A Barquinha:
Uma cosmologia amazônica em construção

Wladimyr Sena Araújo[1]
UNICAMP

RESUMO

Este trabalho visa apresentar uma religião amazônica chamada de “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz”, conhecida popularmente como Barquinha que foi criada em Rio Branco - AC em 1945 por Daniel Pereira de Mattos, ex-marinheiro oriundo do Maranhão.

Os praticantes desta religião ingerem uma substância psicoativa por nome de ayahuasca, feita com um cipó (Banisteriopsis caapi) e uma folha (Psychotria viridis). Este chá é milenar e é usado atualmente por índios, caboclos/vegetalistas e religiões urbanas como a União do Vegetal, que o chama de “hoasca” e o Santo Daime e Barquinha, para a qual o psicoativo é intitulado de “daime”.

A Barquinha é um dos espaços do Acre que congrega práticas religiosas africana, indígena e européia. É uma religião com um processo de resignificação bastante veloz, o que nos leva a (re)discutir sincretismo através de um pressuposto básico essencial para a compreensão de um espaço cultural e simbólico complexo: a cosmologia.

INTRODUÇÃO

O tema que que trabalho desde 1995 e que irei abordar neste trabalho constitui uma pesquisa sobre uma religião amazônica que faz  uso de uma planta  psicoativa de poder (Sena Araújo, 1997).

Para o antropólogo Edward MacRae (1999), as plantas sagradas estão colocadas a serviço da comunidade, não possuem um caráter anti-social e representam um elo entre o universo profano e o sagrado. É uma das formas nas quais os homens penetram no mundo dos espíritos, no conhecimento esotérico. Segundo ele, negar o uso de plantas de poder em um grupo cultural “é o mesmo que negar a validade a um enorme e diversificado conjunto de crenças culturais, pelo simples fato de não partilharmos de tais crenças. E, essa tem sido sempre a primeira reação que parte do senso comum, contaminado certas abordagens que trazem, mesmo de forma dissimulada, a marca da visão etnocêntrica” (Op. cit.31-32).

Entendo que a disciplina histórica vista através de uma ótica plural pode ampliar as discussões teórico-metodológicas sobre grupos que usam plantas de poder. Este trabalho deve ser encarado de forma interdisciplinar permitindo a aproximação com outras áreas de conhecimento, dentre elas, a antropologia. Penso que a importância do estudo está voltada para as formas através das quais determinadas culturas fazem uso das substâncias psicoativas de forma sacralizada, isto é, como determinam o seu mundo, como o constroem simbolicamente e como resignificam constantemente esse universo.

Estudar plantas de poder dentro do campo da história constitui uma proposta nova de perceber que é possível uma História Cultural de Plantas de Poder. Uma pesquisa como esta demonstra a importância metodológica que a antropologia nos dá sobre temas não trabalhados no cotidiano da disciplina histórica. Estes novos objetos pensados sob a ótica da História Cultural tem como conceito fundamental a representação (Hunt, 1992:16-18).

Para trabalhar com as representações do mundo social é preciso demonstrar de que forma estas foram construídas pelo grupo estudado (Chartier, 1990:17), o que significa analisar a construção da Barquinha através de seu espaço. Portanto, as representações devem ser encaradas como construções culturais que estão sujeitas a modificações  no tempo e no espaço, o que nos remete as metáforas de “Cosmologia em Construção e Eco Simbólico”.

PRIMEIROS MOMENTOS DA CONSTRUÇÃO

O Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz foi criado na década  de 40 por Daniel Pereira de Mattos na zona rural de Rio Branco e hoje situa-se no bairro de Vila Ivonete na capital do estado do Acre.

Ainda são bastante obscuros os dados acerca da vida de Mestre Daniel. Sabe-se oficialmente que ele nasceu no dia 13 de julho de 1888 na cidade de São Luís - MA.

Ainda criança foi ligado a Marinha e foi, possivelmente, “laçado”, isto é, pego na rua e levado para uma escola de aprendizes da Marinha. A partir disto, as entrevistas sugerem uma série de hipóteses acerca da vida deste homem. Alguns alegam que Daniel pertenceu à Marinha de Guerra, entretanto, outros informantes comentaram o fato dele ter pertencido à Marinha Mercante.

