AS  INFLUÊNCIAS  DA LÓGICA MERCADOLÓGICA SOBRE AS RECENTES TRANSFORMAÇÕES NA IGREJA CATÓLICA

                                                                                                                        Lemuel Guerra[1]

 

Nosso propósito neste artigo é discutir, usando os pressupostos do Paradigma do Mercado Religioso, que tem em Berger (1985) Finke & Stark (1988, 1992) e Stark & Iannaccone (1994),  seus principais formuladores, as transformações que se realizam nos modelos de religiosidade em termos de moldagem dos seus discursos e práticas religiosas, a partir de modificações na constituição interna da esfera  da religião no Brasil, no final do século XX.  Privilegia-se aqui a definição institucional do fenômeno religioso, sendo nosso objetivo demonstrar que, acima de todos os fatores que influenciam a dinâmica da esfera da religião, têm preponderância aqueles ligados ao nível de concorrência entre organizações religiosas e suas influências sobre a preocupação das mesmas com as questões de sobrevivência institucional, manutenção e expansão dos espaços ocupados no campo religioso e na sociedade. 

 

A lógica mercadológica sob a qual a esfera da religião opera, produz, entre outras coisas, o aumento da importância das necessidades e desejos das pessoas na definição dos modelos de práticas e discursos religiosos a serem oferecidos no mercado,  ao mesmo tempo que demanda das organizações religiosas maior flexibilidade em termos de mudança de seus "produtos"  no sentido de adequá-los da melhor maneira possível para a satisfação da demanda religiosa dos indivíduos.

 

Nos contextos de pluralismo acentuado em que vivemos, passou o tempo em que as instituições religiosas podiam propor à sociedade um conjunto de exigências relativas à fé e aos comportamentos,  esperando uma aceitação social imediata.  Nas sociedades contemporâneas, onde os indivíduos são crescentemente orientados para decidir livremente a respeito de que modelo de religiosidade (quando escolhem um) vão adotar, o que as organizações religiosas oferecem tem que ser atrativo para os potenciais consumidores.  Assim, o ethos do consumo, que prevalece em termos de sociedade inclusiva,  e o pluralismo do campo religioso, são elementos fundamentais para entender como a lógica mercadológica determina a dinâmica de transformações dos modelos de religiosidade.

 

A partir desse ponto de vista, examinaremos, a seguir, alguns fatos da história recente da religião no Brasil,  apresentando uma interpretação do processo pelo qual a Igreja Católica vai perdendo sua posição de monopólio no mercado religioso nacional e se vê pressionada à realização de mudanças reativas em seus discursos e práticas religiosas, refletidas hegemonização do modelo carismático, que vai, aos poucos, substituindo a preponderância anterior do modelo progressista.

 

1 . Os modelos de religiosidade e a influência das forças de mercado

 

O que está em jogo, quando as hierarquias das instituições religiosas abrem espaço para que prevaleça um determinado modelo de religiosidade, em detrimento de outro(s), é a eficácia do conjunto de significados e de visões do mundo que são oferecidos à massa de fiéis atuais e potenciais.  Assim, as modificações introduzidas em termos de discursos e práticas religiosas se constituem num esforço no sentido de tornar, a cada momento, o produto  religioso oferecido mais eficiente - em termos de eficácia simbólica -, em atender as necessidades religiosas dos fiéis.

 

Partimos de uma  abordagem  que enfatiza, portanto, a crescente necessidade que  as diferentes organizações têm de se sintonizar com o perfil dos fiéis - consumidores -,   no sentido de moldar a mensagem, as atividades, os estilos de celebração, os temários dos sermões e outros aspectos do modelo de religiosidade em consonância com a demanda dos indivíduos.  Essa dependência das instituições religiosas em relação à vontade dos consumidores parece variar de maneira diretamente proporcional ao nível de competição em um dado mercado religioso e também se relaciona com as mudanças no papel social da religião na vida dos indivíduos, que têm produzido, entre outras coisas,  uma tendência que aponta para um consumo fragmentário de religiosidade.

 

Essa necessidade de um olhar sempre atento às características da demanda dos consumidores de religião sofre, portanto, a influência das características estruturais da concorrência no campo religioso.  As condições sob as quais  operam as organizações religiosas, - ou, se quisermos usar os termos do Paradigma do Mercado Religioso, as regras de regulação da economia religiosa, e, de maneira destacada, os níveis de competição aos quais se submetem as organizações religiosas -, também atuam no sentido de determinar uma maior ou menor suscetibilidade da instituição à demanda religiosa dos indivíduos.

 

No caso da Igreja Católica no Brasil, cujas recentes transformações pretendemos enfatizar neste artigo, o que temos observado é a convivência de múltiplas maneiras  de conceber a identidade católica.  Embora exista na instituição um alto grau de hierarquização, o que ocorre é uma luta ideológica entre diferentes concepções de Igreja, que acontece no espaço de autonomia dos bispos e padres locais.

 

As divergências na definição do que é ser católico e a respeito de como deve atuar a Igreja Católica, existentes no seu espaço eclesiástico,  são determinadas, dentre outros fatores: a) pelas diferenças existentes entre facções de religiosos, relativas às definições dos objetivos da instituição; b) pelas suas variadas concepções  a respeito dos meios para alcançar as finalidades institucionais escolhidas; c) pelo enfrentamento de posições ideológicas contrárias, a respeito da maneira pela qual a proposta de religiosidade católica deve se posicionar em relação às questões ligadas às estruturas de poder vigentes na sociedade; d)pela força da demanda dos consumidores. 

