OS BATISTAS E AS NOVAS CONCEPÇÕES SOBRE A
SEXUALIDADE
FEMININA
Gina Valbão Strozzi Nicolau
Mestranda em Ciências da
Religião PUC-SP
Professora de Psicologia da
Universidade de Santo Amaro-UNISA
Esta
comunicação é fruto de uma pesquisa realizada para a dissertação de mestrado
intitulada “Sexualidade e Religião: estudo de um grupo de mulheres batistas na
cidade de São Paulo (1960-2000)”, tendo como
objetivo a descrição da construção da sexualidade feminina a partir de
elementos sociais e religiosos que permeiam o cotidiano das mulheres batistas.
Aqui, aproximar a doutrina Batista das novas
concepções sobre a sexualidade feminina, especificamente a respeito do prazer
feminino, nos remete à tarefa de verificar a possibilidade de conciliação entre
a doutrina, a fé e a prática das
mulheres batistas no seu cotidiano. Para este fim, realizou-se uma pesquisa
empírica com 28 mulheres membros da Igreja Batista da Liberdade em São Paulo. A
proposta foi a de um estudo das relações intergeracionais (20 a 39 anos, 40 a
59 anos, e 60 a 80 anos de idade) e este enfoque concedeu-nos o posicionamento
dos elementos contraditórios e complementares no qual se constituiu o objeto
deste trabalho.
A sexualidade feminina
A análise da sexualidade feminina,
aqui, circunscreve-se diante de uma postura em
favor da cotidianidade.
Sabendo-se que o cotidiano contém práticas, e essas práticas, de acordo com CERTEAU (1994) são
práticas firmadas na liberdade, são práticas que revelam uma ação sobre a cotidianidade estabelecendo
a existência de uma percepção que
expressa micro-diferenças, sutis
alterações na realidade cotidiana,
realidade onde muitos indivíduos
veriam, vislumbrariam somente
obediência e uniformização. Essas práticas firmadas na liberdade, segundo o
autor, estabelecem minúsculos espaços
no jogo das táticas silenciosas e sutis que compõem a formatação deste
cotidiano. Entendendo-se que a sexualidade só é capaz de ser percebida e
interpretada a partir de um esforço que reconhece em seu campo de ação singelos
movimentos de seus sujeitos, é indispensável pensarmos a sexualidade como uma
prática que supõem sutis alterações quando vista a partir da experiência da
religião de cada mulher entrevistada. A cotidianidade aqui é inquirida, a fim
de perceber o movimento das mulheres batistas
para a manutenção do seu dia-a-dia, buscando compreender quais os tipos
de respostas oferecidos pela religião, através da igreja e das próprias ações
das mulheres no enfrentamento dos
dilemas do seu cotidiano quanto à busca do seu prazer. A fim de aproximar a
doutrina batista das novas concepções da sexualidade feminina faz-se necessário
estabelecer inicialmente que para se aproximar doutrina e concepções é
necessário grifar seus espaços e lugares, é necessário demarcar seus marcos e
posições. Far-se-á esta tarefa conjuntamente com os pressupostos obtidos em
CERTEAU (1994), onde se sabe que atribuir
grifos a coisas e pessoas, lugares e papéis
determinados, não pode deixar de incluir e atentar para a existência de um
sujeito que escapa silenciosamente a um estado de conformação, inventando e re-inventando o seu cotidiano, alterando códigos,
objetos e se re-apropriando do espaço e do uso dos objetos a fim de avistar um
meio possível de se viver e sobreviver na ordem social e religiosa que
lhe é imposta.
Aproximar os Batistas, ou a
doutrina batista das novas concepções sobre a
sexualidade das mulheres é organizar a caminhada destas mulheres, é
fazer do relato delas, do depoimento das entrevistadas, “a viagem, antes ou enquanto os pés a executam” CERTEAU (1994:200).
Justifica-se aqui, a opção de um estudo dirigido a uma visão intergeracional,
(20 na 39 anos, de 40 a 59 anos e de 60 a 80 anos de idade) a fim de estabelecer
as mudanças e as permanências ocorridas
não só em outro tempo histórico mas também em outro espaço-lugar. Sabendo-se que a noção de espaço define-se por um lugar
praticado, um lugar que comporta as ações do sujeito histórico.