Homem habilidoso, foi bastante citado em entrevistas como um indivíduo que sabia desempenhar doze tarefas: construtor naval, cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro, sapateiro e padeiro.

Ao chegar em Rio Branco, trabalhou como barbeiro no bairro 6 de Agosto, onde também residiu. Logo após, passou a morar em um bairro próximo ao centro da cidade, conhecido até os dias atuais como bairro do Papôco. Este espaço situa-se às margens do rio Acre e era bastante frequentado por navegantes que por ali passavam, sendo também famoso por ser uma zona de prostituição (Araújo Neto, 1995:17-18).

Daniel foi descrito como um grande boêmio da cidade de Rio Branco. Bebia, fumava, fazia composições musicais que falavam de paixão, de amor e busca pela mulher desejada. Muitas vezes, em virtude do estado de embriaguês, dormia ao relento. Em suas saídas deslizava canções em seu violão. Músicas que fluíam pelos dedos e boca a paixão pela noite, pelas serenatas que embriagavam os homens de canções e cachaça.

Ao retornar de uma festa resolveu descansar em um lugar conhecido por poço das cobras. Bêbado, chegou a receber uma revelação na qual dois anjos desciam do céu e lhe entregavam um livro de cor azul. Esta visão foi desconsiderada a princípio.

Este fato marca a iniciação de Daniel para líder espiritual e foi concretizado a partir do momento em que se encontrou enfermo, com problemas de fígado, ocasionados pelo abuso do álcool. Sabendo da gravidade da doença de seu conterrâneo, Raimundo Irineu Serra, líder religioso do CICLU (Centro de Iluminação Cristã Luz Universal) e o sistematizador da doutrina daimista, convidou-o a fazer um tratamento espiritual através da do “daime”. O tratamento teve início em 1936, sendo interrompido por Daniel quando se encontrou melhor de saúde. Voltou a beber novamente e novamente doente, foi chamado por Irineu para fazer um novo tratamento no CICLU, onde teve a revelação da missão religiosa que por ele deveria ser efetuada.

Esta revelação já havia aparecido em duas outras oportunidades, uma delas retrata um episódio entre a colônia Custódio Freire, local de tratamento do enfermo e a zona urbana de Rio Branco, pois cansado, adormeceu a margem de um igarapé onde teve um sonho, idêntico ao primeiro episódio onde este estava sob o domínio do álcool, ou seja, a descida do céu de dois anjos que lhe entregaram um livro de cor azul e falavam no cumprimento de uma missão.

A visão do livro azul por Daniel pode ser encarada como o primeiro ensinamento da doutrina desta religião. Cada página deste livro foi e continua sendo instruções recebidas e essas mensagens ligam-se à cor do livro, o azul, representando o céu, de onde provém revelações de entidades santificadas.

A CAPELINHA DE SÃO FRANCISCO

Daniel começou os trabalhos espirituais com o uso do Daime em um seringal por nome de Santa Cecília, que pertencia ao amigo Manoel Julião de Souza.

Nestas terras Daniel construiu uma casinha rústica de taipa e paus roliços, semelhante a uma pequena casa de seringal. Lá ele recebia salmos que eram considerados instruções provenientes de outros planos sagrados.[2] Neste espaço começou o seu trabalho de atendimentos por ele designados de “Obras de Caridade”. No início estes atendimentos eram realizados em crianças e adultos, especificamente os caçadores da região com os membros de suas famílias. Pouco tempo depois, moradores da zona urbana de Rio Branco passaram a procurá-lo.

A morte simbólica de Daniel não serviu unicamente para estabelecer a sua própria perfeição espiritual, mas serviu e continua servindo para a salvação das demais pessoas que porventura procurem os trabalhos daquela casa.

O local de fundação da Barquinha nos seus primórdios era designado de capelinha[3] por Mestre Daniel e conhecido por Capelinha de São Francisco pelos habitantes da cidade de Rio Branco, pelo fato de São Francisco ser um dos principais mentores da casa.