 

De qualquer maneira, acreditamos que essas divergências tendem a ser resolvidas levando em consideração o caráter institucional da Igreja Católica, ainda mais em situações em que o campo religioso se estruture em termos de mercado desregulado, nas quais  as organizações religiosas tenderão a se preocupar com questões ligadas a sua sobrevivência, à manutenção e expansão dos espaços ocupados.  Nesse sentido,   por causa do acirramento da competição, as organizações religiosas em geral, e a Igreja Católica em particular,  tendem a moldar seus discursos e seu conjunto de práticas sacramentais em referência às características da demanda dos fiéis já conquistados e do público a ser atingido.  É o que tentaremos demonstrar na análise que fazemos a seguir da tendência atualmente em curso à passagem da hegemonia do modelo progressista para a predominância do modelo católico-carismático.

 

1 . 2 . O Modelo Progressista de catolicismo

 

Entendemos a adoção desse modelo e a posterior restauração conservadora e, no âmbito desta, a força do Movimento Carismático, como o resultado dos esforços que a Igreja faz para adaptar sua proposta de religiosidade às novas condições de mercado e de competição, que exigiam uma atenção crescente à demanda dos consumidores reais e potenciais de religião.  As transformações na configuração do mercado religioso nacional podem ser observadas nos dados dos censos nacionais referentes ao crescimento dos evangélicos no Brasil, que apontam para a década de 50 como o início de um processo mais acentuado  de descatolicização do país, como vemos na tabela a seguir:

EVOLUÇÃO DAS PORCENTAGEM DE CATÓLICOS E DE SEUS CONCORRENTES NO BRASIL

 

1940

1950

1960

1970

1980

1990

População/

41236315

  61944397

70191370

94139037

119002706

146825475

Católicos

 95.0

 93.4

 93.0

  91.7

 89.0

 83.3

Evangélicos

   2.6

   3.3

   4.0

  5.2

  6.6

   9.0

Espíritas

   1.1

   1.6

   1.4

  1.3

  1.2

   1.6

Outras

   0.8

   0.8

   1.0

  1.0

  1.2

   1.0

Sem religião

   0.5

   0.8

   0.5

  0.8

  1.8

   5.1

Fonte: Censos do IBGE.

 

Esse processo pode ser entendido menos como um sinal de decadência institucional católica do que como o resultado do aumento na ofensiva dos evangélicos no país, que produz um gradual crescimento do número de adeptos das igrejas dos "crentes", colocando sob questão o monopólio do mercado religioso,  exercido pela Igreja Católica no campo religioso desde os tempos da colônia.

 

A ameaça concreta, que os números revelavam já no censo de 1960, exigia uma ação efetiva da Igreja.  Era preciso dar uma resposta institucional ao avanço dos evangélicos/protestantes, possibilitado, inclusive,  pelo fato de que enfrentavam uma Igreja Católica enfraquecida pelo fortalecimento da secularização e do "livre pensamento".   Para entender as medidas tomadas e as transformações realizadas no sentido da adoção do modelo progressista na Igreja Católica, precisamos ter claros alguns elementos do contexto histórico no qual operavam as diversas organizações religiosas naquele período.

 

Se olharmos para o período que vai até meados da década de 60 do século passado, veremos uma Igreja que se aliava ao governo e às elites dominantes, e com uma proposta de religiosidade mais dirigida para setores médios e urbanos, inclusive devido à escassez de efetivos.  Especificamente no período que vai de 1950 a 1963, a Igreja atua como coordenadora em vários movimentos e programas governamentais, que tinham como objetivo a construção de um país mais desenvolvido e economicamente mais autônomo. Não podemos esquecer que essa atuação "social" era uma oportunidade de marcar presença em termos políticos, e, nos casos de programas de assistência social às camadas mais pobres da população, uma chance de atuar em setores historicamente desprezados pela Igreja (cf. Bruneau, 1974; Mainwaring, 1986).

 

No que se refere à conjuntura propriamente religiosa do período acima citado, o dado mais importante é o avanço dos evangélicos, por um lado, e da umbanda, por outro - mais dos primeiros, com sua defesa do exclusivismo religioso, do que dos segundos, graças aos seus padrões flexíveis de participação religiosa, associados aos menores graus de institucionalização -, que colocava em cheque a hegemonia absoluta da Igreja Católica no país.  Se refinarmos as informações relativas às estatísticas de crescimento dos evangélicos e dos afro-brasileiros, notaremos que o principal alvo e público desses modelos de religiosidade eram as camadas pobres da população, que, sobretudo naquele momento, constituíam a ampla maioria no país.

 

Somente esse elemento referente ao aumento da competição no campo religioso já seria suficiente para justificar a tomada de medidas destinadas a tornar a concorrência com os pentecostais e afro-brasileiros pela preferência dos fiéis das camadas populares - onde as duas propostas faziam mais sucesso - mais agressiva e competente.   A adoção do progressismo, uma proposta de religiosidade que deveria contemplar os segmentos sociais citados se inscreve no conjunto de ações reativas implementadas.  Ao nosso ver, no entanto, é o golpe militar e as modificações políticas que ele acarreta que completam o cenário no qual a estratégia de competição adotada pela Igreja se articula de maneira mais precisa.

