RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Candomblé católico – muito usado em Bonfim de Feira, ao ponto de ser,
nesta área, o de maior número de casas e prestígio de líderes – é um tipo de
manifestação religiosa onde os agentes do sagrado não cumprem obrigações
vinculadas aos orixás. São candomblés de caboclo puros, onde o caboclo incorporado executa os trabalhos rituais – de
festa e de cura – respaldado por obrigações e costumes contraídos com os santos
católicos.
O povoá tem com o candomblé católico determinadas identidades, ainda
que por coincidência, como, por exemplo, a ausência da feitura do ori. Os seus agentes do sagrado não são
indiciados por outro agente, dentro da conhecida teia de escolaridade tecida entre mestres e aprendizes. Existem estas
duas categorias no candomblé católico, embora isto não indique ou constitua uma
construção de hierarquia. No povoá, nem isso. Neste, o líder, que não é
zelador, nem Ogan ou aprendiz de outra casa (não em orixás, ajuntós ou caboclos
a zelar, diferente do candomblé católico onde, embora não existam orixás, o
zelador se incumbe de caboclos e santos), não se vincula, em sua biografia ou
comportamento atuais, a algum mestre. Teve a sua missão determinada por sonhos ou visões. Não exerce o processo da
cura. Os seus rituais de festa, embora baseados nos sambas de caboclo não possuem os instrumentais rítmicos daquele
(não tem atabaque ou ganzá. Todo o som emana de instrumentos de cordas e
sanfonas) nem os seus seguidores incorporam encantados, com exceção do líder,
que incorpora um só encantado, depois de algum tempo de iniciado o povoá. É uma
festa de dança religiosa que se processa após as ladainhas endereçadas ao santo
do dia e ao santo protetor da casa, onde mais uma vez vai se diferir do
candomblé católico, onde os cantos são, algumas vezes, endereçados a caboclos.
Em resumo, o candomblé católico e o povoá se excluem, dado a que os
seus adeptos e freqüentadores não se encontram (os primeiros centralizam-se em
Bonfim de Feira, os segundos em alguns bairros afastados da cidade de Feira de
Santana). Como nunca houve o encontro entre os dois não podemos dizer se
haveria ou não uma mútua aceitação ou alguma tolerância unilateral se, por
acaso, isto acontecesse.
Os candomblés de nação e de aldeia excluem o povoá mas não,
inteiramente pelo menos, o católico. Isto relaciona-se mais ao de base angolana
pelo fato de ser aquele que mais se liga em caboclos.
Encontra-se, com freqüência, mais nos distritos que na sede do
município, pessoas que trabalham como encantadomesclando santos católicos,
caboclos e, as vezes, orixás mas sem maiores preocupações tipológicas dos seus
referenciais míticos. São muito ligados aos cultos das almas, mas diferente das
outras duas encantarias aqui destacadas, não possuem rituais de festas com a
face das suas casas. São mais mágicos que sacerdotes. Possuem obrigações
identificadas por acontecimentos ou sonhos, mas não os admitem como mestres ou
aprendizes e sim como uma missão autônoma. Não foi possível inclui-los em uma
religiosidade determinada, desde quando não a nenhuma expectativa de papéis já
estudados. São curadores rurais no meio urbano ou semi-urbano, sem possuírem
uma rigidez ritualística, embora contem com numerosa clientela. São os agentes de candomblé sem feitura de cabeça.
Falando mais sobre eles:
1.
O
Candomblé Católico
Essa encantaria
foi colhida na Fazenda Santa Bárbara, no distrito de Bonfim de Feira, da cidade
de Feira de Santana. Organizada e capitaneada por Sr. João do Genipapo,
proprietário do sítio, tem como data maior a festa para Nossa Senhora da
Conceição, nessa sede, que é reconhecida como o Terreiro Jesus de Santa
Bárbara.
O velho João
considera-se espírita porque recebe desígnios do espírito santo para
esclarecer, aos zeladores de santo e seus seguidores que, a seu modo, servem a
Jesus Cristo, que esta é uma forma de amar a Deus, sobre todas as coisas, e ao
próximo como a si mesmo.
Não se considera
pai-de-santo ou zelador, identifica-se como mentor espiritual enviado por Santa
Bárbara e Nossa Senhora da Conceição para usar suas forças e energias sagradas
a favor dos homens. Esses fenômenos afirma, podem ser reconhecidos através de
curas miraculosas, conversão ao caminho da caridade, da busca da paz, da
procura da saúde e da prosperidade no seio das famílias. Tem certeza que, a
ele, a imaculada Conceição resolveu confiar a vidência, a cura, a fé e
profetização.
