A Umbanda: As imagens do inimigo no discurso católico de meados do século XX.

Artur César Isaia
UFSC

No presente texto pretendo comunicar um Projeto de Pesquisa a ser desenvolvido junto ao Departamento de História da UFSC e que tem como tema o discurso da hierarquia católica sobre a Umbanda em meados do século XX.

A leitura do “corpus” documental trabalhado em um Projeto anterior, “Catolicismo versus Umbanda no Brasil Meridional dos anos cinqüenta”, remeteu-me a uma problemática não contemplada no mesmo e que aparece como de capital importância para a compreensão histórica do objeto. Tratava-se da recorrência do discurso católico a saberes por ele qualificados como legítimos para interpretar a realidade brasileira do período. Nessa realidade, o surgimento e proliferação da Umbanda aparecia com uma relevância ímpar, o que é atestado pela criação, em 1952, de um Secretariado Especial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, destinado a enfrentar a escalada da Umbanda e demais “cultos mediúnicos” no mercado de bens simbólicos. Trata-se do Secretariado Nacional de Defesa da Fé.

A Igreja Católica conheceu na década de cinqüenta uma notável transformação organizacional. Sintoma disso pode ser visualizado na criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na Conferência de Religiosos do Brasil e, no contexto latino-americano, a criação do CELAM (Conferência Episcopal Latino-Americana). Se no ponto de vista organizacional as transformações avultam-se, no terreno propriamente doutrinário a Igreja continuava a exercer seu magistério escudada na tradicional autocompreensão romanizante (Poulat, 1971), apresentando uma nostalgia muito grande por um passado, no qual desfrutava de uma posição bem mais cômoda no mercado de bens simbólicos. O discurso continuava a ser apologético, insistindo em uma representação do mundo moderno como um terreno de missão, que era mister converter e salvar (Vallier, 1976). Contudo, a década de cinqüenta revela uma complexidade de problemas em vista dos quais a tradicional lente da hierarquia católica não podia simplesmente permanecer enquadrada no mesmo ângulo. Havia a necessidade premente do discurso católico incorporar temas e abrir-se a análises não redutíveis literal e simplesmente ao magistério papal. É assim que a Igreja Católica, na década de cinqüenta, abriu-se a saber es qualificados como aptos à análise da sociedade e do homem brasileiro. Abre-se, igualmente, a uma análise e a uma ação conjunta com órgãos governamentais, empenhados em fornecer subsídios técnicos ao Estado no afã de implementar o “desenvolvimento”. Era a recorrência a um instrumental teórico capaz de fugir do fantasma do comunismo e, ao mesmo tempo, interpretar as contradições da sociedade brasileira sem persistir em uma identificação pura e simples com a pobreza medieval, característica apresentada tradicionalmente na doutrina social da Igreja. Portanto, recorria-se a saberes reconhecidos como capazes de analisarem e partirem para um “diagnóstico” técnico da realidade brasileira. Era o endosso da Igreja ao ideário desenvolvimentista da década de cinqüenta , que estreitará os vínculos entre a CNBB e, principalmente, o governo Juscelino Kubitschek. (LUSTOSA, 1991, p.63-5).

Se por um lado, o endosso da Igreja ao projeto desenvolvimentista trazia temáticas e posturas práticas diferentes para a hierarquia, por outro, o discurso hierárquico persiste em uma visão extremamente refratária a qualquer possibilidade de pensar-se a realidade brasileira fora da vinculação com o catolicismo. Para a hierarquia, o pluralismo era ainda visto com explícita desconfiança, continuando a assumir uma postura magisterial e missionária frente a tudo o que pudesse contradizer a identificação do Brasil com o catolicismo.

Assim, a emergência da Umbanda no cenário nacional na década de cinqüenta (seu surgimento é anterior, mas seu grande momento de proliferação é que acontecerá nessa conjuntura) passava ser interpretada pela hierarquia como a manifestação mais evidente da sobrevivência de forças denunciadoras do atraso, da marginalidade, da incultura.