 

Gradativamente as condições para a adoção do modelo progressista de Igreja iam se fortalecendo: (1) a perda de espaço em termos de articulação com o Estado, e, por conseqüência a diminuição da influência na sociedade, juntamente com (2) a nova conjuntura do campo religioso, crescentemente organizado em termos de mercado religioso, na medida em que a adesão religiosa se baseava cada vez menos na tradição e mais na escolha livre dos indivíduos, situação que se traduzia no aumento da expressão evangélica - num certo sentido, também adquirem mais visibilidade as afro-brasileiras e os espíritas, mas em grau muito menor do que os evangélicos, estes sim com igrejas altamente articuladas, exclusivistas e opostas ao catolicismo.  No caso das afro-brasileiras, e mesmo dos espíritas,  movimentos mais informais, raramente foram observados enfrentamentos explícitos com a Igreja Católica.  Isso não impediu que surgisse toda uma literatura polêmica, já nos anos 40 e 50, no âmbito da qual se destaca  Kloppenburg, sobre umbandistas e espíritas (cf. Motta, 1998) - no mesmo mercado, além da (3) concorrência com projetos políticos de esquerda, que se propunham às massas como alternativas de "salvação" e de explicação e significação do mundo,  são dados que vão influenciar significativamente o desenrolar dos fatos no espaço intraeclesial católico, que desembocam na hegemonia do modelo progressista de Igreja.

 

Em termos do campo internacional, as transformações institucionais provocadas pelo Concílio Vaticano II e a Conferência dos Bispos da América Latina, realizada em 1968 na cidade de Medellin, expressaram uma preocupação  da Igreja em "ir ao povo" e com a reconquista das massas, sendo observado um deslocamento de suas bases sociais das classes médias para as classes subalternas.  Esse movimento implicou numa série de tentativas de redefinição da visão  da Igreja a respeito da cultura popular e  um direcionamento preferencial das atividades,  práticas e discursos  para as camadas pobres da população.

 

O segundo grupo de elementos do cenário em que se consolida o modelo progressista  católico, refere-se à conjuntura sócio-política nacional, que vai "empurrar" a Igreja para assumir uma postura de porta-voz da sociedade civil, construindo uma interlocução de cunho oposicionista e contestatório  com  o governo.

 

A pressão exercida pela sociedade civil sobre a Igreja representava o reconhecimento da posição de poder exercida pela instituição na sociedade, o que a transformava  num lugar de veiculação do discurso de várias entidades populares que se tornaram clandestinas após o golpe.  A principal novidade em termos de prática eclesiástica trazida pelo modelo progressista de Igreja, as Comunidades Eclesiais de Base, foi uma tentativa de atender à demanda de setores da sociedade tais como os estudantes, os trabalhadores sindicalizados, intelectuais e mais tardiamente, os movimentos de negros e de mulheres, por espaços de mobilização e contestação do autoritarismo.

 

No período que vai do final da década de 60 até o final dos anos 80 do século passado, as CEBs se multiplicaram em todo o país, propondo uma religiosidade que era, sobretudo, intelectualizada e politicamente engajada.  Como veremos a seguir, ao discutir a passagem do modelo progressista para a hegemonia da proposta conservadora Igreja, por terem os basistas superestimado a demanda de grupos politizados por espaços de expressão política - que enfrentavam uma conjuntura de repressão e perseguição e se "refugiaram" na Igreja -,  ao mesmo tempo em que colocavam em segundo plano as necessidades relativas à mística, à espiritualidade vertical e de respostas aos problemas práticos individuais, vão experimentar  a rejeição do seu modelo pelo público ao qual a Igreja Popular pretendia atender.

 

Se, por um lado,  a Igreja ganhava em visibilidade na sociedade, já que, investida de um poder moral decorrente de sua posição social, enfrentava o governo abertamente, por outro lado, ela vai favorecer os concorrentes dentro do mercado religioso brasileiro, que ofereciam justamente  modelos de religiosidade  despolitizados, dirigidos para uma visão mais extramundana das práticas e discursos religiosos e dedicados ao provimento de alternativas para as dificuldades cotidianas das pessoas, tais como o desemprego, as doenças, as complicações na vida familiar e outras dessa ordem.  Sob as condições macro-sociais mencionadas, os pentecostais e afro-brasileiros ganham  um espaço considerável de atuação com a invenção e disseminação das CEBs pela Igreja Popular, justamente entre aqueles indivíduos dos segmentos aos quais a proposta progressista  pretendia atingir.

 

É a preocupação com a concorrência crescente com outras formas de religiosidade que  constitui o terceiro elemento do cenário em que surge o modelo progressista de Igreja.  A  opção pelos pobres,  que é anunciada nesse modelo, reflete a preocupação da instituição em preparar uma reação organizacional católica ao avanço dos evangélicos e afro-brasileiros nas camadas desfavorecidas do país, que se acentuara desde o fim da década de 50.  A perda de fiéis para essas propostas de religiosidade colocava o problema da ênfase dada pela Igreja às classes médias e dominantes e provocou a mudança de foco dos discursos e práticas católicas, no sentido de construir uma "Igreja que nascia do Povo",  uma  "Igreja das Bases" ou ainda uma "Igreja Popular".   Embora o  principal  motivo alegado para fundamentar a "opção pelos pobres" tenha sido o fato de que o clamor deles - originado pelo aumento dos níveis de miséria, de pobreza e de injustiça social nos tempos do "Brasil, Ame-o ou deixe-o", no qual se produzia um milagre das altas taxas de riqueza, alto desempenho do PIB, altos níveis de outros indicadores gerais da economia e ao mesmo tempo altas taxas de exclusão social -, tinha sido ouvido pela Igreja, com o passar do tempo essa motivação vai aos poucos  perdendo as condições de sua legitimidade.   O que se observa é que mesmo com o agravamento da situação social de forte exclusão que não deixou de piorar desde então, o caráter institucional e organizacional, que também fundamentara a adoção estratégica da proposta, foi se fortalecendo até suplantar aquele explicitado como razão do progressismo, principalmente em face do aparecimento das estatísticas sobre a crescente perda de fiéis, que não aceitavam o estilo racionalizado e secularizado das CEBs e diziam isso  saindo da Igreja para as igrejas e seitas de inspiração pentecostal.

