José
Gabriel da Costa:
Trajetória de
um brasileiro, Mestre e Autor da União do Vegetal
Sérgio
Brissac
1. Introdução
Este texto visa traçar a trajetória de José Gabriel da
Costa, fundador da União do Vegetal, e relacioná-la com aspectos da
especificidade cultural brasileira. Acompanhando o percurso de sua vida, é
possível tecer uma ampla rede de relações com diversas configurações culturais
presentes na sociedade brasileira. Este texto restringir-se-á a uma breve
exposição dessa trajetória, através do recurso às poucas fontes de informação
disponíveis, limitando-se a apontar somente algumas possíveis linhas de
investigação, a serem desenvolvidas oportunamente[1].
Em 22 de julho de 1961, José Gabriel da Costa, chamado por
seus discípulos de Mestre Gabriel, fundou a União do Vegetal, a UDV, na
Amazônia, em região próxima à fronteira entre o Brasil e a Bolívia. . Como
centro da atividade religiosa do grupo está a ingestão da Hoasca ou Vegetal,
chá obtido a partir de duas plantas, um cipó denominado mariri, Banisteriopsis caapi, e um arbusto
chamado chacrona, Psychotria viridis.
No ano de 1965, José Gabriel da Costa mudou-se para Porto Velho, onde
consolidou a União recém-fundada. Em 1967, após incidentes de perseguição
policial ao grupo em Porto Velho, é encaminhada a constituição de uma entidade
civil, primeiramente denominada Sociedade Beneficente União do Vegetal,
adotando depois o nome definitivo de Centro Espírita Beneficente União do
Vegetal. Ainda em vida de Mestre Gabriel, foi fundado o núcleo de Manaus e em 1972,
um ano após seu falecimento, já se inaugurou o núcleo de São Paulo. Em 1998,
havia em torno de 70 núcleos espalhados por todo o Brasil, totalizando
aproximadamente 7 mil sócios.
2. José, o menino de Coração
de Maria
No dia 10 de fevereiro de 1922, na localidade de Coração de
Maria, próxima a Feira de Santana, Bahia, nasce José Gabriel da Costa. Filho de
Manuel Gabriel da Costa e Prima Feliciana da Costa, José nasce em uma numerosa
família de treze irmãos: João, Dionísio, Otacílio, Pedro, Romão, Maria,
“Miúda”, José Gabriel, “Sinhá”, Alfredo, Antônio, Maximiano, Hipólito[2].
No livro União do Vegetal: Hoasca;
Fundamentos e Objetivos, o único texto editado para o grande público até o
momento pela instituição, apenas três páginas tratam da vida do fundador da
UDV. Assim, tivemos de buscar informações junto a parentes e outras pessoas que
com ele conviveram, além de pesquisar no jornal Alto Falante, do Departamento
de Memória e Documentação da UDV.
Segundo seus parentes, desde pequeno, José já se destacava como alguém especial. Contam que ainda criança, ele auxiliou uma mulher com dificuldades de parto. O bebê se encontrava mal posicionado e a parteira temia que morressem mãe e filho. José entra no quarto, manda todos saírem, tranca a porta e logo em seguida a destranca. Quando o menino abre a porta, simultaneamente nasce a criança.
Na década de 20, o menino José cresce em um meio rural
fortemente marcado pelo catolicismo popular. Uma recordação que narram de sua
infância é que o “garoto ia aos domingos à igreja de sua cidade e levava com
ele um barbante. Durante a missa, amarrava as pessoas umas às outras, pelos
passantes das roupas, sem que elas percebessem”[3].
Nas chamadas, hinos entoados durante o ritual da UDV, há referências constantes
a Jesus e a vários santos católicos: a Virgem da Conceição, São João Batista, a
Senhora Santana, São Cosmo e São Damião.
Aos 13 anos de idade, em 1935, José vai trabalhar em
Salvador. Emprega-se em diversos estabelecimentos comerciais. Aos 18 anos,
presta serviço militar voluntariamente na Polícia Militar da Bahia, chegando em
poucos meses à patente de cabo de esquadra.
Segundo seu irmão Antônio, atualmente também mestre na UDV, José Gabriel
“conheceu todas as religiões, conheceu os terreiros de Salvador, andou por
todas as religiões procurando a realidade”[4]. Segundo outro mestre, José iniciou na
“ciência espírita” com apenas 14 anos. Provavelmente, esta informação refere-se
à participação de José em terreiros de candomblé, e não em centros kardecistas,
com os quais entretanto ele também entrou em contato, só que posteriormente,
ainda quando morava em Salvador.
