Comparações da Performance dos Rituais
Valdir
Pedde
Doutorando
em Antropologia Social pela UFRGS
O trabalho procura compreender como a
performance ritual contribui na elaboração e sustentação do ethos carismático em duas distintas
instituições religiosas: a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e
a Igreja Católica Apostólica Romana. O trabalho foi construído com base na
pesquisa etnográfica realizada junto a comunidades carismáticas destas instituições
religiosas, situadas em algumas cidades da Região Metropolitana de Porto
Alegre, RS.
Inicialmente, o trabalho procura compreender as
razões que motivam pastores, de uma instituição que possui um ensino teológico
reconhecidamente racionalizante para, em determinado momento de suas vidas,
assumirem uma postura fundada no carisma pessoal (isto é, fundado na
experiência do Batismo do Espírito Santo) e de pouca sustentação
racionalizante.
Em seguida, procuramos perceber como artifícios da performance agem sobre
os participantes do ritual nos cultos carismáticos luteranos e nos grupos de
oração católicos. Através da análise de alguns artifícios de performance,
tomando como base a oração e o canto, procuramos perceber como é
potencializada, ou não, por exemplo, a sinestesia em cada um dos casos
estudados.
Nas décadas de 50 e 60, os movimentos
carismáticos eram chamados de pentecostalização das denominações históricas
(Santos, 1977). No caso católico, o Movimento era denominado Pentecostalismo
Católico (Oliveira, 1977). M. das Dores Machado afirma que a tipologia
distintiva entre pentecostal e carismático organiza-se ao redor dos segmentos
de classe social. A categoria pentecostal estaria reservada aos segmentos
populares; e a carismática, aos das camadas médias (Machado, 1996). Contudo,
prefiro usar um outro critério de distinção, qual seja, a de pentecostal para
as expressões religiosas que ocorrem fora do âmbito das igrejas históricas e
carismático, para as expressões de religiosidade centradas na ênfase do
Espírito Santo dentro das agremiações religiosas históricas. O eixo não seria o
de inscrição social dos movimentos, mas de sua relação com a instituição de
origem. Temos, assim, o termo carismático entre católicos e luteranos, e
pentecostal, para aquelas que fundaram novas denominações.
Os movimentos religiosos que sublinham a
importância da experiência do Espírito Santo[1]
são fenômenos religiosos centrados na questão emocional, afetiva.
Caracterizam-se, portanto, como “comunidades emocionais” que articulam uma
recomposição da expressão religiosa na modernidade. “Desqualificando as ‘expressões intelectuais’ da fé, valorizando as
manifestações sensíveis da presença divina no mundo, as correntes emocionais
contemporâneas tentam contornar este conflito estrutural da condição do crente
na modernidade” (Hervieu-Léger, 1997: 42).
Algumas igrejas históricas têm tomado a
decisão de extrair de seus quadros funcionais pessoas do clero que aderem ao modus operandi dos pentecostais. Este é
o caso, por exemplo, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e dos
Batistas[2]. Já
as igrejas que o presente estudo contempla estão tentando, há anos, evitar uma
cisão. Ou seja, procuram achar caminhos que viabilizem a coexistência entre
carismáticos e outras tendências dentro destas instituições. Este trabalho
abordará o movimento carismático na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil[3]
(IECLB) e na Igreja Católica Apostólica Romana.
O objetivo do presente trabalho é
realizar um estudo comparativo entre as religiosidades carismáticas das duas
Igrejas históricas citadas, a saber: a Renovação Carismática Católica (RCC) e o
Movimento Carismático Luterano (auto-denominado Movimento de Renovação
Espiritual). O eixo de análise centra-se numa abordagem da performance ritual
nestes dois grupos religiosos. O objetivo deste trabalho é realizar uma análise
comparativa dos recursos de performance acionados nos dois movimentos
carismáticos distintos. Não há como esgotar a análise dos artifícios de
performance utilizados nos rituais. Em lugar disso, dei um primeiro passo,
estou ciente, na compreensão de quais são os artifícios de comunicação que o
ritual coloca a sua disposição e como eles agem dentro dos momentos cultuais.
Minha
intenção não é estabelecer paralelos entre os movimentos carismáticos católico
e luterano como um todo, embora vários elementos serão abordados, visando
situar o leitor dentro do conteúdo do presente texto. No intuito de captar os
artifícios de performance utilizados,
considero importante localizar os ritos dentro das religiões citadas,
elegendo ritos lapidares ou típicos, bem visíveis nos cultos carismáticos
luteranos e nos grupos de oração carismáticos católicos. Optei por comparar os
referidos grupos de oração com os cultos mencionados, porque cada um deles
constitui o rito básico no movimento carismático de sua igreja, isto é: na
igreja católica, a célula matter da
Renovação Carismática Católica é o grupo de oração (não a missa carismática);
e, na IECLB, a base do Movimento de Renovação Luterano é o culto.
2 - O Movimento Carismático
Luterano
O movimento carismático na IECLB surgiu de forma “espontânea”. Isto é, alguns pastores começaram a fazer experiências carismáticas a partir de crises pessoais diante de seus modelos pastorais. Os pastores carismáticos luteranos, apesar de suas propensões fundamentalistas, não foram sectários nos moldes do pentecostalismo. Eles reiteraram seu desejo de permanecer no seio da instituição de onde provêm.
Através
de dados comuns das biografias dos pastores que aderiram ao carismatismo, foram
buscados traços recorrentes, auxiliando, primeiramente, a mapear o processo de
“carismatização” da IECLB. Em segundo, ajudaram a perceber que a crise atual da
instituição Igreja em estudo afeta diretamente os seus obreiros. Eles não
conseguiram mais descobrir o seu papel. Ressentiram-se da suposta falta de
respostas para as pessoas, uma vez que o pluralismo religioso parece atender as
demandas que eles não conseguem. Assim, também os referidos pastores viam suas
paróquias esvaziarem-se, ou, no mínimo, terem apenas um rol de membros
nominais, mas não participantes. Dentro deste quadro, trago um pouco da
história de vida destes líderes carismáticos luteranos.
2.1 - Da conversão à crise vocacional
Quando iniciei a pesquisa com os pastores,
em 1999, os entrevistados provinham de uma mesma linha teológica. Dentro da
IECLB, eles estão identificados como participantes do Movimento Encontrão.
Trata-se de um movimento conversionista, colocando-se antagonicamente àqueles
que seguem a Teologia da Liberação, pois, para estes, a “conversão” é
compreendida como “conscientização” política. As duas principais linhas
teológicas mobilizadas na IECLB fazem uma suposta divisão entre conservadores e
progressistas na igreja.