 

Assim, como a preocupação institucional com a manutenção dos níveis de poder e influência na sociedade abre as portas da Igreja para a proposta de Igreja Popular e das CEBs, é a importância que a instituição dá à garantia da sua hegemonia em termos de mercado religioso que torna possível a cessão de espaço para a Reação Neoconservadora.  Ao reconhecer o fracasso das Comunidades como estratégia para atingir os pobres - que, de acordo com as estatísticas tendiam a optar pelos pentecostais e pelas afro-brasileiras -, mesmo em face da continuação dos processos de empobrecimento de amplos setores da população e da agudização da exclusão social no Brasil, a hierarquia cria condições para o florescimento do Movimento de Renovação Carismática que, adotando uma direção contrária à da Igreja Progressista, será sua principal arma na competição contra os pentecostais, seus principais concorrentes no mercado religioso.

 

O fato de que a proposta das  CEBs, embora elaborada em referência aos pobres, tenha tido uma

aceitação  muito  abaixo  da  expectativa, representa um sinal de que houve alguns problemas na maneira pela qual a estratégia de atingimento dos segmentos sociais desfavorecidos foi construída.  Na linguagem de mercado, diríamos que houve uma avaliação equivocada da demanda, que por sua vez provocou uma elaboração do produto descolada das  necessidades e interesses efetivos do público alvo.

 

É preciso compreender que a luta entre pentecostais e católicos, acentuada na segunda parte do século, era (e continua sendo)  uma disputa por quantidade de fiéis, ou de "fatias de mercado", que se traduzia também na legitimidade de falar pelo povo.  Tratava-se  também de uma questão de propor modelos  de padrões de liderança, de práticas religiosas e de discursos com os quais os indivíduos se  identificassem e, por conseguinte, decidissem  por uma  afiliação efetiva a eles e pela participação nas instituições que os veiculavam.

 

A conjuntura de mercado religioso não parou de evoluir desde então.  Como veremos a seguir, tanto a Igreja Católica vai implementar mudanças - relacionadas não somente ao espaço interno do mercado, mas também ligadas às transformações da situação sócio-política nacional -, como os pentecostais, evangélicos tradicionais e outras organizações religiosas vão experimentar dinâmicas influenciadas pela sempre crescente concorrência pela preferência dos fiéis e pelos aspectos de mercadoria que a lógica mercadológica impõe à produção e disponibilização de propostas de religiosidade.

 

2 .  O  Movimento    Carismático       Católico    como estratégia  de concorrência com pentecostais   e neo-pentecostais

 

A idéia principal que apresentamos nessa seção é a de que o ressurgimento do Movimento Carismático Católico, nas dimensões observadas,  somente foi possível por dois motivos principais: (1) a emergência e hegemonia da Reação Conservadora no espaço eclesial católico; e (2) as condições existentes no mercado religioso nacional que apontavam como principal concorrente do catolicismo na região os pentecostais e neo-pentecostais.  A Renovação Carismática Católica se constituiu como uma possibilidade concreta de que a Igreja  atue em duas direções simultâneas: uma referida ao espaço externo à Igreja, visando restringir a ação expansionista dos pentecostais; outra, ao espaço intraeclesial, limitando o espaço dos setores progressistas católicos.

 

A vitória dos conservadores na Igreja Católica criou condições institucionais para o florescimento do novo modelo de ser igreja, cuja implementação significou justamente a possibilidade de oferecimento, no âmbito do catolicismo, de uma proposta de religiosidade que poderia atender às necessidades da demanda religiosa dos fiéis por espiritualidade e misticismo, reprimidas durante o período em que o modelo da Igreja Popular prevaleceu.

 

É significativo aqui o fato de que o modelo dos Carismáticos Católicos se assemelhe em muitos aspectos com o dos pentecostais, o que é explicado, no âmbito do Paradigma do Mercado Religioso, como uma tendência a ser observada entre produtos religiosos que se destinam a um mesmo público: se pretendem responder ao mesmo conjunto de demandas religiosas, os produtos religiosos - os discursos elaborados e as práticas propostas - tenderão à padronização.  

 

Aos números indicando o crescimento dos evangélicos, sobretudo o dos pentecostais,  podem-se juntar informações estatísticas segundo as quais 48% dos pentecostais e 41% dos evangélicos não pentecostais se declararam ex-católicos  (conforme a Folha de São Paulo de 14/01/96).  De acordo com Oro (1991), 77% dos crentes reunidos nas igrejas Deus é Amor e Universal do Reino de Deus no Rio Grande do Sul são provenientes do catolicismo.  Os dados de Campos (1997) indicam 43% como provenientes do catolicismo.  Essa diferença nos dados de Campos em relação aos de Oro pode ser devida ao fato de que, no período em que foi feita a pesquisa mais recente, a configuração do campo interno à  igreja católica, com o sucesso do movimento carismático, entre outros dados, pode já ter apresentado resultados em termos de reação ao avanço dos neopentecostais.  .  Esses dados podem ser vistos como uma indicação de que é dos quadros da Igreja Católica, que ocupava a posição de semi-monopolista no mercado religioso nacional até então, que os fiéis saem para outras religiões, principalmente para as indicadas acima.

 

Seria, portanto, para os fiéis católicos que estavam deixando o catolicismo em busca de devoção, espiritualidade e misticismo, que não encontravam nas CEBs, pelo menos da maneira por eles desejada - já que, pelo menos em referência à espiritualidade, o que o modelo dos progressistas fazia era propô-la em termos de prática cotidiana dos princípios cristãos, ao invés do privilegiamento dos aspectos rituais -, que qualquer estratégia de reação ao avanço dos pentecostais deveria se construir.  Uma ação destinada a fazer frente à perda de fiéis  para os pentecostais, que ofereciam o que tinha sido deixado de lado no produto religiosos dos progressistas, significou, efetivamente uma apropriação de algumas características do principal adversário dos católicos no mercado religioso no Brasil.