Senhor João não
recebe a Santa, que é a guia da seita
(é esta a auto-referência), incorpora a energia que ela traz e redistribui entre
santos, orixás, encantados e caboclos. Essa energia é destacadamente priorizada
para o caboclo Tupinanbá, Rei da Floresta, simbolicamente correspondido com São
Jorge. O médium dessa manifestação vem paramentado com tanga e penacho, segundo
a imagem que formam do índio brasileiro. Tem uma coroa na cabeça, com destaque
de uma estrela de Davi. Segura em uma das mãos um cálice e, na outra, um
pequeno sino, arco e flechas em miniatura. Tupinambá e sempre a primeira entidade a manifestar-se no terreiro, a baixar. Sem uma ordenação rígida, podem
seguir, de forma simultânea ou não, nanã, iyamanja ou outros orixás
caboclizados pelo processo de formação da encantaria.
Em toda essa
construção mítico-ritual, a trascendência não se mostra incluindo excludências,
dicotomias ou ambivalências absolutas. Santos, orixás e caboclos comportam-se
em diferentes níveis, mas sempre em arranjos de complementariedades. Nunca
estão separados. São peças da mesma engrenagem e faces da mesma moeda. A rigor,
não é sequer uma correspondência simbólica, como nos candomblés que seguem os
modelos Ketu ou Gegê-Nagôs.
No candomblé
católico de Bonfim de Feira os santos são os guias dos orixás. Cada um dos
primeiros orienta e determina os papéis dos segundos singularmente
identificados. Seguindo uma certa ordenação, os orixás são os guias dos
caboclos mas, nesse caso, não acontece uma assimetria imprescindível. Os guias,
em foco, podem ter os seus papéis episodicamente modificados ou mesmo
invertidos. No caso aqui tratado, Senhor João afirma que Cristo, Santa Bárbara
e Tupinambá comandam a casa. Iansã que guia Tupinambá, fica, muitas vezes, em
segundo plano. Deve-se isso a duplicidade de Tupinambá, que lhe desdobra a
força. Explica-se: Tupinambá e outro caboclo, gentil celestial, mesclam-se na mesma
energia, emanava de iansã, que tem o poder disso executar, posto que recebe a
energia de Santa Bárbara, que é a mãe de todos os caboclos. Afinal de contas,
santos, orixá e caboclos são necessários para um contato maior com a divindade.
É crença geral na confraria que quem
apenas lê a Bíblia, não ouve toda a palavra de Deus – apenas um pouco, embora
extremamente necessário.
Depois de Santa
Bárbara, Tupinambá e seu duplo-étereo (esta identificação kardecista é muito
usada para identificar gentil celestial), vem aqueles que só descem com a ordem deles, já que são os
donos da casa. Os outros, em segundo plano, não têm que esperar, no entanto, a baixada dos primeiros, podem, apenas,
receber o consentimento, já que o terreiro pode ser aberto por um encantado dos
astros, como Jericó; das águas, como Iemanjá ou da mata, como Oxossi.
Todo esse
comportamento fica na dependência do santo que está regendo o dia e que
identifica-se através de visões. A vidência de seu João manifesta-se quando ele
olha para o céu, vê o santo e ouve vozes. Nesse momento fica identificado
também o caboclo escolhido pelo santo e percebe-se o tipo de energia que está
imantando o ambiente. Esta energia, a princípio estonteante e confusa, fica
clara e coerente quando, após identificado, o agente do sagrado fala o nome do
santo, a do orixá ou o apelido do caboclo.
Nestas visões
nunca perde a consciência e esta vidência, afirma, é uma missão que vem de
berço. Surgem, ocasionalmente, dúvidas sobre o real sentido da mensagem. O
esclarecimento sempre se dá quando se pergunta a Iansã, através de orações, e
ela responde de forma genérica ou detalhada, a depender do juízo que faça sobre
a questão. Muitas vezes esta dúvida não existe. Por exemplo, saber que a morte
está próxima: vê um caixão passar frente aos seus olhos.
Muita
importância também se dá ao batizado, em parte porque o do guia é uma réplica
do católico. Os fiéis afirmam que para haver o batismo tem que haver grande
concentração, ou seja, rezar muito, ir a missa várias vezes seguidas, abster-se
de bebidas, festas e sexo, além de jejuar, praticar penitências e cumprir
promessa.
O batismo do
guia sempre se dá nos sábados, domingos e terças-feiras de carnaval, sendo a
terça dedicada aos guias mais fortes, possuidores de maior concentração. A quarta-feira
de cinzas é dedicada aos rituais católicos oficiais.