No “corpus” já consultado, a Umbanda aparece como manifestação, muitas vezes, de forças atávicas que reclamavam urgentemente a intervenção da Igreja e dos órgãos governamentais, no afã de retirarem o homem brasileiro (usa-se muito a expressão o “homem de cor”) de uma situação de marcada pela miséria material e moral. Um exemplo disso pode-se ler na entrevista dada em 1957 pelo arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer à Rádio Gaúcha sobre as atividades da Umbanda no RS e transcrita na revista da arquidiocese de Porto Alegre:

“A Umbanda é a revivescência das crendices absurdas que os infelizes escravos trouxeram das selvas de sua martirizada pátria africana. Favorecer a Umbanda é involuir, é aumentar a ignorância é agravar doenças, é que de modo especial os poderes legislativo e executivo têm a missão de promover e assegurar.” (SCHERER, 1957:193).

O estudo do discurso produzido pela hierarquia católica dos anos cinqüenta sobre a Umbanda, contribui para a compreensão das transformações inerentes, tanto ao campo religioso brasileiro do período, como à própria sociedade e suas relações de poder. Trata-se do estudo do enfrentamento no interior de uma importante reserva simbólica da sociedade, como a religião (GEERTZ,1978:188), extremamente presente na tessitura social brasileira. O discurso católico sobre a Umbanda no período contribui sensivelmente para a compreensão do dilema enfrentado pela Igreja em meados do século. Por um lado a existência de uma sociedade cada vez mais complexa, completamente distante de uma estrutura de plausibilidade (BERGER, 1985:62) mantenedora de um clima de cristandade, e a proliferação de práticas religiosas como as da Umbanda e do Espiritismo Kardecista, dotadas de uma capacidade própria de comunicação com as significações assumidas na cotidianidade por extensas camadas da sociedade brasileira (WARREN,1984). Por outro lado, a conservação, por parte da Igreja, de um discurso que ,no limite, continuava acenando para a reedificação de uma cristandade dilacerada.(ISAIA, 1996:361).

O estudo do discurso católico sobre a Umbanda levará em consideração, inicialmente, o fato de tratar-se ainda de produção inserida nos ecos de uma autocompreensão romanizante, capaz de valorizar, sobretudo, a fala da hierarquia, que se representava como detentora de um magistério inquestionável e de uma tradição acima da História. Autocompreensão da Igreja é entendida aqui na acepção dada ao termo por autores como Augustin Wernet, Emile Poulat ou Antoine Saucerrote, ou seja como “diversas imagens que a Igreja (...) teve de si mesma; autocompreensões marcadas pelas grandes superestruturas de cada época, seja nas suas formas institucionais, seja em sua linguagem e em seus modos de pensar.” (Wernet,1987:12) Por outro lado, cada autocompreensão coexiste com um peculiar estatuto de relacionamento da Igreja com o mundo, capaz de peculiarizá-la historicamente. Assim, na década de 1950, o relacionamento da Igreja com a sociedade ainda encontra no Estado, uma mediação básica, atestando a sobrevivência da noção tridentina de sociedade perfeita com a medieval, de cristandade: Decorre daí o porquê da presença da categoria Estado. Sem dúvida, o Estado ainda ocupa um lugar de interlocutor privilegiado no discurso católico do período, representando os órgãos técnicos e de planejamento estatal, criados com o fim de implementarem a política desenvolvimentista, parceiros imediatos da Igreja brasileira.(Ver Lustosa, 1991:65 e segs.) Além de Lustosa, a parceria entre catolicismo e experiências desenolvimentistas capitaneadas pelo Estado é defendida, igualmente, entre outros, por Cândido Procópio Ferreira de Camargo:

 “Um capitalismo corrigido: é onde a Igreja se compromete. Para tanto, concorreu, sem dúvida o fato de que a condenação vaticana ao comunismo era absoluta, ao passo que a do capitalismo jamais se fez sem qualificações (...) É que, entre os dois inimigos ..., na bipolaridade acentuada com a guerra fria, a Igreja já escolhera seu aliado. Roma, sob muitos aspectos e de diferentes maneiras, é agora uma poderosa caixa de ressonância ideológica de Washington...Não há que se admirar de que  desenvolvimentismo, em diferentes formulações, tenha encontrado, em setores progressistas do episcopado, aliados fervorosos. E tenha transformado esses setores no alvo dos ataques das classes conservadoras.”(CAMARGO,PERUCCI,SOUZA,1986:364).