Todos os pastores incluídos no presente
estudo, portanto, passaram pela experiência da conversão. Nem todos são
provenientes de famílias luteranas. A maioria é fruto de casamentos
religiosamente mistos. As experiências conversionistas, em todos os casos, se
deram na adolescência ou juventude, quando da participação em grupos de jovens
da igreja. Depois desta vivência, colocaram-se “à disposição de Deus para
servi-lo no ministério pastoral”, expressão recorrentemente usada por estes
pastores.
Estes convertidos foram para a Faculdade
de Teologia da IECLB. Lá encontraram um ambiente dominado pela racionalidade
teológica européia e pela leitura “latinoamericana da Bíblia”. Muitos
professores são reconhecidos como expoentes da Teologia da Libertação
integrados nas fileiras protestantes. Muitos destes jovens, senão todos,
tiveram aí uma séria crise de fé. Afinal, aquilo que era profundamente
existencial, a fé, tornava-se objeto de análise e de estudo, por assim dizer,
“científico”. O método de estudo de teologia adotado era o histórico-crítico.
Saíram da Faculdade confusos existencial
e teologicamente, uns mais outros menos, além da natural insegurança dos
principiantes na atividade profissional do pastorado. Em todos os casos,
geralmente a primeira experiência comunitária foi frustrante. Instalou-se,
assim, a crise vocacional, ministerial e pessoal. Alguns dos depoimentos o
atestam, como se lê nos relatos seguintes. O pastor Lúcio[4]
se expressa assim:
“Quando eu me formei, foi em 85, eu fui enviado para uma cidade da Bahia. E lá, logo, logo no princípio, eu já enfrentei a crise de pastorado. Senti assim, muito vazio, muita...a coisa não ia para frente. Alguma coisa estava..., senti que estava errada. Muito esforço, muito trabalho, pouco retorno.”
Eles
enfrentaram crises vocacionais, ministeriais[5].
Ressentiam-se de não conseguirem dar uma resposta convincente frente às
demandas religiosas que se colocavam, ou não encontravam em suas práticas algo
que lhes fosse significativo.
Este vazio ministerial deve ser colocado dentro de um quadro geral. Há, como muitos pesquisadores e religiosos atestam, uma crise no modelo tradicional-litúrgico das igrejas históricas. Além disso, existe uma constante comparação quantitativa entre os cultos destes pastores com os de igrejas neopentecostais. Este parece ser um fator adicional a influenciar o agravamento destas crises, pois a realidade neopentecostal acaba por exercer um grande fascínio ao apresentar facilidades sem precedentes para aumentar o número de adeptos (Gomes, 1994: 227). Estavam à procura de uma prática religiosa eficaz.
Vale
a pena, ainda, registrar um curto, mas lapidar relato da crise destes pastores.
Contou-me o pastor Eurico:
“Eu
comecei o trabalho animado, mas chegou um ponto, no ano de 83, 84, onde a
frustração chegou ao auge e onde eu senti que precisava redimensionar o meu
trabalho e também a própria vida. Muitas frustrações na vida pessoal, muita
briga na igreja, muita confusão onde eu sai atrás de tudo aquilo que eu achava
que podia me ajudar.”
2.2 - Da crise ao contato com pentecostais
Os
depoimentos acima apresentados demonstram a frustração com a vocação e já
apontam o caminho que os pastores procuraram percorrer. Sairiam em busca de
tudo aquilo que os pudesse ajudar. O mercado religioso se impunha. Eles saíram
à procura de soluções. As demandas religiosas do povo, isto é, a busca por
soluções para seus problemas, não encontradas nas comunidades destes pastores,
aprofundam o sentimento de impotência. Olhando ao seu redor, viam as igrejas
pentecostais crescendo; e as históricas, as suas, diminuindo ou estagnadas.
Todos eles, de modos particulares, colocaram-se a caminho, ou para conversar com pastores pentecostais, ou para comprar um grande volume de literatura pentecostal. Um obreiro até expediu correspondência a pastores de outras igrejas históricas que adotaram a prática carismática.
A
aproximação com o mundo pentecostal normalmente foi feita com reserva por parte
dos pastores da IECLB. Como fazem questão de frisar, entre o período de
aproximação e o batismo do Espírito Santo, passou um bom tempo; geralmente não
inferior a um ano. Este período de procura por “algo mais” foi precedido de
muita oração. Há toda uma intensificação da vida espiritual. Inteirados da
doutrina pentecostal sobre o Espírito Santo, os pastores buscavam a “plenitude
do Espírito”.
“Comecei
a participar também do conselho de pastores evangélicos em Juiz de Fora e, lá,
o grupo é carismático, o grupo é pentecostal. Eu pensei assim: - Bom, ou eu me
jogo de cabeça, sem restrição, ou eu vou ser um simples pastor luterano aqui no
meio, visto até com certo preconceito como luterano, mas eu fiquei naquela
assim. Um dia, veio um missionário. Ele é brasileiro. Ele é brasileiro, mas ele
é radicado nos EUA, Rique Bom Fim. O nome dele é Ricardo Bom Fim. O cara pregou
e tudo. Eu vi seriedade na coisa e, quando ele acabou a pregação, ele disse: -
Olha, eu quero dar oportunidade, agora, para quem está num vazio ministerial e
sente que precisa de uma força, que está buscando a plenitude do Espírito
Santo. Eu pensei: É para mim, e fui lá” (Lúcio, pastor).
Após
um tempo de idas e vindas, de contados com pentecostais e bloqueios quebrados,
todos eles receberam o dom de línguas, o qual, em seu entender, atesta a sua
“plenitude”. O recebimento do Espírito Santo sempre foi precedido por imposição
de mãos em círculos de oração ou em cultos de igrejas pentecostais de segunda
onda (Freston, 1994).
2.3 – Da euforia à tensão
A experiência do batismo no Espírito Santo foi descrita como algo gratificante, alegre, prazeroso, que trouxe serenidade a todos os entrevistados. As emoções que os acompanhavam foram colocadas em relevo. Para estes pastores, constituiu uma experiência positiva em todos os sentidos. Começaram, então, a ocorrer as mudanças na vida pessoal e ministerial.
A
partir desta experiência, os cultos sofreram modificações. As ênfases do
trabalho sacerdotal mudaram. Instalaram-se, invariavelmente, tensões entre os
membros ditos tradicionais e os que abraçaram a nova proposta. Os pastores iniciaram as práticas conhecidas no
neopentecostalismo: curas, exorcismo, visões / revelação, discernimento de
espíritos. Alguns romperam completamente com as tradições litúrgicas; outros,
não. No entanto, todos se sentiam pressionados: por um lado, por aqueles que
não viam sentido em tais mudanças; por outro, pelos que não encontravam
significado em nada que fosse tradicional. Houve um período de negociação em
torno destas questões.