 

Esse processo de apropriação de algumas das principais características do modelo pentecostal evangélico pelo Movimento de Renovação Carismática não significa de nenhuma maneira o resultado de uma ação planejada por uma cúpula maquiavélica de padres que, na calada da noite, teria resolvido os detalhes da estratégia a ser operacionalizada como reação às novas condições do mercado religioso.  O que aconteceu foi, por um lado, a criação de uma série de mecanismos estruturais e organizacionais que dão apoio ao desenvolvimento desse estilo de ser católico - o carismático - ,   e por outro, a tomada de um conjunto de medidas que resultariam, na prática, no dificultamento da continuidade e desenvolvimento do projeto da Igreja Popular.   Na nossa opinião, essa conjuntura favorável à identidade católico-carismática é amplamente determinada pelo fato de que a Igreja tem que enfrentar níveis cada vez mais altos de concorrência no mercado religioso e uma crescente perda de fiéis justamente para os pentecostais tradicionais e para os neopentecostais.

 

Algumas características do modelo carismático católico são muito próximas das linhas definidoras do pentecostalismo evangélico (conforme Guerra, 1993 e 1995);  Prandi & Souza (1996); Oro (1996) e outros).  Dentre esses principais pontos de semelhança, a partir dos quais, segundo Prandi & Souza (1996:68) comentam "quem os vê em reunião pode pensar facilmente tratar-se de uma invasão de crentes em território católico", citamos aqui: 

(1)     Os grupos de oração e louvor - estes se constituem na base da prática proposta na Renovação Carismática e suas reuniões seguem modelos semelhantes aos dos evangélicos. É nos encontros semanais de oração e louvor que o modelo carismático se exerce na sua plenitude, através da "ação de graças", "orações contemplativas", "orações em línguas", petições de graça e cura, o "silêncio"; o exercício dos dons carismáticos; as leituras da Bíblia, os "testemunhos" e as "partilhas" (cf. CNS, s.d.);

(2)     Atividades tais como "retiros espirituais" para a juventude, em períodos de carnaval[2], com o objetivo de evitar as impurezas da "festa da carne", vigílias de oração e louvor e reuniões de cura, que  sempre foram associadas com os evangélicos em geral, e, especificamente, com os pentecostais, principalmente no que se refere a celebrações especiais com ênfase na cura;  outro elemento também assimilado são as músicas utilizadas nos  "momentos de Louvor", muitas delas "importadas" das igrejas evangélicas,  e a centralidade da "pregação", termo, inclusive, de uso mais característico pelos evangélicos, em seus esforços para levar "visitantes" para "série de conferências" em ocasiões especiais, para as quais são convidados "pregadores" visitantes;

(3)     A ênfase na doutrina dos carismas ou "dons do Espírito Santo" -  Motta (anotações em copião da tese, 1999), menciona a existência,  na Igreja Católica, de uma ênfase antiga sobre os sete Dons do Espírito Santo.  A recente inclusão dos dons de glossolalia e de cura, bem como o aparecimento de obras de teólogos ligados ao projeto da Teologia da Libertação sobre o Espírito Santo - como por exemplo, Santa Ana et al. (1990) e Comblin (1988) -, parecem ser  novidades que se referem às recentes modificações da topografia do mercado religioso no Brasil, já mencionadas acima. Como os pentecostais, os carismáticos católicos crêem basicamente nos seguintes "dons divinos": os da palavra - Dom de línguas estranhas, das interpretações e das profecias; os do poder - o Dom da fé, o da cura e o do milagre; e os da revelação - sabedoria, ciência e discernimento (cf. Degrandis & Schubert,1990).  Esses dons funcionam, principalmente o de falar em "línguas estranhas", o "poder de cura" e o de "discernimento",  como índices de espiritualidade, da mesma maneira que entre os pentecostais;

(4)     A valorização da Bíblia - entre os carismáticos a leitura da Bíblia é especialmente valorizada.  São promovidos encontros específicos para a realização de estudos bíblicos e observa-se um forte estímulo à leitura e meditação a partir da Bíblia, o que aproxima os carismáticos do modelo pentecostal, ao mesmo tempo que distancia do modelo de catolicismo de massas.  Até o ato de portar a Bíblia, encarado pelos protestantes como sinal de pertencimento à "comunidade dos salvos" também é encontrado entre os carismáticos católicos (cf. Guerra,1991;1995);

(5)     Alguns aspectos da ética - assim como os pentecostais condenam algumas práticas tais como beber, fumar, sexo fora do casamento, freqüência a bares, o uso de roupas decotadas pelas mulheres, os carismáticos demonstram um padrão comportamental conservador (cf. Guerra, 1995).  O modelo carismático propõe um comportamento ascético, com grande ênfase no moralismo individual e num compromisso radical com a religiosidade;

(6)     Uma atitude exclusivista em relação à afiliação e pertencimento - nesse sentido, os dados apresentados por Maués (1998:29) confirmam os de Guerra (1995), segundo os quais os católicos carismáticos rejeitam o trânsito livre entre ofertas religiosas diferentes, como acontece entre evangélicos em geral e particularmente entre pentecostais.  Diferentemente do modelo do catolicismo tradicional, que desenvolve uma atitude de tolerância em relação a outras religiosidades, o que permite que alguém seja católico e ao mesmo tempo espírita, umbandista, por exemplo, para os  católicos carismáticos a opção religiosa é única e exclusiva.  Essa atitude é também encontrada entre os evangélicos em geral.  O "inimigos" dos pentecostais são os mesmos definidos pelos carismáticos católicos: o espiritismo kardecista, a umbanda, o candomblé, a IURD, as religiões orientais, a Maçonaria e a Rosacruz (cf. Walsh, 1991);