 Dessa forma, a presença do Estado no discurso católico da década de cinqüenta está ligada a uma determinada autocompreensão e estatuto peculiar de relacionamento com a sociedade. Portanto ela é datada, histórica. Não representa uma leitura do poder centrada no institucional. O poder (e aqui interessa-nos, principalmente o poder de criar verdades socialmente aceitas) é visto em uma perspectiva relacional, fazendo referência à noção foucaultiana. Portanto, o poder será visto como sem titular, sem lugar fixo. Como prática que reafirma historicamente seu caráter mutável, plástico, relacional (FOUCAULT,1981).

Assim, tanto o poder do Estado e de todo o universo institucional, quanto os infinitos poderes que circulam pela sociedade, relacionam-se em um jogo especular marcado circularmente pela criação de verdades. A relação entre poder e verdade será perseguida nesse Projeto, apelando-se para a noção foucaultiana de dispositivo:

“Através do termo, tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT,1981:244).

Nesse jogo, o poder de nomear a realidade ainda privilegiava a Igreja Católica, em se tratando do Brasil da década de cinqüenta. A Igreja continua a aparecer como força legitimante de vulto, capaz de relacionar as frágeis instituições humanas ao sagrado “realissimum” (Berger,1985). Por outro lado, a importância que a voz da igreja tem em espaços laicos (nesse Projeto perseguiremos, sobretudo, a imprensa laica) atesta a sua ressonância social. A Igreja usará esse lugar privilegiado para tornar pública uma representação da Umbanda como a negação pura e simples da verdade aceita socialmente. Ainda mais que a Umbanda representava-se à sociedade com um conteúdo manifestamente nacionalista, desafiando a relação defendida pela hierarquia católica entre Brasil e catolicismo (CONCONE,1987;ISAIA, 1997). Em uma conjuntura em que a miragem desenvolvimentista impunha-se à opinião pública, perseguir-se-á a vinculação construída pelo catolicismo entre Umbanda e atraso, marginalidade, incultura.

O estudo do projeto católico de desqualificação da Umbanda no período investigado, amparando-se na noção de dispositivo foucaultiano, obviamente que perseguirá os momentos de intercessão, onde diferentes saberes (e poderes) intercruzam-se, para, muito além da mera coerência lógica entre os mesmos, reafirmarem e reconstruírem a verdade socialmente aceita. Assim, a recorrência do discurso católico a saberes como o jurídico, médico, sem falar no produzido pela tecno-burocracia estatal através, sobretudo, de sociólogos e economistas é de suma importância nesse estudo.

O material empírico já trabalhado remete-nos claramente para essa busca, por parte do discurso católico, de qualificar a sua voz (na década de cinqüenta aprofunda-se a relativização da voz da Igreja, fazendo-a recorrer a diferentes saberes qualificados socialmente como intérpretes da verdade), apelando para um conhecimento tido como “científico”, “objetivo”. A recorrência do discurso católico a esses saberes, com a preocupação de revestir-se de um foro de “objetividade”, capaz de aumentar sua força persuasiva, será analisada como evidência fenomenológica de seu contrário. Ou seja, a recorrência do discurso católico a saberes tidos como “objetivos”, isentos de interesses e longe da busca de poder, configura, justamente a valorização de “crenças sem memória”, de imagens marcadas pelo fantasmagórico, pelo fantástico, que esbarram muitas vezes no domínio do senso comum, dos preconceitos. Foucault, referindo-se ao contrário do “fazer-se verdadeiro”, típico da pretensão científica, usa uma expressão emblemática: “teratologia do saber”, que se refere à recorrência do discurso científico a proposições míticas, metafóricas:

“...a partir do século XIX, uma proposição não era mais médica, ela caía fora da medicina e adquiria valor de fantasma individual ou de crendice popular se pusesse em jogo noções a uma só vez metafóricas, qualitativas e substanciais (como de engasgo, de líquidos esquentados...); ela podia e devia recorrer, em contrapartida, a noções tão igualmente metafóricas, mas construídas sobre outro modelo, funcional e fisiológico (era a irritação, inflamação ou a degenerescência dos tecidos) (...) O exterior de uma ciência é mais ou menos povoado do que se crê: certamente, há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzem sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não haja erros em sentido estrito, porque o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida; em contrapartida, rondam monstros cuja forma muda com a história do saber.” (Foucault,1996:32-3).

Assim, enfoca-se o discurso católico do período estudado, perseguindo-se a presença dessas “crenças sem memória”, que se manifestavam na recorrência a proposições reforçadoras de idéias preconcebidas. Um exemplo disso podemos visualizar na obra do mais conhecido e influente intelectual católico do período: Boaventura Kloppenburg. A recorrência ao saber psiquiátrico é uma constante na sua obra, com o intuito de enfatizar a objetividade e cientificidade dos interditos católicos em relação à Umbanda. Vê-se que a argumentação não busca única e exclusivamente a tradição católica, sua exegese bíblica, a citação de Cartas Pastorais e Encíclicas. O saber psiquiátrico é invocado, corroborando os argumentos típicos da instituição eclesial, em uma conjuntura em que a Igreja é constrangida a aprofundar sua vivência com os dilemas do pluralismo. Esse saber psiquiátrico, presente nas constantes citações de diretores de hospício, médicos sanitaristas, etc., acentava-se em uma idéia muito cara à clínica médica do século XIX, ou seja, a seu projeto higienizador e civilizador, capaz, segundo Birman, de legitimar as desigualdades e impor padrões de sanidade (BIRMAN,1982). Um exemplo dessa recorrência ao saber psiquiátrico na condenação da Umbanda, lemos em Kloppenburg:

 “Perguntamos, anos atrás, a um grupo de médicos psiquiatras e especialistas em doenças nervosas se é aconselhável, sob o ponto de vista psíquico e médico, “desenvolver a mediunidade” ou “provocar fenômenos espíritas”. E todos, com absoluta unanimidade, responderam negativamente, declarando que semelhantes práticas são “nocivas”, ”prejudiciais”, “perigosíssimas”, etc. (...) São clamores das autoridades competentes a gritar que as práticas espíritas e umbandistas contrariam a ordem pública, e que, por isso, são contra a Constituição que veda expressamente o exercício da “religião” que “contraria a ordem pública” (KLOPPENBURG, 1961:195-7).

A explicação do transe como patologia está perfeitamente inserida na visão higienizadora e civilizadora da clínica médica do século XIX enfocada por Birman. Em se tratando de Brasil, Raymundo Nina Rodrigues (não é mera coincidência de tratar-se de um médico), estudou o fenômeno da possessão nos candomblés da Bahia, vendo a mesma como um sintoma de uma predisposição do negro à histeria. Relacionada à inadequada integração do negro à cultura branca, a possessão era um indício seguro de patologia e de predisposições atávicas (NINA RODRIGUES,1935).

Claro que a sobrevivência dessas crenças fantasmagóricas e sem memória, como quer Foucault, onde o preconceito, o agir operativo é invocado com foros de objetividade, vinha completamente ao encontro de um discurso, como o católico, interessado em desqualificar as práticas umbandistas. Ao subdesenvolvimento, denunciado na proliferação da Umbanda no Brasil, o discurso católico contrapunha uma visão missionária do progresso. Essa representação da Umbanda como ligada umbilicalmente à patologia e ao atraso aparece de forma reincidente no “corpus” documental já trabalhado, acentuando o caráter redentor e civilizador do discurso da Igreja, numa clara interseção com o ideário desenvolvimentista vigente no período.