O número de frequentadores dos trabalhos espirituais do centro no início era bastante reduzido. Pessoas humildes que por problemas de saúde, alcoolismo e/ ou familiares recorriam a Mestre Daniel com o intuito de resolvê-los.

A “MORTE” E OUTROS CAMINHOS PARA A VIDA

Foi em 1957 que Mestre Daniel começou a preparar a irmandade do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz para uma viagem que deveria fazer brevemente. Era um tipo de viagem ambígua, considerado por alguns um retorno para a sua terra natal, São Luís do Maranhão. Mas foi pensado por outros como a sua possível desencarnação, já que o mesmo se encontrava há algum tempo enfermo com um problema iniciado em sua garganta, que  se agravou em 1958.

Os seus trabalhos tiveram duração de doze anos e a sua trajetória na missão foi marcada no início e no final pela doença. Com a sua primeira “morte” é criado o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, enquanto local de preparação das pessoas para a desencarnação deste plano; a segunda “morte”  foi o seu encontro com a eternidade e a continuidade da vida para os seus seguidores.

Daniel desencarnou (“morreu”) no interior da casinha de feitio do daime no dia 08 de setembro de 1958, às 18:30h, no início da romaria de São Francisco das Chagas. Seu corpo foi colocado no interior da igreja, sobre a mesa de concreto que ainda estava em fase de construção.

TRÊS SÍMBOLOS FUNDANTES / TRÊS MISTÉRIOS

Mestre Daniel tinha, segundo depoimentos, uma relação muito próxima com o mar. Grande parte dos salmos do hinário da casa referem-se ao mar, a viagens através de uma nau e a seres aquáticos. Sua história de vida reforçou a proximidade do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz com a Marinha, sendo um dos principais elementos sagrados a Barquinha.

A barca para os seus integrantes tem dois significados: o primeiro é o de que a mesma representa a própria missão deixada por Daniel e a segunda expressa a viagem de cada um. Esta barca é a viagem de suas vidas, em resumo, uma viagem dentro da grande viagem. Ela tem como característica principal realizar uma grande travessia. A barca tenta sobretudo atravessar uma grande tempestade. Os homens que nela viajam estão na barca de Deus. Ele é portanto o seu proprietário de direito. Para que a barca não afunde é necessário “trabalhar”, procurando evitar que a Barquinha desapareça mar a dentro. Esses trabalhadores vivem em função de seu proprietário e o trabalho é uma dívida que os praticantes tem com ele.

Os adeptos da Barquinha também acreditam que a nau é a própria igreja, local de reuniões periódicas dos fiéis. A embarcação relaciona-se sobretudo a barcaças típicas da amazônia que constantemente cortam os rios daquela região.Para eles, o proprietário da barca é Deus e esta é pilotada por São Francisco das Chagas, Mártir São Sebastião, São José e Daniel Pereira de Mattos, o fundador da casa, que tem como missão conduzir a nau ao encontro de Jesus e, juntamente com os adeptos, procuram evitar grandes tormentas em sua travessia.

A Barca Santa Cruz, designação apresentada por eles para a embarcação, está marcado por instruções provenientes do invisível e apresenta na sua trajetória características escatológicas.

“A viagem nada mais é do que uma provação, onde a água agitada reflete as tentações do mundo de ordem mundana. A água se agita porque a sociedade humana quebrou determinadas regras divinas. As águas marítimas exprimem o sentimento descontrolado aos seres humanos e o desgosto do criador”. (Araújo Neto, 1995:13).

A Barquinha, em sua forma mais ampla, continua sendo a missão criada por Daniel Pereira de Mattos, com a finalidade de viajar dentro de três mistérios. Pode ser ainda designada de vida, na sua mais completa plenitude. Por último ela representa uma longa viagem, feita pelos fiéis. São os atos destes que irá determinar o rumo  que a Barquinha irá tomar.