(7)     Experiência subjetiva de conversão - não se é católico carismático por herança, mas a identidade  religiosa é adquirida e fruto de uma escolha individual, através da conversão, como o encontrado entre evangélicos em geral e particularmente nos pentecostais ;

(8)     O papel do leigo -  a organização do movimento carismático é, essencialmente, laica.  Como entre os pentecostais, atribui-se poder ao leigo, relegando para o segundo plano a mediação eclesiástica.  Essa característica do modelo carismático além de servir para suprir a falta de padres no país, atua como mecanismo de conquista dos indivíduos através do envolvimento  e participação institucionais;

(9)     Ênfase nos mecanismos de integração - assim como as igrejas pentecostais  atuam como agências de integração dos indivíduos colocados de alguma maneira em situações de anomia, provocadas pelas correntes migratórias e urbanizadoras, o Movimento Carismático tem, como um dos principais atrativos, esse espaço de encontro e convívio entre os fiéis, que permite a construção de um sentimento de pertencimento, difícil de ser experimentado nas atividades religiosas católicas tradicionais, realizadas numa conjuntura de Igreja de Massas, onde a impessoalidade é uma conseqüência inevitável do número de fiéis participantes. Em nossa pesquisa (Guerra 1995), dentre os motivos principais alegados para a participação no Movimento  Carismático foram mencionados, "para conseguir mais integração", "para encontrar união, amor e companheirismo", "para conhecer o próximo"", "para conseguir alguém", "por causa da união, da amizade",  "por causa do amor, do carinho e compreensão que encontro".  Essa ênfase na criação de vínculos de partilha entre os fiéis, aliada a uma teologia e liturgia intimistas, pode se constituir, por um lado, num diferencial eficaz na concorrência com os neopentecostais, que apresentam alternativas em que predomina a prática imediatista do "toma lá da cá", sem muita preocupação com a construção de um estilo comunitário (cf.  Mariano, 1996). Por outro lado, isso é também uma forma de corrigir o distanciamento característico do modelo católico de Igreja de Massas.

 

Esse  padrão de assemelhação entre produtos religiosos destinados a um mesmo público ou a segmentos de mercados semelhantes já foi previsto por Berger (1985). Esse processo de padronização traz também alguns problemas ligados à questão das identidades religiosas, já que cada produto é obrigado, então,  a enfrentar uma pressão dupla: uma no sentido da assemelhação e outra no sentido da diferenciação.  A proposta de religiosidade tem que ser parecida com as concorrentes nos elementos que fazem sucesso no mercado e, ao mesmo tempo, pelo menos marginalmente, diferente.

 

No caso dos carismáticos católicos, as convergências se realizam mais no nível da liturgia e da definição de religiosidade em seu aspecto prático, ou seja, na moldagem da visão do "ser religioso" no cotidiano.  No que se refere aos aspectos teológicos, a semelhança atinge só até um determinado ponto, de forma a resguardar um espaço de definição da diferença.  No caso dos católicos carismáticos e os pentecostais, esse espaço demarcador da diferença parece ser, principalmente, o culto a Maria e  a submissão, ao menos formal, à autoridade do Papa. 

 

Esses pontos de diferenciação com o modelo dos pentecostais precisam ser reforçados, no sentido de evitar o sentimento de que os modelos são equivalentes e portanto perfeitamente intercambiáveis, o que seria improdutivo em termos de estratégia para manter e conquistar fiéis. Sobre a confusão na cabeça dos fiéis católicos tradicionais em relação à semelhança do modelo dos carismáticos com o dos crentes, Maués (1998:18) cita uma fala de um informante: "Via aquele pessoal batendo palmas e cantando, e eu olhava para cima e via lá a cruz com Jesus lá, né, pregado, e eu me questionava: mas isso aí é católico?".  Muitos declararam que não gostam e não freqüentam o Movimento Carismático justamente pela  semelhança (cf. Guerra, 1995). Ainda outra diferença refere-se à inexistência entre os católicos carismáticos de uma prática centrada na atividade de contribuir financeiramente como aquela observada principalmente entre os pentecostais autônomos ou neopentecostais.  Talvez um dos condicionantes  desse aspecto do modelo seja o fato de que  os projetos do Movimento Carismático têm garantida sua realização, graças à participação  de importantes empresários internacionais (conforme Benedetti,1988, um dos financiadores  do movimento é Brenninkmeyer, dono das lojas C&A).

 

Relacionada a essa diferença, temos ainda que a ênfase na Teologia da Prosperidade, um forte elemento do produto dos pentecostais na concorrência no mercado religioso, não é encontrada no Movimento Carismático, pelo menos em sua versão inicial.  Como veremos a seguir, há sinais de mudanças no próprio movimento carismático em direção de uma convergência com os pentecostais também nessas últimas áreas de divergência acima mencionadas.

 

O fenômeno do padre Marcelo Rossi, do padre Zeca, e do padre Marcário Batista, figuras que ganham visibilidade através da mídia nacional no final da última década do século passado, indicam  mudanças nesse panorama, ligadas ao retorno do catolicismo a um modelo mais místico e espiritualista.  A proposta de um "novo catolicismo", ou de um "catolicismo de terceira via" desses padres,  pop stars da fé, são sinais de uma igreja preocupada em se mobilizar para enfrentar os novos tempos de competição. 