“Eu tava que tava. Voltei para Monte Mor e ninguém me segura. Foi de muita tensão ali, porque eu queria. Aquilo era bom demais para mim e eu, naqueles tempos, nem queria mais orar em português. Eu só queria orar em línguas. No culto, eu não orava em línguas, mas eu queria. Eu só queria isso, era bom demais. Eu já queria impor a mão em todo mundo. Queria explicar para todo mundo. Eu comprei inimizades, comprei dificuldades, comprei problemas. Comecei a achar que era uma igreja fria, de gente velha, que não queria um avivamento, um monte de coisas. Típico. Aí eu quis sair da igreja também, quis ir embora. Nesse tempo, veio um pastor amigo meu, luterano, lá em casa. Eu disse para ele que eu ia embora, porque isso, porque aquilo, porque pa, pa, pa e pa. Enchi, desabafei com ele. Este pastor me sentou na cadeira e passou ‘a hora’. E, eu, num tempo atrás, eu tinha perguntado se ele queria ser meu pastor. Ele topava ser o meu pastor. Mas isto foi antes de tudo isso acontecer. E ele aceitou. E quando isso aconteceu, ele me disse: - ‘Você disse que era para eu ser o teu pastor. Agora você vai me ouvir’. Foi ele que me acomodou. Daí eu comecei a sentar um pouco mais a poeira. Comecei a entender melhor as coisas” (Haroldo).
De acordo com o relato, essa experiência
com o Espírito Santo não estava isenta de dificuldades ou tensões. Para os
pastores pesquisados, fazer esta opção significou enfrentar conflitos em suas
comunidades. Esses estremecimentos ocorreram fundamentalmente em dois momentos.
O primeiro, foi o da experiência com o batismo no Espírito Santo, fazendo com
que os pastores quisessem romper com o tradicional. Nada mais importava se não
propiciasse que mais pessoas chegassem ao batismo no Espírito Santo.
Com o tempo, houve uma acomodação entre o
conservador e o renovado, entre a instituição (entendida, aqui, apenas como a
comunidade local) e o carisma. No entanto, o processo nem sempre foi pacífico.
Na maior parte das vezes, por decidirem permanecer dentro da IECLB, estes
pastores acabavam vendo desligarem-se de seus quadros tanto os mais
tradicionais quanto os mais intransigentes carismáticos e afoitos por mudanças.
Estes pastores, por fim, estavam em busca de uma adequação entre instituição e
carisma.
O segundo momento ocorreu quando outras pessoas da comunidade passaram pelo batismo e igualmente quiseram romper com o tradicional. Haroldo relata:
“Diversas pessoas, naquela noite, receberam (o Espírito Santo), oraram comigo. Nas outras noites, também. E, agora, eu me vi na condição de ter que administrar esse pessoal nas mesmas coisas que eu passei. Foi muito interessante isso. Queriam revolucionar. Eu dizia: - ‘Calma, calma irmão’. Ao mesmo tempo, devia cuidar para não apagar o fogo. Não apagar o fogo, mas direcionar a coisa. Foi um processo também muito difícil, mas bom para mim. Me amadureceu bastante neste sentido, porque eu já tinha convicção que o meu lugar era na igreja. Eu não ia mais sair. Eu tinha que trabalhar para eles não saírem”.
Com
a implementação carismática, houve uma maior freqüência nos cultos, sobretudo
de pessoas com formação religiosa variada. É possível dizer, como os pastores
mesmo atestam, que existia uma forte procura por parte de pessoas de origem
católica com passagens pelos cultos afro. Como não estavam comprometidos com a
tradição e a história do protestantismo, guiavam-se pelo que sentiam ou viam em
outras igrejas pentecostais. Assim, “eles
identificam, existe uma identificação contra a tradição. Tudo o que é tradição
tem que cair fora. As velas se identificam com a igreja católica. Tudo o que é
católico, é demoníaco, é idolatria”, disse o pastor Lúcio. Ele informou não
concordar com esta afirmação, mas houve fortes grupos dentro da comunidade que
pensavam desta forma e pressionavam-no para que se livrasse dos símbolos
litúrgicos. Outros pastores, no entanto, estimularam esta forma de pensamento.
Com a entrada do carismatismo na IECLB,
houve uma forte tendência de os carismáticos se contraporem a tudo o que fosse
tradicional. Nesta oposição contrastiva com a tradição, buscaram a sua
identidade. Após a experiência com o batismo do Espírito Santo, a tradição
passou a ser vista como algo pronto e que impossibilitaria a plena ação do
Espírito Santo. Um pastor atestou:
“Por
trás de tudo isso, existe aquela mentalidade de que tudo o que vem pronto, tudo
o que vem montado, esquematizado, não dá, não permite a ação do Espírito Santo.
Então, você não deve ter liturgia. Você não deve preparar nada. O pastor não
precisa preparar a prédica. Você chega na hora do culto, abre a Bíblia e o
Espírito Santo vai te mandar falar. É essa a mentalidade que está por trás
dessa rebeldia de querer eliminar tudo, tudo aquilo que está pronto, que está
organizado” (Lúcio).
Muitas pessoas que assim pensavam eram freqüentadoras de outros cultos pentecostais e/ou leitoras de sua grande produção literária. Se não, de onde viria essa enorme rejeição à tradição? Existem motivações diversas. Cito, aqui, apenas uma, encontrada no livro de Edir Macedo, quando afirma crer que
"há um demônio chamado exu tradição, que penetra sorrateiramente, obrigando os membros da Igreja a atentarem tão somente para usos e costumes e normas eclesiásticas, de modo que entra a fraqueza espiritual na comunidade e esta se esquece dos princípios elementares da fé” (Macedo, 1988: 133).
Depois da experiência carismática destes
pastores, onde curas e exorcismos acabaram por entrar na rotina do seu
trabalho, afluiu, a estas comunidades, um grande número de pessoas de origem
religiosa diversa. Católicos se converteram, membros luteranos e não luteranos
ligados ou simpatizantes dos cultos afro deixaram suas antigas práticas. Como é
fácil concluir, acentuou-se a guerra espiritual (Oro, 1997). Estas pessoas
romperam com sua identidade religiosa anterior. Esta ruptura foi sempre
dramática ou dramatizada. Grande parte estava ligada ao catolicismo, marcado
identitariamente por inúmeros ritos, leis e adoração a santos. Tudo o que é ritual
e tradicional era apontado por estes como sendo católico; portanto, idolátrico.
Estes ritos não permitiam, a seu ver, o fluir
do Espírito Santo.