Esta barca viaja em três mistérios, ou três planos cosmológicos - o céu, a terra e o mar - e seus componentes são chamados de marinheiros do mar sagrado, ou soldados dos exércitos de Jesus. São enquadrados enquanto marinheiros a partir do momento que recebem o fardamento.

Quando assumem os trabalhos espirituais da Barquinha, os marinheiros desempenham tarefas básicas para alcançar um maior grau de luz quando desencarnarem. Se houver uma preparação aguçada por parte dos fiéis, dizem-lhes que estão promovidos a oficiais e não mais a marinheiros, uma vez que ocupam dentro da sua hierarquia religiosa, uma posição mais elevada. A Barquinha acaba sendo uma escola de preparação de oficiais. Determinadas entidades, por eles designadas como entidades de luz são chamadas também de oficiais e são consideradas chefes de pelotão. Por exemplo, a entidade por nome de Dom Semião, que chefia parte dos trabalhos das Obras de Caridade.

Estes oficiais, quando chegam para trabalhar usam determinados instrumentos referentes à “forças armadas” tais como lanças, espadas, algemas, cachorros, etc. Os registros desses instrumentos são revelados nos salmos entoados pelos presentes. Essas “forças armadas”, compostas de entidades de luz são provenientes dos mistérios do céu, terra e mar e visam combater entidades do mal. Há portanto, um duelo entre entidades de luz e entidades das trevas. Logo, a barca, juntamente com marinheiros e oficiais vem a ser um receptáculo de conversão de entidades maléficas em entidades benéficas, através de um processo desencadeado mar a dentro.

O mar, no qual navegam esses marinheiros, são as águas sagradas, ou melhor dizendo, o Daime, daí a denominação mar sagrado. Estas personagens navegam, portanto, sobre as ondas do daime, no balanço da Barca Santa Cruz.

O Daime é considerado uma luz. A luz associa-se a revelação, a uma ampliação de conhecimentos, e aqueles que navegam sobre as ondas do mar sagrado gradativamente vão adquirindo conhecimentos para si e uma sensibilidade maior de enxergar o outro. É quando se percebe a vida nos olhos, o olhar de si no outro e do outro em si. A revelação é considerada como um processo simbólico de aprendizagem significativo.

Este ponto de associação do Daime à luz retoma outra discussão, como bem lembrou o antropólogo Alberto Groisman (1993), acerca do mundo da ilusão X mundo de luz. Assim como os daimistas, os componentes da Barquinha vêem no daime uma forma de entrar em contato com o mundo espiritual, onde habitam espíritos de luz que assessoram as pessoas que, através do daime, estão fazendo um preparo espiritual. Mas é somente através de determinadas provações que o ser humano poderá afirmar se está ou não preparado para alcançar este mundo espiritual, irradiador da luz divina.

O Daime, enquanto mar sagrado, torna-se uma substância de poder, um elo de ligação com o sagrado e um locus de cura. Evidentemente esta “água” não é acessível a qualquer um, a qualquer hora e de qualquer maneira. Por ser sagrada, esta tem que ser usada em um tempo e espaço sacros. Para ter direito ao uso, o homem tem  que passar por uma série de provas.

Podemos dizer que a água é luz, vida e fonte de rica energia positiva do divino. O daime é um dos meios de conexão com o sagrado, um dos elementos condutores da troca vertical entre os homens e os seres divinos. Portanto ele é mar, ao mesmo tempo que é luz, algo que afasta as trevas e ilumina o espírito. É a água/luz sagrada que conduz o sujeito a uma viagem para a vida eterna.

O daime é considerado um instrutor, um professor, que sempre está ensinando os participantes das performances rituais que fazem o seu uso. Ele se torna um veículo de comunicação entre a vida material e a vida espiritual. Neste sentido, ele contribui para que o participante do ritual tenha contato com seres divinos de realidades sagradas. Ele traz revelações de entidades de luz, entidades santificadas. Logo, a escola de Daniel acaba se tornando uma escola que está sempre ensinando “mistérios” aos que dela participam.