 

Esses novos modelos de religiosidade católica, que alguns têm chamado de "contra-reforma" do catolicismo no Brasil, não apresentam substancialmente nenhuma grande diferença em relação ao "velho catolicismo", não havendo nada de radical ou inovativo no discurso teológico dos padres mencionados.  Tudo é mais uma questão de estilo, no qual se destacam algumas marcas:

(a) A ênfase no catolicismo como uma chamada ou vocação a ser descoberta, despertada, em contraste com a percepção amplamente aceita na sociedade brasileira, segundo a qual o catolicismo é uma tradição na qual os indivíduos nascem;

 

Essa proposta  de redefinição do catolicismo como uma religião não meramente tradicional, tem dado origem ao fenômeno denominado de "re-conversão" de católicos, que pode sinalizar para um movimento de retorno de fiéis que haviam deixado a Igreja em direção de outros modelos de religiosidade, justamente em busca de uma "mudança de vida", de "transformação".  Em termos mercadológicos, essa proposta de uma ruptura com o catolicismo nominal ou tradicionalista pode significar a possibilidade de valorização do modelo de religiosidade católico, inclusive pelos mais altos níveis de sacrifício exigidos (cf. Iannaccone, 1988).

(b) Proposta de mudanças na construção da imagem dos católicos como

     "espiritualmente  descuidados", "permissivos" e "descomprometidos";

 

Um dos mais importantes elementos desse "novo" estilo de ser católico é a possibilidade de construção de uma identidade católica  caracterizada pelo "orgulho" de ser católico, em contraposição à ostentação presente nas identidades evangélicas em geral, que definem os "crentes" como "diferentes", "puros", num mundo de impuros, "regenerados" e "filhos de Deus", em oposição à maioria descrente, classificada por eles como apenas "criaturas de Deus".   Essa proposta implica numa identidade católica moderna, marcada pela idéia de "novo nascimento" espiritual, por um visão do catolicismo como energético,  "pra cima", que produz  entusiasmo e bem estar nos que a incorporam.

(c) Proposta de uma liturgia marcada pela ênfase na "alegria", "gratidão" e "felicidade" (cf. Clarke, 1999:211).

 

Uma das mais importantes armas em termos de renovação do poder competitivo do modelo de religiosidade católico representado pelo estilo dos padres citados, mas também da já mais estabelecida Renovação Carismática Católica, é justamente o conjunto de  mudanças da missa em termos de liturgia.  Como já mencionado, não há diferenças significativas nas missas celebradas pelos padres pop stars, que seguem todos os passos tradicionais do ritual.  Uma vez terminados os rituais, aí sim, entram em cena elementos inovativos, que podem ser a "aeróbica do Senhor", de Rossi, ou as grandes e animadas seções de cânticos em ritmo de samba ou no estilo country, do padre Marcário, entre outros.  Essa metodologia é eficiente, em termos de mercado, porque combina a manutenção da tradição com a adoção de procedimentos litúrgicos que podem conferir às missas uma nova força atrativa - já que eram (e às vezes ainda são) associadas com, por exemplo,  sobriedade,  controle do corpo, participação limitada à repetição de frases em horários planejados -,  em termos de  significados subjetivos nela mobilizados, e efeitos produzidos tais como o alívio das tensões, a reflexão sobre a necessidade de compromisso com a Igreja Católica, entre outros.

(d) O desenvolvimento de uma linha que pode ser chamada de "catolicismo otimista" ou de "catolicismo de auto-ajuda".

 

Esse elemento do "novo catolicismo" se contrapõe aos elementos negativistas do discurso da IURD, com sua ênfase nos demônios, doenças, satanás, luta constante contra as "potestades" espirituais malignas, que são substituídas, principalmente no discurso de Rossi,  por anjos protetores, que fazem companhia aos indivíduos, inclusive servindo como seus intermediários nas preces a Deus.

 

Partindo do ditado de inspiração materialista segundo o qual "a virtude sozinha não move a história", e ao mesmo tempo sem poder dedicar muito espaço à análise desses personagens que ganham visibilidade no mercado religioso brasileiro do final do milênio, que justificariam um estudo mais aprofundado, inclusive centrado nos aspectos superestruturais  do carisma fabricado, em grande medida, via meios de comunicação, gostaríamos de destacar alguns pontos fundamentais sobre o fenômeno dos padres pop stars, ligados a nossa proposta de análise da esfera da religião em termos de mercado:

(1)    O sucesso alcançado pelo  padre Marcelo Rossi parece indicar que a mentalidade do "toma-lá-dá-cá"  tende a se instalar entre os carismáticos da segunda geração -  a multidão de sessenta mil católicos que se  acotovelam nos vinte mil metros quadrados do Santuário do Terço Bizantino é gente em busca de cura para todos os males: câncer, depressão, desemprego.  Talvez o mesmo público que já freqüentou os estádios de futebol nas concentrações do bispo Edir Macedo, da Universal do Reino de Deus. Ao nosso ver, essa tendência é o resultado da pressão de uma demanda religiosa historicamente produzida por um contexto marcado por problemas sócio-econômicos vários. A prática religiosa proposta pelos padres já citados, e já presente principalmente no modelo dos neo-pentecostais, que pressupõe as relações de reciprocidade funcionando também no plano do sobrenatural, é uma resposta da Igreja Católica às necessidades dos indivíduos que vivem em um mundo cada vez mais desencantado e pragmático, o que favorece a ligação direta entre a fé e suas recompensas, convocadas para hoje, para agora, e que significam, em muitos casos a busca de solução de dificuldades,  tanto as mais básicas, causadas pelo desemprego, pobreza e falta de assistência estatal  nas áreas de saúde e moradia básica, como daquelas mais sofisticadas, como as ligadas ao stress e à depressão, causados pelo modelo de organização social predominante em nosso tempo;

(2)    As narrativas do próprio padre Marcelo a respeito da moldagem do produto religioso colocado por ele no mercado, demonstram a preocupação de trazer "de volta o católico para a sua igreja", que em termos mercadológicos se traduz numa atitude voltada para os traços da demanda religiosa dos indivíduos.  Num ambiente em que a organização tende a se pensar e a atuar com  referência à situação de competição crescente pela preferência dos consumidores no mercado religioso, as mudanças nos discursos e práticas religiosas tenderão a ser realizadas a partir do conhecimento das características dos indivíduos aos quais se dirige a mensagem, especialmente no que concerne às suas necessidades religiosas.