Segundo o pesquisador Afrânio Patrocínio de Andrade, José
Gabriel freqüentou sessões espíritas kardecistas na Bahia[5]
. Foi, aliás, em Salvador que teve início o espiritismo kardecista no Brasil,
no ano de 1865. Luís Olímpio Teles de Menezes fundou nesse ano o centro
espírita Grupo Familiar do Espiritismo[6].
De acordo com Patrocínio de Andrade, certos temas recorrentes na União do
Vegetal poderiam ter sido colhidos do espiritismo kardecista. Antes de mais
nada, a visão reencarnacionista, um dos eixos fundamentais da visão de mundo da
UDV. Assim como o lema “Luz, Paz e Amor”, denominado o “símbolo da União”,
poderia provir dos temas espíritas da “luz interior”, da “paz de espírito” e do
“amor ao próximo” (ou caridade). A própria ênfase na “União” é freqüente entre
os espíritas no Brasil.[7]
3. O capoeirista
Segundo declarações de familiares, o jovem José foi
considerado pelos prosadores populares um dos melhores da região. Como cantador
repentista teve sucesso inclusive em Alagoas e Sergipe. Também se destacou na
capoeira, chegando a ser considerado um dos melhores do Nordeste. O livro de
Ruth Landes, A cidade das mulheres,
nos auxilia a traçar um panorama dos ares soteropolitanos da década de 30, que
José tantas vezes respirou. A autora é levada por Edison Carneiro para assistir
uma capoeira. Ela descreve detalhadamente a seqüência do jogo, e em certo
momento, observa: “silenciados os ecos do desafio, terminada a rodada, os dois
homens andavam e corriam sem descanso em
sentido contrário aos ponteiros do relógio, um atrás do outro, o campeão à
frente com os braços levantados”[8].
É interessante notar que no ritual da UDV a circulação das pessoas no salão se
faz também no sentido anti-horário, pois “este é o sentido da força”. Na
capoeira, José cultiva uma série de habilidades postas em prática
posteriormente, em suas experiências de incorporação nos toques de caboclo como
Sultão das Matas. Do mesmo modo, tais habilidades também foram exercitadas como
Mestre da UDV.
Evocadora desse ambiente capoeirista é a cantiga de domínio
público gravada por Nara Leão, às vezes tocada em sessões da UDV:
“Minino, quem foi teu mestre?
Meu mestre foi Salomão.
A ele devo dinheiro,
saber e obrigação.
O segredo de São Cosme
quem sabe é São Damião, olê
Água de beber, camarada
água de beber, olê
Água de beber, camarada
faca de cortar, olê
Faca de cortar, camarada,
Ferro de engomar, olê
Ferro de engomar, camarada
Perna de brigar, olê
Perna de brigar, camarada.
Minino, quem foi teu mestre?”[9]
Parece estar relacionada à capoeiragem a decisão do jovem
José de viajar da Bahia para o Norte. De acordo com relato de seu filho Carmiro
da Costa, em 1943 José envolve-se num conflito. Um amigo seu, de nome Mário,
tem o pé pisado por um policial. José Gabriel “compra a briga do Mário”. Este
foge e os policiais seguram José. Num golpe de destreza, ele consegue se
desvencilhar dos policiais. Segue para um navio, para onde tinha ido se
refugiar o amigo Mário. Os dois se alistam no “Exército da Borracha” e rumam
para o Norte no navio Pará, da frota do Lloyd Brasileiro. Chegando a Manaus,
embarcam no navio Rio Mar, com destino a Porto Velho, onde chegam no dia 13 de
setembro de 1943. Os dois vão juntos para o trabalho na seringa e fazem um
“pacto de amigo”, de só se separarem pela morte. No seringal, José Gabriel
cumpre até o fim esse pacto, cuidando de Mário, que adoece com leishmaniose.