Esta substância produz “sonhos”, é uma planta que faz “sonhar” (Costa, 1956). Ela dá aos integrantes das performances rituais características proféticas, porque às vezes, anuncia um determinado fato que poderá ocorrer. Quando tal fato é concretizado, ele é então “testificado”, tirado a limpo, vindo a ser duplamente verdadeiro.

A ayahuasca é ainda chamada de voz divina. O ponto de ligação com o ser supremo, um dos meios de conversar com o sagrado representado no topo da pirâmide por Deus.

É do céu que emergem ordens divinas. Estas ordens são chamadas de instruções e são estas instruções que manobram o barquinho Santa Cruz; na terra podem ser encontrados seres como caboclos e pretos velhos, indígenas e exus; já no mar circulam entidades que participam dos trabalhos da casa. São encantados que se manifestam aos presentes mostrando os mistérios ou encantos; muito próximo ao plano celestial encontra-se o Astral, também com seres iluminados, mas que ainda se encontram em fase de preparação. Alguns destes seres do Astral têm a permissão para entrar em contato direto com os seres humanos, mas muitos não tem esta permissão, como é o caso da maioria dos bispos do local.

O Astral rege dois planos que ficam mais abaixo: a terra e o mar. Nestes dois planos, é possível encontrar entidades boas, boas e más ao mesmo tempo e más. São entidades dos encantos das florestas como caboclos, pretos velhos, indígenas e exus, e os encantados do mar tais como botos, sereias, cobras d’água. As entidades do Astral são aquelas que são responsáveis para dar assistência às entidades da terra e do mar.

Quando os componentes da Barquinha falam de Astral, referem-se a Astral superior, que foi designado de várias formas: planos do alto, planos de luz, planos de preparação, planos superiores, planos iluminados.

Através de viagens, os tripulantes da Barquinha conhecem lugares diversos, produzindo o que nós podemos denominar de sagrado compartimentado, tendo em vista que os planos que regem esta casa passam de espaços míticos à lugares míticos, uma forma de demonstrar que nesses planos ou mistérios, nota-se uma geografia mítica que é ricamente construída a partir das visões dos integrantes da Barquinha que narraram experiências diversas em alguns lugares dos espaços míticos que compõem o quadro cosmológico.

COSMOLOGIA AMAZÔNICA EM CONSTRUÇÃO

Durante o campo, o objetivo central da pesquisa foi voltado para uma etnografia do Centro Espírita e culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz retratando a História, a Cosmologia e o Ritual. Durante o estudo nos deparamos com uma velha discussão teórica: a noção de sincretismo.

A Barquinha insere-se no chamado ecletismo religioso, segundo a literatura antropológica, que propicia ao indivíduo uma experiência que se dá:

“Por uma operação (...) através da qual são ecleticamente reaproximados, sobrepostos e/ou refundidos elementos oriundos das várias tradições, nativas e importadas, que a mobilidade geográfica das pessoas e dos produtos culturais põe hoje a sua disposição. Novas entidades coletivas apontam no horizonte dessas operações, mas elas tendem a ser transconfessionais, ameaçando desde já, nesse sentido, redesenhar nessas sociedades centrais o mapa do campo religioso contemporâneo. Parece possível esperar das consequências desse fenômeno uns efeitos de transformações mais radicais que as do tradicional ‘sincretismo brasileiro’ (Sanchis 1995).

 

A idéia de ecletismo religioso se encaixa muito bem para a formação de um pensamento religioso para as religiões não-indígenas que fazem o uso da ayahuasca. Mas acreditamos que ao invés desta circulação do indivíduo, mais fluída por vários grupos religiosos, sem ter a preocupação de se sedimentar em uma, respeitando desta maneira a diferença das religiões, os adeptos da Barquinha mantém com esta uma relação mais regular. São as práticas religiosas que circulam neste tipo de religião amazônica  que são mais fluídas.