Maria Isaura Pereira de Queiroz, analisando as transformações operadas na idéia de identidade nacional na década de 1920, salientando o caráter antropofágico do “ser brasileiro” proposto pelos modernistas, capaz de digerir os traços culturais diversos existentes no país, conclui por um “acordo inconsciente” entre elite intelectual e povo. Acordo este que teria na Umbanda sua representação mais sensível:

“Nas camadas ilustradas do país, a nova noção tomava a forma de uma filosofia e de uma nova definição da identidade nacional; nas camadas menos afortunadas, em lugar de conceitos, surgiu uma nova maneira de lidar com o sobrenatural, subentendendo também uma filosofia e caminhando no mesmo sentido, o da revalorização das culturas consideradas inferiores. Inconscientes de seu acordo, camadas superiores e camadas subordinadas do país demonstravam, ao mesmo tempo, uma mesma opinião a respeito da identidade cultural brasileira” (QUEIROZ,1988:76).

Mesmo não se endossando a idéia de “acordo inconsciente” proposta pela autora, o fato é que a Umbanda conhece no final da década de quarenta e durante os anos cinqüenta, uma proliferação de vulto. Nesse crescimento, a nova religião apresenta-se como tipicamente nacional, endossando a idéia de democracia racial e enfrentando a representação de um Brasil católico elaborada pela Igreja. Ortiz vislumbra essa particularidade da Umbanda em se representar como genuinamente brasileira, distante das chamadas “religiões de importação”. (ORTIZ,1978:14).

Enfoca-se, nesse estudo, o discurso católico sobre a Umbanda, tentando vislumbrar no mesmo um projeto desqualificador da representação da nova religião, não só como religião, mas como brasileira. Com isso, buscar-se-á no discurso católico a recorrência a saberes qualificados socialmente para corroborarem a improcedência dessa vinculação. Buscar-se-á, ao lado da recorrência ao saber médico e técnico do período, a sobrevivência de uma formação discursiva típica do final do século XIX, que remete diretamente para um projeto branqueador e desqualificador, capaz de encarar negativamente a idéia de sincretismo que aparecia nas representações da Umbanda sobre o “ser brasileiro”. (ORTIZ,1978;QUEIROZ, 1988). Obviamente não utilizaremos o termo sincretismo como categoria, como instrumental analítico nesse Projeto. O referido termo refere-se somente a uma realidade empírica, histórica, datada, própria de uma noção de cultura brasileira. Referindo-se a essa matriz intelectual, que teve em Nina Rodrigues e Silvio Romero elementos de proa, escreve Queiroz;

“Embora reconhecendo a existência de tal fato (refere-se ao sincretismo), os intelectuais da época o deploravam; encaravam-no como uma combinação pouco coerente de elementos díspares e encontravam nesta mistura o principal obstáculo ao desenvolvimento do país” (QUEIROZ,1988:60).

É justamente essa matriz intelectual, capaz de constatar a herança sincrética, mas, ao mesmo tempo deplorá-la, que aparece nos textos católicos sobre a Umbanda na década de cinqüenta, conforme já nos referimos em outro trabalho, mostrando o posicionamento católico frente às manifestações culturais de negros, índios e mestiços em meados século XX. (ISAIA, 1998).

Encarar uma matriz intelectual como integrante de uma formação discursiva, significa enfocá-la não apenas como mero “ventre de discursos”. Com isso endossamos aqui a leitura que Orlandi fez de Pêcheux. Portanto as formações discursivas são vistas aqui apenas como “pontos de atracagem”, “sítios de significância”, marcados pela contradição e pelas diferenças. Ao invés de meras matrizes que mecanicamente geram discursos, as formações discursivas estão em contínuo movimento, em constante processo de reconfiguração. “Delimitam-se por aproximações e afastamentos. mas em cada gesto de significação (de interpretação) elas se estabelecem e determinam as relações de sentido, mesmo que momentaneamente” (ORLANDI,1994:11).