Chega a carregar Mário nas costas por vários quilômetros. Quando o doente
morre, seu amigo sozinho o enterra na floresta.[10] Tudo indica que Mário era companheiro de
capoeira de José Gabriel. No mundo da
capoeiragem na época, a ética dos grupos sublinhava a importância da
solidariedade e fidelidade entre os camaradas. E eram freqüentes os conflitos
entre os grupos, com a polícia ou com indivíduos de outros segmentos da
sociedade. Em dissertação acerca da capoeira no Rio de Janeiro de 1890 a 1937,
Antonio Pires afirma que “as relações de conflito e solidariedade na
capoeiragem estiveram permanentemente relacionadas com os conflitos mais gerais
da sociedade”[11]. Parece que
já se esboça nesse tempo a preocupação de José Gabriel com a “justiça”. Sua
participação na capoeiragem em Salvador não conflita com seu engajamento
profissional, primeiramente como comerciário e depois como enfermeiro. Como
observa Antonio Pires quanto à capoeira no Rio, “a maioria dos capoeiras
comprovaram manter vínculos com o ‘mundo do trabalho’, descaracterizando o
estereótipo de vadios construído em relação a eles.”[12]
4. O seringueiro
do Exército da Borracha
Chegando no Território de Guaporé, atual Estado de
Rondônia, José Gabriel se insere num ambiente com uma configuração ecológica e
sócio-cultural bem distinta da Cidade de Salvador. O extrativismo da borracha,
depois de seu período de boom, entre
1890 e 1912, havia em seguida atravessado uma fase de declínio, devido à
concorrência no mercado internacional da borracha extraída na Ásia. Com a
Segunda Guerra Mundial, apresentou-se a necessidade de borracha para os
exércitos Aliados. Com a assinatura de acordos com os Estados Unidos, o Governo
Vargas iniciou uma ampla campanha de recrutamento de trabalhadores,
principalmente nordestinos, para a extração gomífera no Norte. Foi criado o
SEMTA, Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, que,
somente no ano de 1943, encaminhou 13 mil pessoas, segundo dados oficiais[13].
No mesmo ano de 1943, José Gabriel integra essa massa de
trabalhadores nordestinos que se lançam como “brabos” nos seringais amazônicos.
“Brabo é gente que nunca cortou seringa, nunca andou na floresta. Sofremos
muito, como brabo” - declara Pequenina, esposa de José Gabriel[14].
O sofrimento daqueles homens, submetidos a condições de vida e trabalho
extremamente penosas, em um ambiente desconhecido, sem o auxílio governamental
prometido pela propaganda oficial, ficou bem marcado na memória dos
sobreviventes da “batalha da borracha”. A antropóloga Lúcia Arrais, que está
elaborando sua tese de doutorado a respeito dos soldados da borracha, recolheu
o seguinte depoimento, de um Sr. Chico, ex-soldado da borracha, que bem se
assemelha ao da esposa de José Gabriel: “.... a casa dele era bem pequenininha
num tinha onde a gente dormir. Dormimo no teto mermo. Carapanã! Carapanã,
Lúcia! e agora, a comida? Tudo brabo, tudo... a gente já tinha deixado a
Companhia [SEMTA] já... Aí fiquemo aí sofrendo.. fiquemo jogado que nem
cachorro na beira do rio... [Qual?] era o Solimões acima de Tefé. Aí eu disse:
‘ombora pessoal! vamo meu povo!, bora cuidar!, bora se virar’.”[15]
Arrais observa que aqueles que conseguiram sobreviver a condições tão adversas
foram homens de significativa inteligência e iniciativa, que conseguiram
adaptar seus esquemas de percepção e recursos cognitivos à nova realidade em
que se encontravam: “Numa atitude de quem vive em estado de autodefesa
permanente, o Sr. Chico diz: ‘ombora pessoal! bora se virar!’. E então escolhem
uma linha de ação onde predomina a iniciativa e a coragem. Onde prevalece a
concentração dos recursos da percepção, da memória e da atenção para dirigir
esforços na descoberta de meios capazes
de resolver a questão.”[16]
José Gabriel foi um desses homens de aguda inteligência e destreza, que não
somente conseguiu sobreviver como chegou a ser considerado pelos seus
companheiros como o “Tuxáua”, o seringueiro que coletava maior quantidade de
seringa na região. Tais êxitos eram acompanhados de dureza e sofrimento, como
quando José Gabriel pisou em uma
arraia, e teve de passar “um ano e dez meses sem poder andar, de muleta”.[17]
5. O ogã do terreiro
de Chica Macaxeira
Depois de
trabalhar um tempo no seringal, José Gabriel muda-se para Porto Velho, onde
fica trabalhando como servidor público, enfermeiro no Hospital São José.