Este trabalho particulariza-se diante o fato de que a noção de
sexualidade para cada mulher não se revela simplesmente na sua auto-descrição,
antes porém, esta noção aloja-se na acomodação que o sujeito faz em seu universo cotidiano, e esta possibilidade de
acomodação no cotidiano sugere uma capacidade de cada indivíduo de assimilar as
muitas práticas e posturas frente a um evento de ordem sócio sexual. GIDDENS
(1993) destaca uma concepção de
sexualidade desprovida da sua função reprodutiva. Ele elabora uma sexualidade descentralizada
e liberta das necessidades de reprodução. No dizer do autor, “...hoje a sexualidade tornou-se maleável,
sujeita a ser assumida de várias maneiras, é uma ‘propriedade’ em potencial do indivíduo” (1993:37).
Segundo este autor, a sexualidade plástica foi o
conceito responsável pela revolução sexual das últimas décadas, a qual consiste
em romper com a idéia de sexualidade ligada à reprodução, no dizer do autor:“...para a maior parte das mulheres, na
maior parte das culturas, e através da maior parte dos períodos da história, o
prazer sexual, ou a noção de sexualidade,quando possível, estava
intrinsecamente ligado ao medo de gestações repetidas, e, por isso, da morte
(...) romper com estas conexões foi, portanto, um fenômeno com implicações
realmente radicais.” (1993:38)
No estabelecer
da sexualidade como passível de ser desenvolvida, re-modulada e construída, o
enfoque intergeracional neste estudo demonstrou ser promissor, à medida que
permitiu uma maior aproximação da dimensão temporal da construção social do
sujeito (CERTEAU, 1994:199). Considerar três
gerações de mulheres possibilita falar de experiências e significados que
permanecem ou se alteram num período de tempo que vai além do tempo vivido de
cada entrevistada, contém pois, suas
memórias e seus projetos futuros que
fazem ampliar o tempo, constituindo a
partir do presente, a reconstrução do passado. Este corte histórico permite
analisar o movimento subjetivo de apropriação de um conjunto de objetivações
sociais de um período rico em mudanças e contradições, que transita na tensão
entre continuidade e descontinuidade de valores.
A Mulher Batista
“...sou uma mulher, primeiro de tudo sou uma mulher(...)tenho meus alvos, minhas ambições, tenho meus sonhos(...)saí de casa cedo(...)trabalhei, me formei, estudei muito(...)conquistei meu espaço no mundo, num mundo muitas vezes injusto, desigual, desonesto(...)ainda luto muito(...)quero me permitir ser feliz, ser realizada, ser mulher completa(...)quero achar e ter pra mim um homem que me respeite(...)quero planejar e antes ainda, quero desejar ter um filho(...)quero ser mãe e ser mãe será uma parte de mim, não será o meu todo(...)eu serei sempre inteira como mulher quando aprender a me dividir e me repartir para os outros, sempre mantendo o todo, sempre prevalecendo o ser total(...)sou uma mulher que quero e exijo de mim mesma ser tudo que posso(...)sou uma mulher batista porque escolhi ser batista(...)sou batista como poderia ser de qualquer outro segmento religioso, mas sou batista porque ser batista é crer em princípios firmados na palavra de Deus(...)é acreditar e provar do enorme amor de Cristo na cruz, tendo morrido por mim(...)a minha crença move o meu mundo particular(...)ser batista não me distancia da realidade do meu mundo e sim me dá instrumentos pra eu lidar e sobreviver frente as agruras do mundo em que mulheres de todas as nações e línguas enfrentam a cada dia da vida delas (...)seguir os preceitos bíblicos que sigo me dá força pra eu discernir as escolhas que faço no meu dia-a-dia..” (SABRINA, 29 anos)