Assim, trataremos o discurso católico da década de cinqüenta aproximando-o de “um já dito”, que, ao contrário de antecipá-lo, estabelecerá com ele jogos de aproximações e afastamentos próprios da atividade significadora do homem. Jogos esses, sempre permeados pela dimensão do político, pelo exercício das infinitas formas relacionais de poder, pela presença , em suma, da noção foucaultiana de dispositivo.

É dessa forma que vamos enfocar o “trânsito” do discurso católico dos anos cinqüenta a dizeres, que, tanto referentes a saberes institucionalizados, como próprios do senso comum, exercerão esse papel de “pontos de atracagem”, capaz interagirem constantemente na ressignificação da realidade.

O tema do progresso aparece em nosso estudo como importante formação discursiva em torno da qual gravitacionavam, tanto o discurso católico, como boa parte da produção intelectual da época. Além disso, a idéia redentora de progresso assumida pelas elites acenava para a reafirmação da supeição da capacidade de participação e geração de projetos autônomos das classes populares, detectada por Pécaut. (Pécaut,1990).

Pretende-se trabalhar primeiramente com fontes pertinentes à Igreja Católica. Essas fontes dizem respeito, em primeiro lugar, ao centro decisório do catolicismo da época (Rio de Janeiro e São Paulo). Ao mesmo tempo serão consultadas as fontes relativas ao catolicismo notadamente no Centro-Sul do Brasil, onde, sem dúvida, abunda uma variedade muito grande de jornais, revistas, boletins católicos, etc, como evidência da vitalidade da hierarquia eclesiástica na região meridional. Embora o posicionamento católico não se esgote nessa realidade, não podemos nos esquecer que estamos trabalhando ainda com uma autocompreensão de Igreja, extremamente piramidal, no qual o poder ainda exerce-se de forma vertical. Daí a ênfase na voz daqueles que, nessa autocompreensão, falam por Deus. Como foi dito anteriormente, não acreditamos em um poder localizado. As formas de exercício do poder são históricas e relacionais, inclusive na Igreja Católica. Agora, em se tratando da autompreensão ainda vigente na década de cinqüenta, o poder e a apropriação da palavra exerciam-se, sem dúvida, com ênfase na autoridade hierárquica. Nesse modelo de catolicismo amplifica-se a assimetria de posições detectada por Orlandi no discurso religioso, quando afirma que, no mesmo, o locutor (Deus e aqueles que têm poder de falar por Ele) e ouvinte (a massa anônima dos fiéis) habitam planos diferentes, daí decorrendo o desnivelamento básico de posições entre os mesmos:

“...locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal...Na desigualdade, Deus domina os homens” (ORLANDI,1987:243).

O estudo privilegiará, igualmente, uma documentação que diz respeito à Umbanda. Livros de intelectuais da nova religião, obras doutrinárias, assim como jornais, revistas, boletins, estatutos de centros, etc. Em se tratando da Umbanda, a utilização das fontes escritas é importantíssima para a compreensão da construção de sua identidade. Dessa forma, contrariamente ao candomblé, onde a transmissão oral da cultura configura um dos pontos basilares do sistema religioso, a vivência do sagrado na Umbanda acena para uma valorização muito grande (mas que longe estamos de pensar excludente) da palavra escrita. (MONTERO&ORTIZ, 1976:412).

Por outro lado, pretende-se trabalhar com entrevistas com dirigentes e adeptos da Umbanda. A utilização dessas entrevistas longe está de configurar um afastamento nos caminhos traçados no estudo pretendido Perseguindo o viés das experiências pessoais, ela representa a tentativa de compreendermos o contraponto da Umbanda ao discurso de sua desqualificação, apelando também para registros biográficos da memória, para o vivido. Este, longe de acentuar uma realidade impessoal como “a Umbanda”, “o catolicismo”, etc., explicita sujeitos capazes de recuperarem o “vivido conforme concebido por quem viveu” (ALBERTI,1989:5). A presença das entrevistas no estudo a que nos propomos dá-se visando a compreensão do “universal nas diferenças”.(ALBERTI, 1985:7).

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