Conhece, em 1946, Raimunda Ferreira, chamada Pequenina, com quem se casa no ano
seguinte. Em Porto Velho, “Seu” Gabriel
atendia pessoas em sua casa, pois jogava búzios. Mais tarde, se torna Ogã e Pai
do Terreiro de São Benedito, de Mãe Chica Macaxeira[18].
Esse terreiro foi citado por Nunes Pereira[19],
que o visitou, possivelmente em meados da década de 60 ou no início dos anos
70. O pesquisador maranhense reconhece o terreiro de Porto Velho como sendo da
tradição mina-jeje, oriundo da Casa das Minas. “Os toques, inegavelmente,
tinham a rítmica que me era familiar não só da Casa das Minas, de São Luís do
Maranhão, como do Bogum de Mãe Valentina, em Salvador, Estado da Bahia.”[20]
É surpreendente
descobrir que Nunes Pereira encontrou no Terreiro de Chica Macaxeira uma
“inovação no ritual mina-jeje, o uso da ayahuasca. E isso, sem dúvida, para
estimular , paralelamente, com os cânticos rituais e com a voz sagrada dos
tambores, ogãs e gôs, o estado de transe, a possessão que ligam os Voduns do
panteão daomeano ou do ioruba às gonjais e noviches que o cultuam”[21].
Ora, no tempo em que José Gabriel lá trabalhava como Ogã, não havia utilização
da ayahuasca no culto, tanto que ele somente viria a conhecer a bebida anos
depois, no seringal. Assim, é legítimo deduzir que a Mãe-de-Terreiro Chica
Macaxeira conheceu a ayahuasca através de seu antigo Ogã e Pai-de-Terreiro José
Gabriel. Quando Nunes Pereira visitou o terreiro, o conjunto dos cânticos era
lá denominado Doutrina da Ayahuasca. “Nomes de santos católicos, nalguns desses
cânticos, se misturaram com os dos Voduns mina-jejes, tais como Xangô, Badé,
Avêrêquête, e os ditos Barão de Goré, Sultão
das Matas, Marangalá, Jatêpequare, Tindarerê, etc.”[22]
É significativo que nos anos 60 ou 70 haja a presença do Sultão das Matas na lista das entidades do terreiro, já que, como
se verá adiante, José Gabriel “recebia” esse caboclo quando trabalhava num
terreiro que armou no seringal, nos anos 50.
6. O Sultão das
Matas e os xamãs da fronteira boliviana
Até 1950, José Gabriel morava com Pequenina em Porto Velho.
O casal já tivera dois filhos: Getúlio e Jair. Além de trabalhar como
enfermeiro, ele tinha também uma taberna de bebidas. E gostava de política.
Diante dos dois partidos que disputavam o governo do Território de Guaporé, o
de Rondon e o de Aluísio, José Gabriel era pró-Rondon. No entanto, seu candidato
perdeu, e ele foi perseguido em seu emprego público no hospital. Tendo de se
afastar de seu trabalho, José resolve voltar para o seringal. E sua mulher
discorda: “Eu disse: ‘Não, o que é isso? Eu não nasci no seringal, em mato. Não
quero criar meus filhos sem saber ler e escrever.’ Ele disse: ‘É porque eu vou
atrás de um tesouro.’ Mas eu era uma pessoa de cabeça cheia de muitas coisas e
achei que era riqueza material que ele ia achar, e nós ia enricar, ter uma vida
de rosa. Então, quando ele disse que ia, eu disse: ‘Então, vamos.’ Então eu
digo que esse tesouro que ele encontrou junto comigo e os dois filhos, pra mim,
é um tesouro tão maravilhoso que dinheiro nenhum não paga essa felicidade.
(...) Então, esse tesouro, que é a União do Vegetal, tem me amparado.”[23] Nestas palavras de Mestre Pequenina e
provavelmente também na afirmação de José Gabriel, poder-se-ia detectar a
presença dos motivos edênicos que povoaram o imaginário das populações que se
defrontaram com a floresta amazônica. Nos sonhos e anseios dos nordestinos
pobres que se lançam na aventura da borracha ecoam ainda as buscas das
“estranhas coisas deste Brasil”: do Eldorado, da Lagoa do Vupabuçu, ou da serra
anunciada por Filipe Guillén, “que ‘resplandece muito’ e que, por esse seu
resplendor era chamada ‘sol da terra’ ”[24].