O Espírito Santo é percebido, assim, como
capaz de romper regras e tradições. Estes pastores buscaram trabalhar, em suas
comunidades locais, de forma que mais pessoas se sentissem participantes da
vida da comunidade; que fossem menos passivas. A ênfase conversionista foi
acentuada. O batismo do Espírito Santo constituía “um revestimento de poder. O Espírito de Deus consegue pôr em serviço. É
uma ‘turbinada’. Você recebe um turbo que o Espírito Santo quer dar para todo o
crente que quer servir”, pensa o pastor Haroldo.
Mesmo
com a opção de não se desvincularem da igreja-mãe, estes pastores, em meio aos
citados conflitos e em função deles, protagonizaram transformações litúrgicas
em seus cultos. As referidas mudanças serão detalhadas adiante.
Por
fim, o que podemos depreender, é que o movimento carismático luterano é
decorrência de um mercado religioso que se impõe. As crises de sentido
vocacional, profissional e pessoal são conseqüência da percepção dos pastores
desta igreja de uma falta de sentido e de uma prática eficaz para o suprimento
das necessidades concretas das pessoas, sejam elas espirituais (de sentido),
e/ou materiais (de cura, reorganização familiar, solidariedade em busca de
emprego, etc.). Em decorrência desta situação, os pastores são levados a se
aproximarem de grupos, pessoas e/ou literatura que enfatizam a experiência do
Espírito Santo. Esta prática é entendida como fonte da libertação do poder de
Deus para as pessoas. Tendo realizado tal experiência, os pastores
implementam-na dentro de suas comunidades a partir de práticas de cura,
“expulsão de demônios”, etc., que os aproxima da pedagogia pentecostal. Esse
exercício de espiritualidade é, na maior parte das vezes, seguida de muitos
conflitos intra-comunitários, polarizando posições dentro da IECLB, rotulada
por meio da nomenclatura carismáticos e tradicionais.
3
– Uma abordagem comparativa na performance ritual entre carismáticos
A
seguir, de forma comparativa, centro a atenção nas performances dos cantos e
das orações nos momentos cultuais dos dois grupos carismáticos aqui analisados.
Em decorrência do pouco espaço, não entrarei em muitos detalhes na análise das
performances dos cantos e orações dos grupos religiosos das duas instituições
observadas. Em função disso, é possível que as reflexões adiante tenham ainda
um caráter fragmentário, em virtude de fazer parte de uma reflexão maior. O
leitor deverá desculpar esta lacuna,
mas esforcei-me o mais possível para atenuar essa percepção.
3.1 – Músicas
As
músicas dos rituais carismáticos aqui abordados consistem em uma via
privilegiada de manifestação da emoção. Juntamente com a oração, a música
constitui-se no elemento ritual onde se pode perceber a emergência de uma
comunidade emocional. Em ambas as igrejas, os cantos têm papel preponderante
nos momentos cultuais e de encontro.
Em
termos de performance, vale destacar a utilização de uma grande seqüência de
cantos entre os carismáticos luteranos, bem como a mínima interferência de
falas. Sendo assim, é potencializada a interiorização, suscitando um impacto
emocional bastante grande. Entre os carismáticos católicos, contudo, os hiatos
entre cantos, sejam eles de fala ou silêncio (até encontrar a próxima música no
hinário e não sendo um silêncio meditativo) de certa forma interrompe a cadeia
emocional. O tempo dedicado à música é também distinto entre os dois rituais
comparados. Enquanto entre carismáticos luteranos não é menor do que quarenta
minutos, quase que ininterruptos, apenas no louvor inicial, ao que se somam
ainda vários momentos musicais ao longo do rito, entre os católicos,
contabilizando todas as músicas do ritual, chega-se a trinta minutos. Enfim, a
música, como qualquer parte do ritual, “não só exterioriza a experiência, não
só a ilumina, como a modifica pela própria maneira como a exprime” (Douglas,
s/d: 81). A força da performance, pois, não é algo menor. Por este motivo, não
deixa de ser sintomático o investimento que os carismáticos luteranos fazem no
conjunto musical, a tal ponto de terem mais de uma banda em cada comunidade.
Como resultado das observações, sugiro que o efeito emocional que se procura
alcançar nos ritos carismáticos luteranos é maior do que entre os carismáticos
católicos visitados, criando um ambiente de maior interiorização e impacto
emocional.
Nos
dois rituais, durante os cantos, os corpos recebem relevo. Os gestuais são
envolventes e as posturas corporais procuram mostrar este contato com o sagrado
nos abraços, nas máscaras faciais, nos olhos fechados.
Tematicamente,
as ênfases são bastante parecidas, uma vez que, tanto no ritual católico como
no luterano, as letras dos hinos conduzem as pessoas para uma relação de
interioridade. As letras evocam privilegiadamente o “poder”, a “maravilha”, o
“amor” de Deus para com as pessoas e particularmente para com aquele que canta,
já que a letra é preferencialmente escrita na primeira pessoa do singular ou do
plural. Isto conecta, de imediato, o cantor com o cantado, sugerindo que ocorre
aquilo que é expresso na música: “Edifica
em mim uma morada para ti, um lugar onde teu espírito possa sempre estar”,
ou, ainda, “Estamos aqui para te adorar,
em tua presença, prá te exaltar...”.
A
grande diferença é que, também nas músicas, o movimento carismático católico
mostra sua ligação com a tradição desta igreja. Chama a atenção, por exemplo, o
número de hinos dedicados e cantados à “Maria”.
3.2
- Performance e orações
As orações que passo a analisar fazem
parte do ritual cultual dos distintos grupos carismáticos e estão moldadas por
uma performance distinta. Performance é uma forma particular de comunicação,
especialmente caraterizada por um distanciamento do cotidiano (Tambiah, 1985;
Bauman, 1993). O evento performativo analisado comunica os principais temas da
interação social. A linguagem é um dos principais elementos da vida social, a
qual está inserida em uma cultura e dela emerge (Sherzer e Bauman, 1989). O
estudo da linguagem é enfatizado por estes autores como algo que vai além dos
padrões da gramática, pois a linguagem está intimamente ligada à vida
sociocultural.
Compreender os meios da fala significa
entender os atos do discurso e os gêneros narrativos disponíveis aos membros da
comunidade para a condução da fala.
3.2.1
- Gênero narrativo
A arte verbal empregada no estilo
narrativo da oração carismática constitui-se em uma fala que procura abrir a
pessoa ou o grupo a receptividade ao Espírito Santo. As palavras estão
carregadas de um poder evocatório de emoções. Enfim, “a oração só age pela
palavra e a palavra é o que há de mais formal no mundo. Portanto, nunca o poder
eficaz da forma é tão aparente” (Mauss, 1999: 249).