“... já vivi muito(...)vivi intensamente muitas coisas(...)sei hoje, depois de ter sobrevivido a muitas situações, sei que a religião me ajudou e que não a religião, mas Deus foi o meu ressuscitador(...)tenho na minha religião, na minha igreja, no meu Deus, o meu porto seguro, a minha âncora(...)mas, eu quero dizer, que esta mesma religião que me ajuda nos momentos difíceis já foi também motivo de muita angústia pra mim, já foi motivo de muito questionamento(..)de muita dúvida(...)há uns vinte anos atrás, minha melhor amiga, a Ana, sofria calada os maus tratos do marido e a ignorância dele com respeito a ela(...)algumas vezes eu percebia marcas do sofrimento que ela carregava, não eram só marcas físicas, era muita mágoa, (...)Ana freqüentava a mesma igreja que eu(...)passou o tempo e um dia ela não agüentou mais, pegou os filhos e saiu de casa(...)ela foi corajosa(...)eu a ajudei(...)mas, naquela época(...)uma mulher que abandonava o lar, deixava o marido(...) não importando o motivo(...)era excluída da igreja(...)eu sofri com ela, eu sofri demais(...)achei injusto a igreja não examinar de perto a situação, não perceber que ela era a vítima, que precisava de nossa ajuda(...)pensei: e se fosse comigo?” (ROSA, 53 anos)
“... meu sonho sempre
foi estudar(...)fui alfabetizada, e isso já era bom demais pra uma menina
naquela época(...)eu quis muita coisa e o que tive foi o que me deixaram
ter(...)primeiro meus pais e depois meu marido(...)eu queria poder
querer(...)eu não tive a vida que eu quis pra mim(...)minhas amigas queriam
casar, ter filhos e cuidar da casa o dia inteiro(...)eu queria tudo isso e
queria algo mais(...)já que na realidade eu não podia ter as coisas que
queria(...)comecei a sonhar e sonhar(...)não contava meus sonhos para os outros
porque nem sonhar parece que uma mulher podia naquela época(...)me via entrando
nos navios, viajando, explorando lugares(...)conhecendo pessoas e ensinando de
Deus pras pessoas(...)sabe, eu sempre fui uma mulher que se deu de corpo e alma
em tudo que fez, criei nove filhos segundo a palavra de Deus, ensinei do amor e
misericórdia de Deus para os meus filhos e isso não é fácil, não é fácil fazer
crianças e depois adolescentes e depois adultos a honrarem um Deus que muitas
vezes eles não experimentaram de perto(...)eu experimentei Deus primeiro e
passei a minha experiência pra eles(...)todos foram criados na igreja
batista(...)não acho que a igreja batista seja melhor que outras, mas foi na
igreja que aprendi a me amar, amar o próximo e amar a Deus(...)eu ensinei isso
aos meus filhos e isso só pode ensinar quem for uma mãe que não mede esforços,
uma mãe que pode sonhar e querer isso para os seus filhos(...)eu realizei
isso(...)me dediquei a eles e engoli minhas frustrações(...)lia a Bíblia e me
via sendo a rainha Éster, a linda e sedutora Rebeca, a obediente Noemi(...)não
acho que a religião me podou(...)foi o sistema masculino da sociedade que não
deixou que eu fosse a mulher que quis ser(...)sou batista, pelo menos isso eu
escolhi ser...”(BETINA, 79 anos)
A conversão, a manifestação pessoal e espontânea de
crença nas afirmações de fé batista é o que distingue as mulheres desta pesquisa.
Identifica-se como
Batista a pessoa convertida, regenerada pela ação do Espírito Santo, salva
mediante a graça de Deus e a fé em Jesus Cristo, e que se submete à soberania
de Cristo; une-se a uma igreja da mesma fé e ordem; (...) presta culto a Deus,
e somente a ele; crê na autoridade da Palavra de Deus – sua única regra de fé e
prática – e na competência do indivíduo perante Deus.[1]
(Filosofia da Convenção Batista
Brasileira)
Ser batista é ser a priori, membro de uma Igreja
Batista. Uma igreja batista, de acordo
com a Convenção Batista Brasileira[2], é uma congregação local de pessoas
regeneradas e batizadas após confissão de fé.[3] Ser membro de uma igreja batista é um
direito dado exclusivamente a pessoas
regeneradas que voluntariamente aceitam o batismo e se entregam ao discipulado
fiel, segundo o preceito cristão.[4]
A igreja batista reúne princípios que contribuem
fortemente para a expressão do seu
pensamento doutrinário oficial, proporcionando os conteúdos, limites e indicações da forma das igrejas batistas no
Brasil. Os princípios batistas, são:
A
autoridade: Cristo como Senhor, As Escrituras, O Espírito Santo
O
Indivíduo : Seu valor, Sua competência, Sua liberdade
A
Vida Cristã: A salvação pela graça, As exigências do discipulado, O sacerdócio
do crente, O cristão e seu lar, O cristão como cidadão
A
Igreja: Sua natureza, Seus membros, Suas ordenanças, Seu governo, Sua relação
com o Estado, Sua relação para com o mundo
A
tarefa contínua: A centralidade do indivíduo, O culto, O ministério cristão,
Evangelismo, Missões, Mordomia, O ensino e treinamento, Educação cristã, A
autocrítica.