Posteriormente, o sonho do tesouro a ser encontrado na selva é resignificado,
passando a expressar a União do Vegetal, que nasce da floresta, de um líquido
também dourado, denominado por vezes de “chá misterioso”[25].
No seringal Orion, José Gabriel abriu o terreiro no qual
“recebia” o caboclo Sultão das Matas.
Como recorda Mestre Pequenina, “vinha gente de tudo quanto era seringal”[26]
consultar o Sultão das Matas. E ele curava as pessoas, assim como indicava o
lugar certo onde se encontrava caça. Adaptando-se a um novo contexto
sócio-ecológico-cultural, José Gabriel dirige um rito sincrético afro-indígena,
no qual o valor simbólico da floresta, que perpassa toda a vida dos
seringueiros, fica evidente. Tal rito, designado pelo filho de José Gabriel
simplesmente como “macumba”[27],
parece assemelhar-se à pajelança cabocla amazônica[28],
uma forma de xamanismo não-indígena na qual tem importância fundamental a noção
de incorporação do curador por entidades espirituais que agem através dele para
a cura dos doentes. No entanto, certamente permaneciam marcantes nos toques do
Seringal Orion os elementos religiosos afros vivenciados anteriormente por José
Gabriel, seja na Bahia, seja em sua participação no Terreiro de São Benedito de
Porto Velho.
Mais tarde, quando já estão em outro seringal, Pequenina
fica sabendo de um chá: “o pessoal vê isso, vê aquilo, o cara falou até com o
filho depois de morto”[29].
Ela fala a José Gabriel e ele vai pedir o chá ayahuasca a quem o distribuía no
lugar. Mas o homem disse que “não dava o Vegetal praquele baiano que sabe aonde
as andorinhas dormem”[30].
Tempos depois, no seringal Guarapari, numa colocação chamada Capinzal, na
região da fronteira boliviana, José Gabriel recebe pela primeira vez o chá de
um seringueiro chamado Chico Lourenço, no dia 1° de abril de 1959. Chico
Lourenço representa uma tradição indígena-mestiça de uso xamânico da ayahuasca
que se espalha por uma ampla região da Amazônia ocidental. Tal tradição é
designada posteriormente pela UDV como a dos “Mestres da Curiosidade”. Aí se
inicia nova etapa na trajetória de José Gabriel.[31]
7. O Mestre e
Autor da União do Vegetal
José Gabriel bebe apenas três vezes o chá com Chico
Lourenço. Logo depois, viaja por um mês para levar um filho doente a Vila
Plácido, no Acre, e quando retorna traz um balde com o cipó mariri e a folhas
de chacrona que colheu no caminho. Diz à mulher: “Sou Mestre, Pequenina, e vou
preparar o mariri”[32].
Segundo seu filho Jair, “nesse período o Mestre Gabriel não deixou a macumba
não. Ele fazia uma Sessão de Vegetal e uma de umbanda.”[33]
Somente em 1961 ele reuniu as pessoas e disse: “Eu quero
falar pra vocês que tudo que o Sultão das Matas fez eu sei: Sultão das Matas
sou eu.”[34] Este é um
dos momentos mais importantes de ruptura de José Gabriel com a tradição
religiosa à qual estava ligado anteriormente. Ao postular para si mesmo o poder
antes atribuído à entidade Sultão das Matas, o agora Mestre Gabriel nega a
incorporação dos cultos de caboclo e configura o transe que será típico da
União do Vegetal: a burracheira. A
burracheira, que segundo Mestre Gabriel significa “força estranha”, é a
presença da força e da luz do Vegetal na consciência daquele que bebeu o chá.
Assim, trata-se de um transe diverso, no qual não há perda da consciência, mas
sim iluminação e percepção de uma força desconhecida. Há uma potencialização
dos sentimentos, das percepções e da consciência do indivíduo.
