Participação
Femeninia no Movimento Cristão Primitivo:
Um resgate
Silvia Márcia Alves Siqueira[1]
UNESP - Câmpus de Assis
Esta comunicação tem por objetivo demonstrar a participação
feminina no Movimento Cristão Primitivo. A justificativa para tal proposta está
embasada nas amplas discussões em relação à atuação de agentes anônimos na
História, ressente-se a necessidade de destacar determinados personagens que participaram ativamente do
movimento de formação do cristianismo, como é o caso do papel das mulheres.
Resgatar a atuação de agentes femininos traz-nos a possibilidade de compreender
mais ainda a história de homens e mulheres que atuaram em um movimento fecundo
que, posteriormente, seria a Cristandade Ocidental e, ainda, de restituir as
histórias de mulheres à História Cristã Primitiva.
Para que tal apresentação não seja inadequada, é necessário
ter alguns cuidados, à medida que a reconstrução de aspectos culturais de um
determinado período histórico - particularmente no que se refere à Antigüidade
- é uma tarefa árdua e exige evitar anacronismos. Não podemos voltar a nossa
atenção para o período referenciado pela mulher moderna, pois a
mentalidade no período de formação do
cristianismo era, com certeza, completamente diferente dos dias atuais, e o
contexto sócio-econômico e cultural do período foi diverso do atual.
As culturas grega, romana e judia apresentavam
as mulheres de forma diferenciada, com estatutos próprios. As mulheres do
Oriente, dentre as quais a mulher palestina, no início do I séc., viviam de maneira retirada, afastadas da
esfera pública e deviam exercer as virtudes do ideal de uma vida reclusa no
interior da casa, ser uma boa esposa,
mãe exemplar para os filhos, dona de casa hábil e prendada. Escapavam
desse ideal as princesas e, particularmente, as mulheres ligadas ao campo. Com
esse papel para cumprir, a mulher esteve impossibilitada de participar da vida
religiosa plenamente. Elas foram dispensadas dos preceitos religiosos positivos
ligados aos momentos de oração e estudo. Seu papel restringia-se à esfera
doméstica e familiar e deviam cuidar da
pureza em matéria alimentar e sexual, seu papel religioso estava circunscrito a cozer os pães e acender as luzes nas festas religiosas (Alexandre,1990).
A sociedade hebraica teve uma longa história de organização
patriarcal. Entre os judeus, a mulher era afastada da vida pública, sendo-lhe
negado o sacerdócio e, excluída da circulação de bens, não podia herdá-los nem
possuí-los. A questão da reprodução tanto biológica quanto social no seio da
comunidade, os papéis sociais tradicionais femininos, impostos por seu corpo e
suas funções, destacavam-se em um
primeiro momento.
Percebe-se que o papel das mulheres judias foi estruturado
inicialmente nas funções dentro da família - esposa e mãe -, com a difícil
tarefa de zelar pela pureza e santidade do lar, mas de uma maneira ou de outra,
também, exerceram um papel marginal em relação às suas crenças no seio da
comunidade. Talvez não fosse fácil, conforme Chouraqui (199, p.146),
representar o papel de boa esposa e boa mãe no seio de um casamento poligâmico,
em uma família que poderia incluir até dezenas de pessoas. Por outro lado,
apesar das proibições, existiram mulheres hebréias que eram feiticeiras,
adivinhas e praticavam necromancia (evocavam os mortos). Muitas delas cultuavam
deusas associadas às liturgias cananéias. Em estudos de inscrições tumulares
efetuados por Bernadette Brooten (Alexandre, 1990, p.522), foram encontradas
menções a mulheres designadas como
chefes de sinagogas, dirigentes, anciãs, mães da sinagoga, ou até sacerdotisas.
Portanto, verifica-se uma substancial presença
das mulheres judaicas nos movimentos religiosos.