A partir da conceituação de performance
acima referida, o gênero narrativo constitui-se em um ato de fala interativo e
performático. A oração proferida em um culto consiste em uma forma especial de
comunicação, fazendo parte do repertório lingüístico (Sherzer e Bauman, 1989)
dos membros da comunidade religiosa em geral e carismática em especial.
Visando refletir sobre a oração enquanto
gênero, apoiar-me-ei na qualificação que Csordas (1997) propôs sobre os gêneros
dentro do espaço cultual de carismáticos católicos. Para ele, a linguagem
ritual carismática católica é composta de um sistema de gêneros. Os quatro
maiores gêneros desta linguagem ritual são a profecia, o ensino, a oração e o
compartilhar ou testemunho[6].
Saliento, neste texto, a oração como um
gênero específico de discurso na medida em que este momento ritual está
circundado de especificidade, o que fornece um enquadramento próprio de
performance; enfim, de um estilo singular na arte verbal e comunicacional.
A oração pode ser entendida como um
enquadramento[7].
A noção de enquadre ou moldura (frame) refere-se tanto aos momentos de
organização do discurso como à alternância de códigos. De qualquer forma, o
enquadramento está relacionado ao contexto, para orientar tanto a audiência
quanto o performer (Bauman e Briggs,
1990). Turner alia-se a esta definição ao considerar
que a narrativa fornece um quadro (frame). “O enquadramento é uma forma de
metacomunicação em que a mensagem enviada inclui um conjunto de instruções
sobre como interpretá-la” (Langdon, 1999: 20).
O conceito de oração dos carismáticos é,
no mínimo, um momento onde ocorrem dois estilos ou gêneros narrativos por conta
dos quais acontece uma fissura, assinalada, sobretudo, pelo uso de diferentes
funções comunicativas[8].
A primeira reside na parte introdutória da oração, sendo um discurso direto com a audiência. O dirigente se reporta àqueles que estão no culto. Esta introdução, por vezes, é maior que a própria prece. A segunda parte, que é, efetivamente, a oração, consiste no momento em que o dirigente endereça a sua fala a Deus, uma entidade acima dos presentes. Aqui, a função “mágica ou encantatória” é acionada. Esta função, conforme Jakobson, “é sobretudo a conversão de uma ‘terceira pessoa’ ausente ou inanimada em destinatário de uma mensagem conotativa” (Jakobson, 1975: 126). No caso de um culto, a reza, mesmo que dirigida a Deus, tem o objetivo óbvio de despertar ou evocar emoções e atitudes na comunidade.
Segundo Csordas (1997), a oração à deidade entre os carismáticos é de quatro tipos básicos: de adoração, de petição ou intercessão, de busca por orientação e, por último, de oração dirigida à busca por autoridade para a expulsão e/ou repreensão aos demônios. No entanto, elas não ocorrem de forma pura. Os elementos distintivos da oração (adoração, petição, ensino e poder / autoridade) vão se misturando. Mas é possível perceber, nas orações, um enfoque privilegiado, um acento maior em algum dos elementos, o que a caracterizaria como tendo um dos quatro gêneros principais.
3.2.2 - Alguns apontamentos sobre a arte verbal nas orações carismáticas católica e luterana
As orações de petição dos dois grupos religiosos observados (estão em anexo) revelam a parte central da cosmologia dos mesmos. Entre os luteranos, destaca-se a importância da ação do Espírito Santo como um poder que intervém de forma direta na vida das pessoas, transformando a oração em um ritual de sofrimento no qual a pessoa precisa sentir-se vazia, limitada, morta simbolicamente para poder ressurgir pelo poder divino. Dessa forma, potencializa a vida da pessoa para dentro da existência e provendo-a de uma consciência criativa da posição humana no cosmos (Sullivan, 1986).
Entre
os carismáticos católicos destaca-se igualmente o papel do Espírito Santo,
porém o seu papel circunscreve-se a ser “luz” para dentro de uma consciência
que se entende escura. Também o tema da falta é recorrente, embora o seu
impacto emocional seja menor, por não ser enunciada nenhuma necessidade humana
específica. A referência a Maria denota a assimilação da identidade católica.
Em
termos de performance, a oração realizada pelo dirigente carismático luterano
faz um acentuado uso da função emotiva, enquanto nas rezas carismáticas
católicas, a função conotativa se sobrepõe na enunciação.
A
mensagem caracterizada pela função emotiva, conforme Jakobson (1975), está
centrada no emissor (o dirigente), o qual faz uso do discurso indireto (“Saiba que você, assim como você é, Deus ama você.(...) Deus tem um
interesse grande pela tua vida”) pelo qual enunciador e Deus fundem-se em
um só sujeito. Essa arquitetura da linguagem torna-se um potente veículo de
sentimento, uma vez que o receptor se espelha dentro do interesse divino (“não há situação que o Senhor não possa
reverter na tua vida”). A introdução da oração passa a ser um espelho no
qual o ouvinte se torna participante. Além disso, a oração se mescla de pedidos
e de certezas. O imperativo é constantemente usado (“recolhe”, “olha”, “ouve”, “vem”). Aqui, quando aparece a função
conotativa (fala dirigida à divindade), ela surge de um modo distinto do usado
entre católicos, uma vez que, sendo imperativa, submete Deus à vontade do
enunciador.
De
outra parte, no grupo da RCC observado, o pedido está subordinado à função
conotativa, não sendo imperativa, mas de súplica, onde o enunciador está
submetido a Deus.
Entre
luteranos, a sinestesia é mais potencializada e explorada que no meio católico.
Por exemplo: enquanto, nos luteranos, música e oração acontecem
simultaneamente; no seio dos grupos de oração católicos observados, isto não é
assim. Além disso, a cadência da fala das orações mostra-se mais agonística entre
luteranos. As frases são maiores, havendo um aproveitamento diferenciado da
respiração, dando uma cadência mais rápida com possibilidade de uma maior
variabilidade de acentos da voz. Já a oração realizada pela dirigente católica
é mais pausada, cadenciada, com menos acento de entonação e de variabilidade de
modulações de voz. As prosódias dos dirigentes dos distintos grupos religiosos
diferem.
O
paralelismo aplicado na fala também é um artifício da arte verbal para a
articulação de redundâncias criativas (Tambiah, 1985). Comparando as duas
orações analisadas, percebemos que os paralelismos sintáticos e temáticos são
mais numerosos entre o performer
luterano do que na oração da performer
católica.