Como o comum dos
candomblés, o católico respeito a quaresma. Fecha-se o terreiro após o carnaval
abrindo somente a partir de sábado de aleluia.
A abertura da
festa é de um sincretismo estonteante.
A casa núcleo do festar fica na parte mais alta de uma colina. Dela sai, para
contornar uma lagoa, uma procissão levando a imagem da santa, em ritmo de
carnaval. A interpretação imediata entre o sagrado e o profano atinge o seu
ponto mais alto.
Chegando-se à
casa, começa a lavagem do terreiro, onde vai acontecer a função, com
acompanhamento rítmico diferenciado, tendo por sustentação o som dos atabaques
que garantem o samba de caboclo. Nesse momento, existe sempre uma senhora idosa
coordenando a participação das crianças.
Simultaneamente,
em volta do terreiro, na frente, no pátio da fazenda vêem-se camelôs de
bijuterias, perfumes de alfazema, sabonetes, esmalte de unha, barraquinhas de
comida, tabuleiros de cocada, bolinhos de diversos tipos e outras guloseimas,
carrinhos de pipoca e um bar permanente que fica aberto durante toda a festa.
Acima do bar no coreto ornado de bandeirolas com as cores da bandeira
brasileira, a própria bandeira nacional, a do império, da cidade de Feira de
Santana, além de outras criadas pela comunidade. Uma certa aparência cívica
envolve todo o sítio. As bandeirolas que cobrem a praça e o salão da casa
cerimonial são sempre verdes e amarelas. Fitinhas com essas cores pendem das
laçadas.
Fazendo
contraponto com este referencial, símbolos natalinos como velas, sinos, bolas
de aljofa, pequenas árvores de natal com algodão e sisal imitando neve e outros
adereços como bonecos de papai noel presos na capela, que fica ao lado da casa,
outro no pátio, como também em frente da casa. Vale dizer que esses elementos
estão presentes no terreiro seja qual for a época do ano, assim como a presença
mariológica que é sempre muito forte. Manifesta-se, geralmente, em forma de
Nossa Senhora da Conceição, de Fátima, das Dores e da Consolação, que estão
sempre presentes, em suas imagens. Senhora Santana é, também, muito cultuada em
seu dia. Guia Nanâ. A festa católica dessa santa padroeira, em Feira de
Santana, exerce uma visível atração no candomblé.
Toda esta
parafernália compõe uma forma singular do catolicismo brasileiro. A decoração
cívica serve de sustentáculo para a moldura do caboclo, a natalina para a
representação dos santos. Ambas contribuem para a construção simbólica dos
orixá abrasileirados. São vistos no quarto dos santos, nos diversos prequenos
altares católicos, nos presépios e na procissão – carnaval.
Uma afirmação
constante da catolicidade ambiente e que o candomblé católico não recebe exu,
embora os seus membros sintam a forte influência da umbanda. Esse
orixá-mensageiro é visto como o diabo, todavia não tem o mal escoimado da sua natureza como a concórdia
umbanda-quimbanda o faz no seu amplo processo de ressignificações, ou seja,
enquanto a quimbanda, contida na umbanda, redezenha, com muita maestria, este
papel; a religiosidade em questão não introjeta essa mensagem.
Não receber Exu
em casa significa, apenas, não cultuá-lo, pode-se, no entanto, exorcisá-lo,
fenômeno que comumente acontece nessa manifestação e assemelhadas. É
interessante que este exorcismo se faz com a ajuda, quase que imprescindível,
de caboclos, onde se destacam tupinambá, tupi taquara e boiadeiro. Esta visão
do caboclo, como acólito dos santos, acompanha toda a panorâmica do imaginário.
Entretanto, a de Exu, como escravo
dos orixás, discurso corrente nos candomblés de caboclo, não tem ali a sua
aceitação. É um processo constante de elementos de cultura ressignifcados.
Seu João do
Jenipapo, líder máximo do candomblé católico de Bonfim de Feira, teatraliza a
sua aparição com grande preocupação cênica. Começa o ritual com o silenciar do
samba. Em seguida ele desce as escadas da casa empunhando a bandeira de São
Jorge, acompanhado de alguns filhos de terreiro que trazem as de Santa Bárbara.
Aproxima-se da roda de caboclo e pronuncia sua mensagem dirigida a todos os
presentes, fiéis ou não. Veste uma indumentária que imita os paramentos de um
bispo ou padre.