A visão da mulher no
Novo Testamento refletiu a influência do cristianismo como também da comunidade
judia. Nos Evangelhos, aparecem muitas
mulheres anônimas. Jesus ensinou, ocasionalmente, utilizando exemplos
femininos: uma mulher perde uma moeda e a procura (Lc.15,8); duas mulheres
estarão moendo grãos em um moinho (17,35).
Encontram-se nos Evangelhos mulheres que brilharam no
"movimento de Jesus": profetizas, mártires, diaconisas, virgens, renunciantes, monjas, enfim, grupos
heterogêneos. Por exemplo, as duas figuras femininas que se destacam em relação
a Jesus foram: Maria, mãe dele e, Maria
Madalena tiveram destaque dentre tantas outras figuras femininas que
alimentarão a piedade mariana, sustentarão o ideal de virgindade, e
constituirão as imagens femininas para a futura iconografia cristã.
Além disso, parece que Jesus teve uma posição diferente
e mais "liberal", com as
mulheres em relação ao rigor do judaísmo do período. Ele visitou Marta e Maria,
conversou com uma Samaritana, uma estrangeira e, com isso, transpôs uma forte barreira de costumes judaicos. A
subversão da hierarquia tradicional operou-se em proveito de mulheres excluídas[2]
(prostitutas, mulheres adúlteras,
viúvas). Uma grande lista dos mais variados tipos de mulheres apareceu seguindo
Jesus pela Galiléia sem se aterem às regras que cerceavam o seu espaço da
época. Os Evangelhos assinalaram a fidelidade da presença delas, presentes no
sepultamento de Jesus, preparando os aromas e perfumes para ungir o cadáver
conforme a tradição judaica. Segundo os Evangelhos, contrariando a tradição
judaica, foram as testemunhas da ressurreição e encarregadas de anunciá-la aos
discípulos. Maria Madalena aparece várias vezes nesse cenário em Mateus
(27,56), Marcos (15,40-41) e Jo (19,25-27).
Fiorenza (1992, p.173) também menciona as mulheres que
seguiram Jesus e defende a idéia de que
elas tiveram um papel relevante no movimento de Jesus. Para ela, esse movimento
histórico possuiu uma alta significação para os primórdios do cristianismo,
sendo responsáveis pela sua expansão.
Parece que, após a morte de Jesus, com a missão apostólica,
inicia-se também uma hierarquização lenta e longa de papéis na tradição-cristã.
No entanto, Alexandre (1990) e Fiorenza
(1992) concordam que as mulheres foram instrumentos para continuar o movimento
iniciado por Jesus e que lá estiveram envolvidas na expansão desse em direção
aos gentios das regiões adjacentes.
Nas mensagens apostólicas paulinas, encontravam-se menção a
várias mulheres. As referências às
mulheres que apareceram na literatura paulina e pós-paulinas, indicam que foram patronas ricas do movimento
missionário cristão e que ocuparam lugares elevados no trabalho de evangelização. Eram mulheres das comunidades
cristãs da Galácia, de Jerusalém e de Antioquia (Fiorenza,1992, p.193). A
primeira missão cristã foi repleta de conversões e ações de mulheres.
A casa era um dos lugares de reunião dos grupos paulinos
constituía-se em um conjunto social abrangente. As casas eram bastante grandes,
com várias unidades e vários andares, não eram ocupadas apenas pela família,
mas nela incluíam-se também parentes próximos, escravos, libertos,
trabalhadores contratados e, algumas vezes, atendentes e parceiros no comércio
ou na profissão (Meeks, 1992, p.122). Além do espaço da casa para as reuniões,
era muito comum a associação voluntária em agregações, agremiações e
associações[3]. Os grupos cristãos,
muitas vezes, eram comparados a essas associações, pois havia afinidade entre
os grupos paulinos e elas.