Em seguida, Mestre Gabriel e sua família se mudam para o
seringal Sunta. No dia 22 de julho de 1961, ele reúne as pessoas para um
preparo de Vegetal. Nesse dia, o Mestre Gabriel declara criada a União do
Vegetal. Ou melhor, afirma que a UDV foi recriada, já que ela teria existido no
passado, quando ele mesmo teria vivido em outra encarnação. No dia 6 de janeiro
do ano seguinte, Mestre Gabriel se reúne com doze Mestres da Curiosidade no
Acre, em Vila Plácido. Numa sessão, eles reconhecem Gabriel como o Mestre
Superior. Finalmente, no dia 1° de novembro de 1964 é realizada uma sessão na
qual o Mestre Gabriel afirma que fez a Confirmação da União do Vegetal no
Astral Superior. Logo depois, em 1965, ele se muda para Porto Velho, para lá
consolidar a nascente instituição. Apenas seis anos depois, se deu o
falecimento de José Gabriel da Costa, no dia 24 de setembro de 1971.
8. Conclusão
Descrevendo-se em largos traços a vida de José Gabriel da
Costa, fica patente a sua participação numa larga seqüência de configurações
culturais muito próprias da sociedade brasileira: o catolicismo popular rural
do interior da Bahia, a capoeiragem e os cultos afro-brasileiros de Salvador, a
vida sofrida de seringueiro na Amazônia, a experiência de incorporação dos
cultos de caboclo, o transe xamânico do hoasqueiro, e, finalmente, a atuação
carismática do fundador de um novo movimento religioso.
A maleabilidade, a destreza, a vivacidade e a ginga da
capoeira contribuíram para que José Gabriel viesse a elaborar uma inovadora
síntese de diversos elementos culturais e religiosos, num culto profundamente
adaptado à realidade sócio-cultural amazônica. E não apenas adaptado a esta,
mas com virtualidades para se expandir por todo o Brasil, exatamente por ser
constituído por uma criação vigorosa que se apropriou de configurações
provenientes de diversas regiões brasileiras.
O que ensina Gilberto Freyre pode inspirar a conclusão
deste texto: “Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e
de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando
para o individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes. Confraternização
que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse
dominado a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético,
mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce,
doméstica, de relações quase de família entre os santos e os homens, que das
capelas patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas -
batizados, casamentos, ‘festas de bandeira’ de santos, crismas, novenas -
presidiu o desenvolvimento social brasileiro.”[35]
José Gabriel da Costa, nascido nessa sociedade propensa a hibridismos, plena de
plasticidade e inclusividade, elabora uma nova religião que também é “doce”, na
medida em que privilegia o sentir e propicia ao indivíduo espaço para que ele
próprio construa suas reinvenções criativas.
* * *
Bacharel em
Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Centro de Estudos
Superiores da Companhia de Jesus (CES), em Belo Horizonte, Licenciado em
Filosofia pela Pontifícia Universidade de São Paulo e Bacharel em Teologia pelo
CES, o autor atualmente faz o Mestrado do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Desde 1992 vem estudando a União do Vegetal, e o tema de sua
dissertação será a respeito dos discípulos urbanos da UDV.
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a) Mar / Jul 92 - CONFEN libera chá por unanimidade.
b) Dez 92 / Jan 93
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c) Jan / Jul 93 -
pp. 10-13 - Entrevista com M. Nonato.
d) Ago 93 / Fev 94
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f) Mai / Jun / Jul
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Pernambuco.
g) Ago / Set / Out
94 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Roberto
Souto.
h) Nov / Dez 94 /
Jan 95 - pp. 6-9 - Entrevista com M.
Manoel Nogueira.
i) Abr / Jun 95 -
pp. 8-11 - Entrevista com Cons. Paixão.
j) Ago / Set / Out
95 - pp. 6-9 - Entrevista com M.
Pequenina e M. Jair.
l) Nov / Dez 95 /
Jan 96 - pp. 4-5 - Entrevista com M.
Monteiro.
m) Fev / Set 96 -
pp. 8-11 - Entrevista com M. Florêncio.
2. CORREIO BRAZILIENSE. Brasília.
a) 10
de julho de 1996. Caderno Cidades, p. 4 - Chá
Hoasca é inofensivo à saúde.
3. O Alto Madeira. Porto Velho.
a) 6 de outubro de 1967. Artigo: Convicção do Mestre.
[1]
Este texto integrará a minha dissertação de mestrado no Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - UFRJ, a respeito dos Discípulos da União do Vegetal na realidade
urbana brasileira.
[2] Depoimento de Antônio da Costa, irmão de
José Gabriel da Costa, ao autor, em 4 de novembro de 1995.