Pensamos que se trata de uma cosmologia em construção. Por cosmologia em construção denomino um conjunto de práticas religiosas que tendem a formar uma doutrina específica onde existe uma grande velocidade na reelaboração simbólica de práticas religiosas que recombinadas produzem algo novo. Diante desta afirmativa:

a) Julgamos necessário repensar o sincretismo através de uma visão mais fluída por isso, apresentamos o termo cosmologia em construção (embora sabendo que todas estão em construção) como uma metáfora para flexibilizar noções teóricas sugeridas por outros autores. O ponto de partida para o conceito se deu através da coleta de dados empíricos. b) As características centrais para pensar a Barquinha estão em práticas religiosas que dão aos adeptos um norte, uma visão de mundo onde novos elementos  simbólicos foram incorporados durante a trajetória histórica dos espaço. c) Para entender o que estamos mencionando é preciso observar o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz como uma colcha de retalhos onde cada um desses retalhos constitui um lugar bordado de símbolos. Lugares esses costurados com dupla linha da razão e da sensibilidade. d) A Cosmologia em Construção compreende um conjunto de práticas religiosas que tendem a formar uma religião específica onde existe uma grande velocidade na incorporação e retirada de elementos simbólicos das práticas religiosas ou filosóficas que combinadas compõem a sua cosmologia. e) Nesta cosmologia em construção  um símbolo abre possibilidade para a remissão de um outro símbolo. Isto consiste naquilo que denominamos de eco simbólico. f) O ato, a ação dramática pode revelar espíritos ou entidades. A aparência destes está manifestada no gestual, caracterizando atitudes e comportamentos. Tais gestos enquadram-se no esquema cultural do grupo e muitas vezes os códigos variam de lugar para lugar. g) Em resumo, o eco simbólico reflete uma idéia e esta idéia abre possibilidade para a simbolização de outra, ressoando, reproduzindo-se ou repercutindo ao longe, no espaço e no tempo.

Além disso, o hinário é um outro reforço para tal concepção, isto porque os integrantes da Barquinha não falam do hinário (o livro azul) como algo que está completo. Suas letras são repassadas para eles como instruções e quando novos salmos são recebidos é sinal que novas instruções acabaram de chegar.

A composição simbólica desta linha doutrinária está elaborada, em parte, pela proposta de Mestre Daniel, bem como pela visão de mundo desses líderes religiosos que são provenientes de lugares distintos e de culturas diversas. Portanto, o Centro torna-se um aglutinador de culturas. Mas o termo aglutinador por si só não basta, isto porque ele torna-se um ordenador de elementos culturais, constituindo algo autêntico, novo e dinâmico. E neste caso, a Barquinha é uma nau de re-significação pela incrível flexibilidade do espaço - daí a metáfora cosmologia em construção.

Para melhor exemplificar o que queremos dizer por cosmologia em construção, vamos usar como metáfora a construção de uma grande barca. A barca para ser construída terá vários tipos de madeira em vários locais. Desta forma, vamos encontrar as vigas, tábuas, mastro, leme etc, todos com madeira compatível com a barca. Da mesma forma, encontramos o suporte de encaixe para a sua construção: os parafusos, os pregos e outros. Após a construção da barca, da grande barca, pode-se afirmar que a mesma está “estruturada”.

Mas a finalidade da barca é navegar, viajar mar a dentro, dias e noites, no calor ou no frio. Seu proprietário resolve deixá-la diferente e começa a colorir e a desenhar formas geométricas na cabine onde pilota a nau. São pequenas alterações de grande significado que aos poucos vão sendo comungados pelos tripulantes da embarcação.

Este barco viaja a lugares diferentes e enfrenta grandes tempestades. Logo, a embarcação precisa de reparos urgentes para continuar viajando. As viagens continuam e os tripulantes, em especial o proprietário da barca, conhecem lugares diferentes e, consequentemente, pessoas distintas. Passam a dialogar, estabelecem a troca, dão e recebem, experienciam, aprendem, voltam mudados. Resolvem lembrar, dinamizar a memória, buscar os fios de significados e com  isso traçam novos desenhos, motivos através dos quais fazem lembrar o outro.

Mas a barca muda ao longo do tempo. Apesar da estrutura interna de suporte da nau, os tripulantes procuram a cada dia que passa dar uma nova roupagem a ela. E assim continuam além da linha do horizonte a navegar com as lembranças presentes.