Além das reuniões dos prosélitos cristãos nas casas, o
cristianismo no Mediterrâneo Ocidental foi espalhado por missionários
ambulantes que viajaram muito. O modelo do movimento missionário cristão contou
com elementos institucionais constituídos, de um lado, pelos agentes
missionários e, de outro, pelas igrejas domésticas e pelas associações locais.
Os elementos organizacionais do movimento se basearam em propagandas religiosas e o sistema de patrocínio recíproco da
sociedade greco-romana.
Admite-se a grande influência de mulheres ricas e de status
social elevado tanto no movimento cristão quanto no judaico. A julgar pelo que
consta em Atos (18,17), os líderes do movimento cristão eram judeus, tanto
homens quanto mulheres, como foram os casos de Priscila e Áquila. Esses membros
vinham de camadas sociais do judaísmo helenístico com poder aquisitivo
considerável. Homens e mulheres ricos foram patronos no movimento cristão
primitivo. Embora a sociedade da época fosse organizada de maneira que a
posição da mulher fosse submissa, ela podia ficar rica por herança ou por
investimento. Como podem ser os casos das mulheres que aparecem no Novo
Testamento: a mãe de Marcos, em At 12,12; Lídia, em At 16,14 e 40; Priscila, em
At 18, 2-3, Rm 16,3-4, 1 Cor 16,19; Febe em Rm 16,1-2; a mãe de Rufo em Rm
16,13; e Cloé em 1Cor 1,11. O movimento missionário cristão, visto sob o prisma de estruturas organizacionais, possibilita a
visualização das ações de mulheres também na liderança. As mulheres foram
líderes tanto de mobilidade quanto de patrocínio. Ou seja, como missionárias
ambulantes e em suas casas como local de reuniões - igrejas domésticas
(Fiorenza, 1992, p. 210).
As viagens de Paulo pela Síria, Chipre, Ásia Menor,
Macedônia e Grécia foram marcadas por conversões em particular de
mulheres. Nos Atos dos Apóstolos,
constam várias passagens de conversões femininas e também masculinas: em Éfeso,
Priscila e Áquila (1Cor 16,19) e Lídia (At 16,13-15); em Roma, Epêneto e Maria
(Rm 16,5); em Laodicéia, Ninfa (Col 4,15). Quanto a Lídia, pode tratar-se de
uma liberta comerciante de produtos de luxo que tinha autonomia, autoridade
material e espiritual, e que exerceu, em sua casa, a hospitalidade, fundamental
nessas itinerâncias das primeiras missões cristãs. Em Tessalônica, a pregação
na sinagoga congregou homens e mulheres de primeira categoria. Em Atenas,
Damaris (At 17,12) e os simpatizantes do judaísmo sentiam-se tocados pelas
pregações de Paulo. Em Corinto, Paulo encontrou Áquila e sua mulher Priscila
(At 17,25), um casal que parecia ser abastado e bem familiarizado com os
caminhos do Oriente e do Ocidente. Na casa deles, em Éfeso, reuniu-se uma
assembléia. Paulo, no final de sua "Epístola aos Romanos", colocou
Priscila e Áquila em igualdade (At 18,2-3). Na longa lista de recomendações e
saudações que finaliza a "Epístola aos Romanos", aparecem muitas
pessoas, dentre elas muitas mulheres. Ela permite entrever seus papéis,
diversos, mas sem subordinação marcada (Rm 16,3-5). Paulo referiu-se a mulheres
que assumiram responsabilidades na missão evangelizadora (1Cor 9,5).
As referências paulinas em relação às mulheres missionárias
não mencionaram seu status social e papéis sexuais, não indicando se eram
viúvas ou virgens. As cartas Paulinas falam das mulheres como suas
cooperadoras, falam também que algumas delas trabalharam em pé de igualdade com
ele, como é o caso de Evódia e Síntique. As verdadeiras cartas de Paulo dão à
mulher títulos missionários e caracterizações como cooperador (Prisca),
irmão/irmã (Ápia), diákonos (Febe)
recomendada como mestre e missionária oficial na igreja de Cencréia, e como
apóstolo (Júnia). Além disso, algumas evidências apontam para um aspecto novo:
a parceria e a missão de casais parecem ter sido a regra no movimento
missionário cristão, e não a atividade missionária individual.