A música logo o
acompanha. A dança também recomeça, agora na roda de caboclo. Seu João, agora
com a roupa de Santa Bárbara, começa a levagem andando por todo o terreiro-fazenda
e rodeando a aguada. Interessante, é que tanto a palavra lavagem como levagem,
são usadas pelos participantes ou curiosos, embora não esteja lavando ou
levando nada, a não ser elementos da procissão. Essas palavras, contudo, são
largamente empregadas em grande parte do sertão, geralmente com uma
ritualística das festas do divino espírito santo com as suas lavagens das
escadarias dos adros das igrejas e as levadas do mastro (que dará sustentação a
bandeira) ou da lenha (quando uma ou mais fogueiras compõem o cenário ritual.
A procissão
volta à sede da fazenda, recebida por saudações ou estouro de foguetes. A
coordenação da festa pede que as crianças se retirem porque chegou a hora das
baianas. São senhoras vestidas de baianas
de acarajé ou imitando filhas de
santo, fantasias estilizadas pelo imaginário baiano mas que se projetam em
outras manifestações culturais como escolas de samba e afoxés.
Logo após a
chegada da procissão inicia-se a novena de Santa Bárbara cujo cânticos irropem
no samba de caboclo. Logo após o leilão volta este tipo de folguedo e o ritual
do candomblé católico, na parte preponderantemente medicínica, concretamente se
inicia.
A partir desse
momento descem os caboclos, mas não
de forma simultânea para os participantes da roda. Aqueles que recebem a
incorporação, contudo, fazem a saudação tocando o chão com a testa, numa
aparente ritualização muçulmana, embora dados encrustado na memória, sobre esta
gestualia, não tenham sido confirmados nos depoimentos dos informantes.
Os sistemas de
valores que permeiam a presença afro-brasileira em Feira de Santana preenchem
um espectro amplo e lequeado. Vão desde a moral católica ortodoxa, oriunda do
catolicismo popular e que marca, embora dentro de um quadro de oscilação
comportamental, o candomblé católico e o povoá, até o anarquismo umbandista, que conseguimos ver nas casas daqueles
zeladores mais influnciados pelos cultos do Sul do país, notadamente São Paulo,
e, em menor escala, o Rio de Janeiro.
As normas de conduta frente ao sagrado são traçadas, embora não
rigidamente, pelas casas e, grosso modo, seguidas pelos adeptos. Geralmente
estas normas não ultrapassam as relações interpessoais dos membros da ordem,
presentes nas liminaridades da casa e da rua de que nos fala DaMata (1985). Estas normas, traçadas
dentro de casa, se tornam mais rígidas, em grande número de casos, quanto maior
for a proximidade – comportamental e doutrinária – do terreiro com o
catolicismo. Afastando-se, inclusive, pela necessidade de construção da
excludência de que já falamos, do bias e
ethos católico, notamos, mais
nitidamente, a não interferência da roça com os seus adeptos onde, pensando
ainda com DaMata, a casa e a rua fronteirizam-se mais claramente.
Para quem
entrevistou um número acentuado, talvez mesmo suficiente, de
zeladores-de-santo, procurando, propositadamente, a aleatoriedade, baseando-se
em bairros diferentes e afastados um do outro, como fidelidade mais científica
de coleta de dados, notamos, além da necessidade de legitimação pela
exclusividade, algumas formas como esta construção acontecem. Os zeladores dos
Candomblés católicos, por exemplo, dividem o nós e os outros colocando Jesus Cristo do seu lado e a seu serviço
e o cão do lado e a serviço das casas
de orixás, com todo o maniqueísmo que esta atitude requer. Já aqueles que
intitulam a sua casa de candomblé
selvagem, como é o caso de Bel de Deus, do Centro Ilê Arrochichê Odoré – Império dos Orixás, podem ter Lúcifer
como caboclo central. Isto mesmo: o condutor da luz, segundo Bel, o Exu
preferido por Oxalá. Este é o processo de remissão de Lúcifer, fenômeno já,
também, pesquisado – embora embrionariamente – por nós. introduzimos este
ensaio nesta tese já que este fenômeno – comum na Umbanda paulista – já ocorre
também em Feira de Santana.
2.
O
Povoá
Essa encantaria foi colhida no Centro São Jorge Caboclo, Rua Comandante Hermínio, 17- Bairro do Caseb – Chácara São Jorge, propriedade do Sr. Miguel de Gentil, numa festa de Senhora Santana, no dia 26 de julho, data magna religiosa da cidade. Dia da sua padroeira.
O Sr Miguel
considera-se espírita brasileiro, já que escolheu trabalhar apenas com índios
encantados. Acredita na existência dos Orixás, que seriam índios africanos e
que os brasileiros que se identificam mais com a África, fazem a escolha de com
eles trabalhar.