[3]
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS MÉDICOS DA UDV. Texto
do Programa Oficial do II Congresso em Saúde. Hoasca e desenvolvimento integral
do ser humano. Campinas, 1993. p. 1. O texto continua: “José Gabriel da
Costa - Mestre Gabriel - era esse menino. Fundou a União do Vegetal para
continuar unindo as pessoas.”
[4] Depoimento de Antônio da Costa. Idem.
[5]
ANDRADE, Afrânio Patrocínio de. O
fenômeno do chá e a religiosidade cabocla. Um estudo centrado na União do
Vegetal. Dissertação de Mestrado na Pós-Graduação em Ciências da Religião
do Instituto Metodista de Ensino Superior. São Bernardo do Campo, 1995. p. 170.
[6]
GIUMBELI, Emerson Alessandro. O cuidado dos mortos: os discursos e intervenções
sobre o “Espiritismo” e a trajetória da “Federação Espírita Brasileira”
(1890-1950). Dissertação do PPGAS - UFRJ, 1995. p. 29. Ver tb. KLOPENBURG, Boaventura. O espiritismo no Brasil. Petrópolis, 1960. p. 25.
[7] ANDRADE, Afrânio Patrocínio de. Idem.
[8] LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, 1967. p. 117. O grifo é
nosso.
[9] Cf. outra cantiga semelhante, recolhida por
Edison Carneiro:
“Minino, quem foi teu mestre?
quem te ensinô a jogá?
- Sô discip’o que aprendo
Meu mestre foi Mangangá
Na roda que ele esteve,
outro
mestre lá não há.”
In:
Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro, 1974. p. 138.
[10] Depoimento de Carmiro da Costa, filho de
José Gabriel da Costa, ao autor, em 4 de novembro de 1995.
[11] PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. A capoeira no jogo das cores: criminalidade,
cultura e racismo na Cidade do Rio de Janeiro (1890-1937). Dissertação de
mestrado em História - UNICAMP . Campinas, 1996. p. 143.
[12] Idem, p. 201.
[13]
Em 13 de agosto de 1946, Paulo de Assis Ribeiro, Chefe do SEMTA, declarou à CPI
acerca dos soldados da borracha ser esse o número de pessoas encaminhadas à
Amazônia. Depoimento publicado no Diário Oficial de 24 agosto de 1946. Dado
informado pela antropóloga Lúcia Arrais.
[14]
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do
Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília, agosto-outubro 1995,
p. 6.
[15]
In: ARRAIS, Lúcia. No capítulo Dados
ignorados da tese de doutorado em elaboração a respeito dos soldados da
borracha para o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional, da UFRJ. Agradeço à autora por me possibilitar o acesso a esse texto,
ainda inédito.
[16]
ARRAIS, Lúcia. Idem.
[17]
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem, p. 6.
[18] Entrevista do Conselheiro Paixão. In: ALTO
FALANTE, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília,
abril-junho 1995, pp. 8-9.
[19]
PEREIRA, Nunes. A casa das minas.
Contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos voduns do panteão
daomeano, no estado do Maranhão, Brasil. Petrópolis, 1979, 2a. ed. pp.
121-143. 223-225.
[20] Idem, p. 223.
[21] Idem, p. 142.
[22] Idem, p. 143. O grifo é nosso.
[23] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre
Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da
UDV. Brasília, agosto-outubro 1995, p. 7.
[24]
HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do
paraíso. São Paulo, 1994. pp. 36-37.
[25] Artigo: Convicção
do Mestre. In: O Alto Madeira.
Jornal. Porto Velho, 7 de outubro de 1967.
[26]
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do
Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília, agosto-outubro 1995,
p. 7.
[27]
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem, p. 9.
[28]
Cf. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres,
Pajés, Santos e Festas: Catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém:
CEJUP.
[29]
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem. p. 7.
[30] Ibidem. p. 7.
[31]
Haveria muito a observar acerca da tradição “vegetalista” amazônica, o que
transbordaria o âmbito desta breve exposição da trajetória de José Gabriel da
Costa. Prefiro remeter aos textos de Luis Eduardo Luna e Edward MacRae citados
na bibliografia.
[32] Ibidem. p. 8.
[33] Ibidem. p. 9.
[34] Ibidem. p. 9.
[35]
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala.
Rio de Janeiro, 1992, 31a. ed. p. 355.