da pele após exposição ao sol.

 

Dentre as versões em língua portuguesa, a versão de Almeida seguiu o pensamento da NIV ao caracterizar a amada como “morena, mas agradável” (ERC) e “morena, porém formosa” (RAB). Já a TEB preferiu o termo “preta” na mesma linha da NJB e da NRS, ao usarem um adjetivo que se refere a indivíduos da raça negra. Contudo, a TEB faz uma referência a uma nota de rodapé, onde tenta esclarecer o sentido de preta: “Não de ‘raça negra’, mas ‘brunida’” e faz alusão ao verbo tisnar usado na sua tradução do verso 6. Para entender esta nota, o leitor deve estar familiarizado com ambos os termos “brunida” e “tisnar”; assim poderá interpretar corretamente a passagem, vislumbrando a pele bronzeada pelo sol e repudiando quaisquer conotações de cunho puramente racista.

 

            E o que dizer de traduções que evitam a conjunção adversativa, procurando, talvez, amenizar o possível impacto causado por “mas, porém”? Martin Buber serve-se da conjunção aditiva “und” em uma linda construção “estrangeira” do alemão, traduzindo literalmente: “Schwarz bin und anmutig ich”. O dicionário Wahrig define schwarz, entre outros significados, como “sehr stark sonnengebräunt” (fortemente queimado de sol), o que evita o problema racial. Em sua lista de significados para a conjunção “und”, Wahrig menciona uma de suas nuanças com sentido de oposição, semelhante ao hebraico “w”, o que aproxima deveras a versão hebraica da alemã graças ao grande mérito de Buber na escolha vocabular. A NRS usa o mesmo recurso com “and”, que, em inglês, pode também ter uma conotação adversativa. É importante ressaltar que, embora apareçam no texto as conjunções und e and, elas não têm, conforme afirma STADELMANN (1993: 40), “sentido aditivo, mas adversativo (...), pois liga[m] orações de sentido contrário”. STADELMANN aponta ainda para o fato de que, se entendermos este verso no sentido de “’black is beautiful’ dos adeptos do movimento cultural da ‘consciência negra’”, incorreremos em uma interpretação falsa do verso, assim como incorreremos também em erro se o interpretarmos preconceituosamente.

 

            Destarte, a tradução exige um alto grau de precisão que procure evitar ambas formas errôneas de interpretação fora do encadeamento de idéias a seu redor. Neste ponto, é de se admirar o recurso acertadamente adotado pela RAB quando escreve: “Eu estou morena, porém formosa”. As línguas anglo-saxônicas não dispõem de dois verbos, como o português e o espanhol, para expressarem a idéia de ser/estar. “Estar” é ser num dado instante. A amada não nasceu negra, preta, morena; ela se tornou morena, ela está neste momento morena. “Eu estou morena” seria o mesmo que dizer em línguas sem a diferença entre ser e estar: “Eu sou bronzeada, sou queimada de sol”.

 

4. CONCLUSÃO

 

            No trabalho que aqui estou concluindo, vimos diversas questões em torno da tradução dos textos sagrados e, após uma pequena contextualização do Cântico dos Cânticos, analisamos e comparamos diferentes traduções de um verso previamente selecionado. Isto veio corroborar a tese inicialmente apresentada de que a comparação de traduções é, com certeza, um meio altamente eficaz para dirimir dúvidas concernentes à aceitabilidade, à clareza, às características de uma determinada versão de um determinado trecho da Bíblia.

 

            Vimos também o uso de notas de rodapé como recurso adotado em traduções, o que ajudaria na elucidação de certas questões ligadas à tradução de trechos ou palavras mais sensíveis à compreensão. Todavia, segundo GOHN, “essas notas seriam de pouca utilidade (...) para a maior parte dos usuários dos textos sagrados, que os recebem muito mais pelo meio auditivo do que pelo meio escrito-visual” (2001: 152). Compartilho esta opinião sem, contudo, desmerecer este dispositivo.

 

            E, outrossim, não foi objetivo aqui escolher “uma” ou “a melhor” dentre as traduções apresentadas, nem isto seria, a meu ver, possível. Segundo SCHLEIERMACHER, o tradutor que escolhe o caminho de levar seus leitores até o mundo do autor, tem a tarefa de mostrar-lhes que têm algo de “estrangeiro” diante de si e “quanto mais a tradução se associar de forma exata às expressões da língua original, tanto mais estranha ela será para o leitor” (1838). Pode-se dizer que foi este método o escolhido pelas versões analisadas neste trabalho e que umas foram em algumas passagens mais “estrangeiras” para o leitor do que outras. SCHLEIERMACHER continua sua explanação demonstrando que, embora diferentes tradutores tenham optado por este modelo de tradução, isto não significa que todas as obras resultem iguais. E “não se poderia dizer que uma seja mais completa no todo ou esteja atrás, mas só partes isoladas são melhores numa, e outras, em outra” (id.). Para alcançarem a completude, as diferentes obras teriam que se relacionar entre si, “mas cada uma terá somente um valor relativo e subjetivo por si” (ibd.).

 

Daí o fato de não priorizar uma em detrimento das outras traduções. Ao contrário, o leitor deve se sentir estimulado a se embrenhar neste fascinante campo da comparação entre traduções, na busca não da perfeição, mas de diferentes estilos, múltiplas interpretações, nuances e encontrar seu “tertium comparationis”.

           


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BOMAN, Thorleif.  Hebrew thought compared with Greek.  Nyak: Norton & Company, 1960.

 

BUBER, Martin.  Die Schriftwerke; verdeutscht von Martin Buber gemeinsam mit Franz Rosenzweig.  Gerlingen: Schneider, 1997.

 

CROWTHER, Jonathan (ed.).  Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English.  5th Edition.  Oxford: Oxford University Press, 1997.  1428 p.

 

GABEL, John B., WHEELER, Charles B.  A Bíblia como literatura; uma introdução.  Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves.  São Paulo: Loyola, 1993.  263 p.

 

GIBSON, Rev. Tim.  Method of interpretation.  Disponível na Internet. http://timshen.faithweb.com/sos/topic4.htm.

 

GOHN, Carlos.  Pesquisas em torno de textos sensíveis: os livros sagrados.  In: PAGANO, Adriana Silvina (org.).  Metodologias de pesquisa em tradução.  Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, 2001.

 

KIRST, Nelson et al.  Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português.  12a. edição.  São Leopoldo e Petrópolis: Sinodal e Vozes, 2000.  305 p.

 

SCHLEIERMACHER, Friedrich.  Sobre os diferentes métodos de tradução. In: HEIDERMANN, Werner (org.).  Clássicos da teoria da tradução: Antologia bilíngue.  Florianópolis: UFSC, Núcleo de tradução, 2001. Vol.1.

 

SCHNEIDER, Wolfgang.  Grammatik des biblischen Hebräisch.  8. Auflage.  München: Claudius Verlag, 1993.  301 p.

 

SCHÖKEL, L. Alonso, ZUNO, E.  La traducción bíblica; Lingüística y Estilística.  Madrid: Cristiandad, 1977.

 

STADELMANN, Luís I. J.  Cântico dos Cânticos.  São Paulo: Loyola, 1993.  224 p.

 

WAHRIG – DEUTSCHES WÖRTERBUCH (Gütersloh, München, Kopenhagen). Bertelsmann Electronic Publishing. 1997. 1 CD-ROM.