Entendendo-se
que a busca dos movimentos carismáticos é por uma relação com o sagrado, quanto
mais um ritual conseguir envolver sua audiência usando os recursos de
performance disponíveis, maior será a sensação de ter conseguido suscitar uma
relação com a divindade (entendida como um encontro pessoal, subjetivo; portanto,
emocional); mais próxima se torna a comunidade de seu ideal cosmológico, qual
seja, a presença e a ação de Deus. O desempenho do performer é fundamental para o efeito de verdade que sua fala quer
alcançar.
A
meu ver, a partir das performances das orações, é possível dizer que os
carismáticos luteranos chegam mais perto do mundo ideal imaginado, isto é, do
mito de Pentecostes, que seus congêneres católicos. Mas é preciso ter cautela.
Até que ponto a cosmologia e a própria cultura religiosa católica permite que
se faça esta inferência? O habitus
religioso católico pode estar barrando certos recursos de performance,
eventualmente considerando-os inadequados. Entendo que, para solucionar parte
deste problema, seria necessário acompanhar grupos de oração de outras dioceses
com o intuito de perceber quais os artifícios de performance acionados e quais
não. De posse deste espectro maior de observação se poderia assinalar mais
seguramente que os grupos de oração observados alcançam um maior ou menor grau
de interiorização da mensagem pela via emocional, dentro do habitus religioso católico.
Entretanto,
o referido dado não significa que o ritual carismático católico observado não
registre uma considerável eficácia simbólica para os que dele participam. A
eficácia simbólica do ritual luterano depende mais da atuação do performer do que ocorre entre
carismáticos católicos. Isto se deve ao fato de que, se para um é a força
performática de sua enunciação que dispara o “míssil mágico”, entre católicos
uma cura pode ser alcançada tanto pela atuação de um performer carismático quanto pela ministração de um padre não
carismático quando passa o Santíssimo[9].
Portanto, a questão é quanto a performance ritual consegue potencializar, nos
participantes, uma fusão entre “mundo vivido e o idealizado sob o conjunto das
formas simbólicas” (Mercante, 1999: 6).
Como procuramos mostrar, o movimento carismático luterano é liderado e organizado pelo clero. Tendo dúvidas sobre a eficácia de seu trabalho pastoral, a crise tem levado alguns pastores a procurarem a solução de seus problemas ministeriais na opção por uma mística pentecostal. Os carismáticos católicos, por outro lado, organizam-se de forma a que os leigos tenham um papel mais importante.
A
Renovação Carismática Católica é um movimento leigo orientado pela hierarquia
católica através de permissões e proibições. A “estrutura devocional” católica
permite estas múltiplas formações de grupo. São os piedosos, os pobres ou os
sem poder eclesiástico que articulam a sua fé. Isto ocorre mais visivelmente na
devoção aos santos, nas romarias, nas festas de santos, sendo quase todos
movimentos incorporados pela estrutura eclesiástica, mas não gerados por ela
(Alves, 1980).
Os
carismáticos luteranos formam um movimento absolutamente clerical, dirigido por
pastores, mesmo que os leigos tenham um papel importante na constituição destas
comunidades. No entanto, a comunidade carismática depende totalmente do pastor,
de suas determinações, de seu carisma. É bem verdade que, em muitas comunidades
luteranas, existem sérios conflitos entre a diretoria e o pastor, justamente
devido a que a direção do pastor entre luteranos é vista como muito decisiva.
Há
grupos de oração em comunidades católicas onde o padre não compactua com a
Renovação. Constitui-se em um movimento leigo. Já entre luteranos, isto é quase
inimaginável. Dificilmente se articularia uma comunidade carismática
alternativa dentro de uma comunidade não-carismática, como pode ser encontrada
no meio católico. Da mesma forma, é pouco provável que um pastor carismático
consiga manter-se em uma comunidade que decididamente não aceita a condução
carismática de seu pastor.
Entendo
que a cosmologia católica, pode nos oferecer uma explicação interessante para o
acima descrito. Ela é muito mais povoada de alternativas mediadoras e aceita
com mais facilidade a diversidade que a igreja luterana, enquanto entre
luteranos, que se firmam mais sobre a autoridade da Bíblia, permite-se uma
margem de negociação bem menor. A interpretação bíblica, como se sabe, pode ser
feita de múltiplas maneiras. Dependerá basicamente da habilidade do pastor a
imposição de sua visão e interpretação bíblica, bem como de como introduz uma
nova performance ritual nos cultos da comunidade. Entre católicos, estes
espaços cultuais estão demarcados com mais nitidez. Missa é missa. Grupo de
oração tem o seu momento, podendo ser aceita a convivência de grupos de
diversas matizes, sem que isto gere maiores problemas.
A
experiência religiosa como percebida nesses ritos cultuais é, antes de mais
nada, um encontro subjetivo com a divindade. Esse encontro é tão mais intenso
quanto mais suscitar emoção (Corten, 1996). Entendo que este aspecto vem ao
encontro das necessidades neste final de milênio. Atomizado e isolado, busca-se
emoção e afeto.
Assim,
um dos elementos similares em ambos os movimentos é a importância do afeto
entre as pessoas e da experiência emocional com Deus. Esse é o eixo principal
nos dois grupos religiosos observados. Contudo, o acento na questão emocional
adquire contornos distintos. A apropriação da emoção é diferente entre os
rituais pesquisados. Os acentos se dão de uma forma peculiar. Os carismáticos
luteranos, parecem utilizar os recursos de comunicação de modo a potencializar
a sinestesia no ritual. O papel do pastor é fundamental. De seu carisma pessoal
depende o sucesso da proposta carismática no seio da comunidade.
Se,
de fato, podemos observar essas ênfases distintas na questão emocional, é
também porque o ritual está ancorado sobre cosmologias diversas. Para o
movimento carismático luterano, filho do protestantismo, o encontro com Deus
tem a subjetividade como o único espaço possível. A consciência individual está
sobre a instituição e o encontro com Deus ocorre sem mediações, sejam elas espirituais
ou institucionais (Mendonça, 1998) . Por isso, é avesso aos dogmatismos e às
instituições.
Para
os carismáticos católicos pesquisados, o subjetivo é igualmente condição sine qua non na performance ritual.
Contudo, a cosmologia católica, mais povoada de mediações, articula o subjetivo
com o tradicional, de forma que renova o já existente. Esta articulação pode
estar colocando a afetividade e o emocional não tanto no encontro ritual, mas
justamente na resignificação de antigas tradições e símbolos. É por isso que
reiteradas vezes pude ouvir e observar o significado, em termos emocionais, da
passagem do Santíssimo em um ritual carismático. As pessoas tocam nele,
fitam-no, e desse ato, “acontecem curas”. Os carismáticos católicos buscam a
experiência emocional no encontro com o sagrado, mas, para estes, a igreja
sempre foi mediadora e portadora da mensagem divina. Por conseguinte, os
carismáticos católicos enfrentam uma constante tensão entre fé e religião
(instituição) (Sena, 1998), superada pela resignificação da tradição católica
(Barbosa Neto, 2000).