Esta resignificação parte do pressuposto das viagens por parte dos dirigentes a outros planos e, com isso, as visões desses lugares míticos são manifestadas na arquitetura. As viagens são as mirações que eles tiveram  para a construção simbólica do local, porque foram nestas mirações que estes líderes tiveram imagens sagradas e essas revelações justificam um agregado de símbolos que foram incorporados no decorrer de décadas.

O homem religioso da Barquinha está imerso em símbolos e está marcado consciente ou inconscientemente por eles. Esses lugares são vividos, experienciados individual ou coletivamente durante um longo período de atividades. Resta lembrar que a Barquinha é a linha ayahuasqueira que realiza o maior número de performances rituais apresentadas na região acreana e adjacênscias.

Os trabalhos constituem a ação do sujeito dentro dos lugares do espaço. A ação do sujeito enquadra-se naquilo que podemos denominar de espaço performático e, juntamente com este espaço performático, a ampliação espacial, na qual os lugares são fundidos no decorrer dos rituais.

Os rituais da Barquinha marcam profundamente o reencontro de tradições européia, indígena e africana. O ritual funciona como manifestação dessas culturas que estão presentes através da prece, miração e incorporação.

Na primeira, a prece representa um elemento da prática católica oriunda da Europa e remodelada no nordeste brasileiro. A miração relaciona-se ao xamanismo indígena e a incorporação aos cultos africanos. Para exemplificar melhor o que queremos dizer, podemos mencionar a doutrinação de almas onde os três aspectos relacionam-se ao espaço performático. Enfim, o reencontro dessas tradições culturais marca a permanente construção da sua cosmologia.

É preciso observar que durante os rituais os homens da Barquinha dinamizam o processo de re-elaboração simbólica. É quando algo novo pode ser visto durante os trabalhos da missão de Daniel. A mobilidade da barca provocada pelos sujeitos que a compõe produz esta dinâmica, pois voltam mudados, transformados. Esse é o sentido da construção, não só de produzir efeito sobre a arquitetura do local, mas tocar os sujeitos envolvidos, os marinheiros do mar sagrado.

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO NETO, Francisco Hipólito de (1995). Com Quantos Paus se faz uma Nau. Rio Branco: UFAC.

CHARTIER, Roger (1987). A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1987.

COSTA, Oswaldo de A. (1956). A Planta que faz Sonhar - Yagé. Rio de Janeiro: Revista de Flora Medicinal.

GROISMAN, Alberto (1993). Santo Daime. Notas Sobre a “Luz Xamânica” da Rainha da Floresta. In Novas Perspectivas Sobre Xamanismo no Brasil. Florianópolis: UFSC.

NUNES PEREIRA (1979). A Casa das Minas. Petrópolis: Vozes.

SANCHIS, Pierre (1995). As Tramas Sincréticas da História. In Revista Brasileira de Ciências Sociais. Ano 10, número 28.

SENA ARAÚJO, Wladimyr (1997). Navegando nas Águas do Mar Sagrado: História, Cosmologia e Ritual no Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz. Campinas: Unicamp (dissertação de Mestrado em Antropologia Social).



[1] Mestre em Antropologia Social - Unicamp; doutorando em História Social - Unicamp.

[2] Por eles denominados de invisível.

[3] Nunes Pereira na sua obra “A Casa das Minas” dedica um ítem a este centro, atestando que a capela foi construída em uma pequena “fazenda”  que segundo ele pertencia ao senhor Manuel Antão da Silva - sendo que nas narrativas orais todos foram unânimes em afirmar que as terras pertenciam ao senador Manoel Julião de Souza. Segundo ele, o braço direito para a construção da capela foi Elias Kemer, pessoa bastante citada nas entrevistas e um dos primeiros membros do lugar. Além disso reconhece Daniel como fundador da Barquinha, afirmando que ele foi ligado a mãe-de-santo conhecida por Joana. Este último dado é bastante curioso, tendo em vista que nenhum dos meus informantes mencionou este fato. Entretanto, não tenho material suficiente para comprovar este argumento de Nunes Pereira (Nunes Pereira, 1979:39).