Aceitando a visão bíblica de subordinação da mulher, os
escritores do Novo Testamento
acentuaram o dever de modéstia, submissão e devoção. Contudo, na
prática, constatamos a influência da
mulher sobre a vida da comunidade cristã . Alexandre (1990, pp.511-63) faz uma
exposição sobre os discursos e as imagens das mulheres existentes nos textos
fundadores da tradição cristã. Para a autora, o poder das mulheres, desde as
origens até a vitória do cristianismo deveu-se à sua fé e à facilidade de
comunicação. Mais facilmente libertas dos constrangimentos políticos e sociais,
das tradições religiosas e culturais da cidade antiga, as mulheres pareciam
estar adiante dos homens da sua família. A sua influência doméstica contribuiu
para a conversão dos seus parentes e desempenhou um papel essencial na
transmissão da fé. Para os pagãos, era esse poder de subversão que tornava as mulheres
pobres de espírito.
BIBLIOGRAFIA:
ALEXANDRE, M. Do Anúncio do Reino à Igreja -
papéis, ministérios, poderes femininos. In PERROT, Michelle e DUBY,
Georges. História das Mulheres no Ocidente -1- A Antigüidade. Trad. Maria Helena C. Coelho e Alberto Couto.
Porto : Edições Afrontamento, 1990. P.
511-563.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Tradução
do texto em língua portuguesa diretamente dos originais. Publicada sob a
direção da “Ecole Biblique de Jerusalém”. Edições paulinas: São Paulo. 1985.
CHOURAQUI,A. Os homens da Bíblia. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Companhia das Letras: círculo do livro, 1990.
FIORENZA, E.S.
As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. Trad João
Rezende Costa. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.
MEEKS, W. A. Os
primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. Trad. I.F.L.
Ferreira. São Paulo: Edições Paulinas, 1992.
PERROT,M. Os excluídos da história: operários,
mulheres e prisioneiros. Trad. Denise
Bottman. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988.
PERROT,M. e DUBY,G.(org) História das Mulheres no Ocidente - A Antigüidade. Trad. Maria Helena C. Coelho e Alberto Couto. Porto :Edições Afrontamento, 1990.
[1] -
Doutoranda em História da UNESP-Assis. Docente das Faculdades Unificadas São
Luís em Jaboticabal- SP -
[2] -
No sentido que Michele Perrot utiliza em sua obra "Os excluídos da história: operários, mulheres e
prisioneiros".
[3] -
As pessoas organizavam-se em variadas
formas de associações voluntárias com fins sociais, que podiam ser festas,
reuniões religiosas para oferecer sacrifícios a algum deus. Cada grupo podia
definir o seu tamanho e as qualificações para pertencer ao grupo, e também
podiam escolher um deus para presidir as reuniões e receber sacrifícios em seus
banquetes. Nas cidades romanas, esses grupos eram conhecidos como collegia. Existiram três tipos de collegia : Os collegia composto por comerciantes tais como donos de navios,
transportadores, donos de armazéns, padeiros, comerciantes de víveres,
carpinteiros. Os collegia sodalicia
eram grupos que se dedicavam à adoração de deuses específicos e foram
constituídos por estrangeiros que se reuniam para venerar os deuses de sua
terra natal. O terceiro tipo era os collegia
tenuiorum, composto por pessoas sem condições financeiras e seu objetivo era
permitir à pessoa um funeral decente. Para isso, cada membro era obrigado a
pagar pequenas taxas mensais de pertença. Era também uma forma de contato
social já que tinham reuniões regulares (Stambaugh e Balch, 1996, p.114-5).