Assim,
enquanto os carismáticos católicos resignificam a tradição de sua igreja a
partir de uma experiência pessoal, os luteranos tendem a efetivamente mudar a
face da instituição. A ressemantização entre luteranos é mínima, porque tudo
está colocado no sujeito. Enquanto os fiéis da RCC adaptam a mensagem bíblica à
identidade católica, os carismáticos luteranos procuram adaptar a Instituição
ao mito.
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Anexos
Na
oração de um culto luterano aqui analisada, a moldura da oração pretende
despertar uma convicção da atuação de Deus. Os paralelismos reforçam este
sentido de presença, de atuação e de poder de Deus.
Dividi a parte introdutória desta oração em duas. A partir desta divisão, percebemos melhor a construção temática e sintática das orações.*
1 Quero convidar a você a fechar os teus olhos.
Curve-se diante desse Deus
que está neste lugar.
2 Este Deus Todo-Poderoso, que,
nesta noite,
não vai perder a grande
oportunidade
de falar a cada um de nós.
Saiba que você, assim como
você é, Deus ama você.
3 E não há nada na tua vida que o
Senhor não possa resolver,
a
b não há pecado que ele não possa
perdoar,
não há situação que o Senhor
não possa reverter na tua vida.
Saiba que, nesta noite, o
Senhor olha para o teu vizinho do lado,
mas olha para você, agora.
c Ele
sabe o que você tem e o que você sente.
a Ele
sabe de teus projetos e de teus planos.
Deus tem um interesse grande
pela tua vida.
4 E eu quero te convidar, nesta
noite,
a, junto comigo, nós
levantarmos um clamor muito grande neste lugar.
O que o Senhor está esperando
de mim e de você, é a tua oração,
é
a minha oração, é a minha causa colocada diante dele.
Esta
é segunda parte da introdução.
O que você quer que o Senhor
fale com você?
O que você precisa para sua
casa,
prá sua família,
nos seus relacionamentos?
O que você precisa, coloque
diante desse Deus agora.
E eu quero convidar a você
para que, juntos, levantemos um grande clamor.
Comece a orar a este Deus
poderoso,
mexa com seus lábios,
abra sua boca.
Deus está querendo ouvir a
tua oração nesta noite.
O senhor não vai deixar de
nos atender.
O Espírito Santo de Deus está
neste lugar.
O senhor quer abençoar
grandemente.
A palavra de Deus diz que eu
e você temos que clamar a Deus, /
temos
que invocar o nome de Deus, e nós queremos fazer isto do fundo do nosso
coração. /
Ora, meu irmão, minha irmã,
não tenha medo de orar a este Deus.
Todos vão ser abençoados esta
noite. O senhor quer falar conosco.
O senhor vai derramar o seu
Espírito Santo neste lugar.
Vai clamando, vai pedindo
pela tua vida,
pela tua família, / pela tua
igreja. /
Pede aquela tua causa
impossível diante de Deus. /
Pede, nesta noite, em nome de
Jesus.
Essa parte da introdução foi dividida em 8 segmentos. Temos o 1º e o 8º blocos tratando sobre o mesmo assunto, ou seja, pedir o auxílio divino para a resolução de problemas concretos (família, relacionamentos, igreja) e até de causas impossíveis. Há, aqui, portanto, uma circularidade temática. Esta circularidade ocorre também em relação ao 2º, 3º e 5º, 6º blocos. Nesses últimos, sobressai a promessa do agir divino (“Todos vão ser abençoados esta noite”). No bloco central, o 4º, lê-se a afirmação peremptória: “O Espírito Santo de Deus está neste lugar”. Graficamente, poderíamos descrever estas alternâncias temáticas como co-círculos.
Oração propriamente dita
Deus
querido e Deus amado, obrigado que tu estás neste lugar.
Obrigado,
Senhor, que tu estás derramando do teu poder, aqui nestes dias, ó Pai.
Obrigado
pela grande obra que o Senhor tem feito em nossas vidas, ó Pai.
Muito
obrigado por tudo que o Senhor ainda vai fazer, ó Deus.
Eu
te peço, em nome do Senhor Jesus, ó Deus,
recolhe
todas as orações que são feitas neste lugar, ó Deus.
Olha
para cada um de nós com graça, com misericórdia,
Senhor.
Ouve,
Senhor, o clamor de cada um, Senhor.
Aquele
que está triste,
aquele
que está desanimado, Senhor,
aquele
que está pensando em desistir da caminhada,
Deus.
Tem misericórdia, Senhor, de nossas vidas nesta noite.
Tem
misericórdia da nossa família, Senhor.
Tem
misericórdia, Senhor, de nossas Igrejas, ó Pai.
Vem
agir grandemente no nosso meio, Pai querido e Pai amado, em nome de Jesus, ó
Deus.
Nós o declaramos derrotado
pelo nome e pelo sangue do Senhor Jesus Cristo.
Nesta noite, Deus querido, queremos ver a tua glória se manifestando
aqui.
Queremos ver a tua palavra
sendo pregada poderosamente, Deus.
Nós queremos vidas
abençoadas, ó Pai.
Senhor,
diante da tua palavra.
Fica conosco, Senhor.
Ajuda, Deus querido,
nos abençoa nesta noite.
Em nome do Senhor Jesus.
Em nome de Jesus.
Amém, Senhor.
Amém, Senhor.
A
introdução das orações constituem-se em um metacomentário da própria oração.
Agora é possível notar a distribuição temática e paralelística da oração de um
grupo carismático católico.
[Introdução]
Podem sentar,
e vamos fechar o nossos olhos
/.../ [10]
e abrir o nosso coração.
1 Que quando a gente fecha os olhos e ora,
com os olhos fechados,
nós abrimos o nosso coração,
nosso espírito para Deus.
E nesta noite,
nesta noite maravilhosa,
nesse encontro
com Jesus,
com Deus Pai,
vamos pedir para Deus Pai,
prá ele entrar em nosso
coração
2 e para ele nos dar confiança,
prá que a gente creia cada
vez mais /.../
no seu poder,
no seu amor maravilhoso,
na sua força.
Essa força de nos transformar
em pessoas
tão parecidas com Ele.
Vamos pedir com muito carinho
prá Deus Pai.
[Oração]
“Sim, paizinho querido, eu te
recebo no meu coração,
1 com fé,
com confiança e com alegria.
Também quero te receber
Jesus,
Jesus amado,
filho de Deus Pai,
tu que te deu a vida pelos
nossos pecados, me perdoa, Senhor Jesus,
2 e vem ao meu encontro.