O povoá não nega
os encantados das outras religiões, apenas vê os seus adeptos como aqueles que
optaram por operarem com uma parte do invisível. Não existi, assim afirma,
religião falsa ou verdadeira, apenas a escolha de uma área do sagrado. A deles
recai sobre os caboclos, por serem mais alegres e exigirem obrigações mais
fáceis de serem cumpridas. A hierarquia também é menos centralizadora.
Entre os seus
adeptos encontram-se rezadeiras, benzedeiras e outras categorias ocupacionais
ligadas ao catolicismo popular. De certa forma, vêem-se como uma extensão dessa
religiosidade. São devotos de santos católicos e ligam-se a caboclos que sejam
devotos também dos seus santos. Explico: um fiel, devoto de São Jorge, tende a
se fazer acompanhar por gentil ou tupinambá, que são caboclos também devotos
daquele santo. O curioso é que não é necessário que um determinado caboclo
tenha sempre o mesmo santo de devoção, ou seja, o tupinambá de um membro, por
exemplo, pode ser devoto de São Jorge. O mesmo caboclo, acompanhando outro
fiel, pode ser devoto de Santo Antônio. A explicação é que só existe um São
Jorge ou um Santo Antônio, mas não um só tupinambá.
Esmiuçando mais:
os caboclos (basicamente índios encantados) são espíritos dos membros de uma
tribo. Assim, tupinambá, presente em um ritual, é um índio da tribo tupinambá
que ali se manifesta. O mesmo processo acontece com todos os outros encantados.
Essa quebra da individualidade mágica, até certo ponto consolida a
personalidade histórica e estórica dos santos da igreja católica
oficial. Essa relação heterogênea e assimétrica acompanha, a nosso ver, a
leitura feita pelo homem comum brasileiro, da cultura que o envolve e que
historicamente herdou. É uma forma de administrar como, na sua sociedade, o
imaginário magicamente se manifesta e o sagrado socialmente atua.
No candomblé
católico os santos são os guias dos orixás. No povoá os santos são os guias dos
caboclos. Os santos sempre são guias. Os devotos escolhem a que seguidores
espirituais devem se vincular. Esses pensamentos, coincidem com as afirmações
comuns que os membros das confrarias brasileiras fazem dos santos e encantados.
Todas essas
observações parecem constatar que a nação brasileira, em sincretismos,
continuados herdou, não apenas santos católicos, orixás africanos e encantados
índios brasileiros mas, também, tanto os parâmetros individualizados dos
primeiros como as noções de seres coletivizados dos segundos e terceiros.
Embora essa cosmovisão mágica não abarque todo o imaginário das encantarias brasileiras
tem, nos sítios onde elas vicejam, uma visível conotação majoritária.
Os adeptos do
povoá não se dividem em mestres e aprendizes, como no comum das encantarias,
mas católicos das mais variadas tendências e aceitações (inclusive
afro-brasileiras) que trabalham e brincam com caboclos. Trabalhar significa
pedir ajuda ao caboclo para que o seu santo de devoção ou milagreiro atenda aos
seus pedidos, brincar significa festejar o seu encantado no sambas de caboclos.
Como não se
consideram uma confraria à parte ou ao lado da religião católica, não vêem a
necessidade de não praticarem o ritual durante a quaresma, já que ele não fere,
segundo os fiéis, os preceitos da igreja. Esses rituais acoplam-se as novenas
católicas nos seus dias festivos. O que difere é que, além dos indivíduos que
rezam, também o cantar das ladainhas fica a cargo dos caboclos incorporados no
toque da viola.
Com exceção do
pandeiro não identificamos, no povoá, nenhum outro instrumento de percursão que
acompanhasse o ritual. A tônica encontra-se nos instrumentos de corda,
enfeitados para as funções de reizado, nas palmas que comumente acompanham os
cânticos e nas vozes que os entoam.
Os chapéus de
palha enfeitados, as roupas coloridas, os instrumentos cheiros de fitas e as
bandeirolas na casa lembram, a todo momento, um ambiente de função de terno de
reis, embora os participantes não sejam, necessariamente, membros de algum
desses folguedos.
O povoá não
possui sacramentos próprios.
Batizados e casamentos são os da igreja católica. Batizar o caboclo significa,
apenas, acolher o encantado em uma festa/função. Por força desse comportamento
é que o julgamos uma encataria situada em um espaço mágico-religioso liminar,
isto é, uma religiosidade instalada entre a religião e o folguedo, situação perfeitamente
compreensível, já que manifestada em uma sociedade relacional (DAMATTA: 1986),
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