 

As características do modelo do "novo" catolicismo poderiam ser assim listadas:

 

(1)       a pequena duração do sermão - justificada por Rossi, citando um ditado popular entre padres: "em cinco minutos é Deus quem está falando, em dez é o homem e em quinze é o diabo". E completa: "porque é enfadonho e afasta o fiel da igreja." (VEJA,28/11/98).  Ainda em relação às adaptações feitas nas práticas religiosas para atender às características dos indivíduos a quem se destina o produto religioso, Rossi é o divulgador do terço bizantino, uma espécie de rosário oriental utilizado pelos cristãos ortodoxos russos e mais rápido do que o tradicional.  Sobre isso ele declara: "hoje as pessoas não têm muito tempo, e a gente tem que pensar nisso também" (VEJA, 28.11.98);

(2)       a despolitização dos temas abordados. Rossi diz que tem horror a sermões politizados, o que combina com a rejeição dos fiéis católicos à tematização da política nos sermões, como demonstrado por Guerra (1995) e em Maués (1998:22-23);

(3)    uma significativa preocupação com a linguagem empregada - No campo da preocupação com as adaptações das práticas e discursos religiosos, inclusive em termos de linguagem, com o objetivo de conseguir maior poder de competição no mercado religiosos,  o padre Zeca (José Luiz Jansen de Mello Neto) é exemplar.  Ele tem atraído multidões de jovens tanto pelo seu comportamento informal quanto pela fala pontuada de gírias. Ele diz "Quero falar a linguagem dos jovens da zona sul do Rio e mostrar para eles que a fé não tem que ser obrigatoriamente triste, que pode ser muito alegre".  Autor da idéia de realizar grandes encontros de jovens, intitulados DEUS É DEZ (uma logomarca surgida em uma reunião com uma agência de marketing), diz também que "queria alguma coisa com a linguagem MTV, bem pop, que tivesse rock, axé e pagode." O design jovem do produto se reflete também nas roupas do padre Zeca e de seus ajudantes nos shows de bandas gospel católicas que promove. O padre combina o colarinho de religioso com uma calça da Levi's surrada e um par de tênis pretos.  Os ajudantes nos eventos, os gêmeos Márcio e Marcelo, vestem bermuda, tênis e camisa sem manga, deixando as tatuagens à mostra (VEJA, 11/09/98);

(4)    um estilo mais próximo do "pentecostal", em termos de músicas e ênfase no gestual corporal a ser utilizado - nessa área, Rossi inventou a "Aeróbica do Senhor", uma série de movimentos feitos ao som de músicas religiosas cantadas nas missas celebradas por ele.  Numa entrevista na televisão, Rossi declarou que começou com 5 minutos, e o  povo pedia mais; aumentou para dez, e o povo pedia mais; chegou então até 30 minutos de "ginástica religiosa", e "o povo ainda quer mais".

 

Essas características têm em comum o fato de atenderem a uma lógica segundo à qual tudo passa a ser decidido em referência aos desejos dos prováveis consumidores de religião, num exercício claro da lógica da propaganda e do marketing.  Não queremos dizer com isso que as intenções e os resultados do exercício da fé sejam menos dignos ou "verdadeiros" do que em outros momentos do campo religioso, nos quais as propostas de religiosidade ainda não eram colocadas em circulação num ambiente de  alto nível de competição, como produtos para o mercado.  Reafirmamos que não pretendemos aqui reduzir o fenômeno religioso a esse aspecto. Nossa análise tenta apenas dar conta dos mecanismos que atuam sobre a produção dos discursos e práticas religiosas, que são diferentes dentro e fora de uma conjuntura de mercado religioso.

 

Os produtos religiosos se constróem a partir da articulação de dois níveis de determinação: (1) a dinâmica das condições internas ao mercado religioso - os níveis de concorrência e os produtos de maior sucesso; (2) a dinâmica das características mais gerais do conjunto de necessidades valorizadas pelos indivíduos na sociedade inclusiva.  Assim, (1) se a posição de semi-monopólio da Igreja Católica dentro do mercado religioso nacional não estivesse ameaçada; (2) se o principal concorrente fosse não os pentecostais, com sua proposta de religiosidade espiritualista, mas, por exemplo, os metodistas, com sua visão avançada em termos de horizontalidade da fé, sua teologia existencialista, moderna e sua preocupação com a construção de um espaço mais igualitário entre homens e mulheres, que  implica, inclusive, na ordenação de mulheres;   (3) somente se a conjuntura social indicasse a existência de uma demanda forte dos indivíduos em termos de  atividades de mobilização coletiva para a solução de problemas relativos ao Bem Comum e não essa que atualmente atravessamos, na qual o individualismo prevalece tão abrangentemente,  o cenário, no qual observamos a crescente força que o Movimento Carismático Católico vem apresentando, a perda de espaço das CEBs e outros elementos da identidade católica que vêm se tornando hegemônica, poderia ser diferente.

 

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[1] Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFPB - Campus II e do PPGS-UFPB (e-mail: lenksguerra@yahoo.com).