Minha casa está aberta.
Eu quero ser morada tua.
Eu quero ser um templo teu,
Senhor Jesus, nesta noite
e sempre, Senhor Jesus.
Também quero, Senhor Jesus,
o Espírito Santo de Deus, o
Espírito Santo, Paráclito,
que ele / / nos ilumine,
tome conta de nós,
de nosso familiares,
3 de todos aquelas pessoas também
que nos pediram oração, Senhor Jesus.
Toma conta, Senhor Jesus,
dessas pessoas
que não puderam vir ao grupo,
Espírito Santo.
Vá até as casas delas para
que elas permaneçam contigo
e no teu amor.
Permanece Espírito Santo
dando luz à nossa vida,
dando luz aos nossos olhos,
porque só assim, se tivermos os olhos iluminados pelo teu Santo Espírito, seremos luz para o mundo.
Espírito Santo de Deus,
obrigado.
4 Obrigado, por se colocar / / no
meio de nós
e distribuir a tua luz,
as tuas graças /.../
e a tua força, Espírito
Santo,
que escorre como fogo em
nossas veias.
Muito obrigado, Espírito
Santo.
Queremos também agradecer à
mãezinha Maria
e acolhê-la em nosso coração
nesta noite,
e levarmos este amor de
Maria,
este amor de mãe para a nossa
casa.
Nós queremos te acolher,
Maria,
assim como a Santíssima
Trindade,
em nosso coração,
5 em nossa família.
Obrigada, Maria.
Obrigada pelo teu amor,
pela tua presença.
Obrigada pelo teu exemplo.
Obrigada, mãezinha querida,
por nos abençoar esta noite
e por estar aqui presente.
Obrigada, mãezinha”.
[1] Neles o Espírito Santo detém um peso simbólico significativo, “menos como conhecimento e mais como experiência religiosa” (Oro, 1998: 153).
[2] Um dos pastores de uma das comunidades carismáticas luteranas pesquisadas era egresso (convidado a se retirar) de uma igreja Batista de Canoas, que não aceitou as inovações carismáticas introduzidas pelo pastor. Houve um conflito com a Junta Batista do Estado, sobretudo pela prática do exorcismo.
[3] Esta denominação chegou ao Brasil por meio dos imigrantes alemães no primeiro quarto do século XIX e permanece identificada com os núcleos regionais circunscritos pelos mesmos depois de várias gerações, ou seja, comunidades notoriamente germânicas, presente desde 1824 no Rio Grande do Sul.
A IECLB é ainda o que poderíamos chamar de igreja étnica. Com freqüência, notadamente maior nas cidades do interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, as pessoas costumam associar as comunidades da IECLB, ou luteranas em geral, como símbolo e espaço de resguarde étnico. Suas igrejas são as “Igrejas dos alemães”, visto ser a própria IECLB uma Igreja de transplante (DREHER, 1980), ou de imigração (BRANDÃO, 1988: 30). Além disso, trata-se de uma Igreja relativamente pequena (contando com aproximadamente 800 mil pessoas filiadas) e fortemente associada a uma teologia racionalista.
[4] Os nomes foram alterados, sendo somente mantidos os nomes verdadeiros quando se trata de falas obtidas através de meios de comunicação públicos, como jornais e boletins.
[5] Relativo a ministro religioso.
[6] Particularmente, eu ainda incluiria a música, a qual possui uma alta importância para os carismáticos. Por que o autor não a inseriu na lista? A música pode ser aceita como um gênero narrativo? Creio que sim, porque inclusive as músicas possuidoras de um texto “fixo” são selecionadas de modo apropriado a comunicar uma mensagem, fazer emergir um engajamento, sobretudo emocional, na comunidade.
[7] A oração é enquadrada por uma alternância de códigos verbal e não-verbal no fluxo do processo ritual. Poderíamos dizer que Goffman (1998) requinta a definição de enquandre com o conceito de Footing – Alinhamento. Trata-se da postura de alguém na relação comunicativa com o outro. A referida alternância de código sinaliza a maneira pela qual é gerenciada a produção e a recepção de um enunciado, como o tom da fala, por exemplo. Footing consiste em uma espécie de marcador lingüístico ou paralingüístico que assinala a alternância de código. Nas orações, esta alternância de código ocorre a partir de chaves que encontramos em fórmulas explícitas, como: “Vamos orar”, “Convido você a orar”, “Ore comigo agora”, etc. Ou, então, acontecem de forma menos explícita, como: “Quero convidar você a fechar os seus olhos. Curve-se diante desse Deus que está neste lugar”. Igualmente, utilizam-se os códigos, como: “Em nome do Senhor Jesus. Amém”, que conduzem a audiência a notar a finalização do ritual da oração. Esta alternância de códigos vai possibilitando emoldurar o comportamento dos participantes no decorrer do culto.
[8] Ao tratar das seis funções da linguagem, Jakobson as considera como um conjunto onde uma não existe sem a outra. Mas, é preciso perceber ou destacar seus diferentes modos de arranjo hierárquico, utilizados no comportamento verbal pelo falante (quais as funções dominantes em cada momento de uso da linguagem). As seis funções são: função referencial (Contexto), função emotiva (Remetente), função poética (Mensagem), função conativa (Destinatário), função fática (Contato), função metalingüística (Código) (Jakobson, 1975: 123-129). Trois (2000) traz uma reflexão bem elaborada sobre as funções comunicativas de Jakobson, das quais fiz uso.
[9] Uma participante do grupo de oração se referiu da seguinte forma em relação ao poder do Santíssimo: “Quando existem pessoas que choram muito sem motivo aparente, quando o Santíssimo faz o passeio, que é o momento que o padre simplesmente passa o Santíssimo, ele tem o poder tão grande que as pessoas se sentem tão gratificadas. As pessoas, na hora, sentem o milagre. Elas sentem, às vezes, a cura, a libertação. Às vezes passam dois, três dias; depois é que elas vão sentir. Às vezes, assim ó, as pessoas têm uma dor terrível, e no momento passa, mas não é assim que a dor passa no momento e amanhã vai ter de novo. Nunca mais volta” (Cristina).
* As frases estão separadas em função das pausas respiratórias. São elas que ajudam a determinação da cadência, o ritmo da fala.
[10] Fiz uso de dois sinais, a fim de enfatizar as pausas ocorridas durante a enunciação. O sinal / / refere-se a uma pausa feita pela oradora, mas não utilizando a respiração como intervalo. Evidenciam momentos de pequenas quebras, um certo titubeio rápido. Quando utilizo /.../, refiro-me a momentos não apenas de pausa respiratória, mas de indecisão no expressar da idéia.