A Igreja Batista da Liberdade, igreja eleita nesta
pesquisa como objeto de estudo, foi a
Segunda Igreja Batista fundada na cidade de São Paulo. Fundada em 31 de abril de 1909, é uma associação
religiosa sem fins lucrativos, que tem por finalidade[5]
cultuar a Deus e estudar a Bíblia, divulgar o evangelho de Cristo e manter
instituições que concorram para a formação moral e religiosa das pessoas de
acordo com a Bíblia. A igreja[6]
é soberana em suas decisões e não está subordinada a qualquer outra igreja ou
entidade e, em matéria religiosa e eclesiástica, reconhece apenas a autoridade
de Jesus Cristo, por sua vontade expressa nas Escrituras Sagradas.[7]
A religião cristã incumbiu-se durante séculos a ser instrumento de negação
e punição pela busca do prazer feminino. À mulher era lhe permitido dar prazer
ao marido e satisfazer as necessidades do lar. Assim, caracterizava-se o apelo
máximo do prazer para a mulher cristã (BROWN, 1990).
GUILLEBAUD (1999), nos faz relembrar que de fato, até
a própria teologia reconhece a legitimidade do ato sexual quando orientado para
a procriação, e somente neste caso. E, que no maior rigor teológico, um marido
inábil, que negligencia o prazer da esposa, age contra a procriação, e incorre
portanto em falta de honra para com a mulher. O prazer da mulher é vinculado à
procriação.
Sabemos que a partir da introdução da pílula anticoncepcional no mercado mundial na
década de sessenta, inicia-se para a mulher um caminhar efetivo em direção
à emancipação da sua pessoa nas
múltiplas esferas sociais. GIDDENS
postula quanto a este evento que a “...a
sexualidade plástica foi a condição
prévia da revolução sexual das últimas décadas” (1993:38).
No dizer deste autor, o prazer sexual feminino reside
na não obrigatoriedade, na não intencionalidade para um fim proposital, é a
liberdade da prática e ação feminina em busca da satisfação que resultará no
prazer.
Revelado a possibilidade do prazer feminino na
prática sexual, através do entendimento da
“não-instrumentalização” do sexo
para a procriação exclusivamente, faz-se da mulher a regente própria da busca à
satisfação. A sexualidade feminina desvinculada da atividade sexual reprodutiva
se autonomiza, a mulher se autonomiza.
A noção do conceito da sexualidade plástica, se revela construindo a concepção de um novo
vislumbre da condição da mulher quanto ao seu direito pelo desejo e prazer
sexual na realidade das mulheres batistas.
“...hoje a mulher tem a pílula que deixa ela mais segura, ela pode trabalhar tranqüila e gozar na cama tranqüila” (Helena, 53 anos)
“...não faço parte do tempo em
que as mulheres eram apenas máquinas reprodutoras e eram colocadas como
bonecos de satisfação sexual masculina,
elas têm a pílula hoje pra se proteger das conseqüências deste abuso, ou
melhor, a pílula veio dar autonomia e força pra mulher se livrar e saber evitar
este abuso(...)é um abuso, é uma violência contra a mulher ter sexo só pra ter um filho...” (Sofia, 23 anos)
“...o sexo desvinculado de
obrigações, é uma conquista (...) o orgasmo da mulher está condicionado a esta
consciência (...) a pílula não é só para evitar bebês, é pra fazer da mulher, a
proprietária majoritária do seu corpo...” (Sabrina,
29 anos)
É de se notar
a ocorrência da idéia de prazer vinculada à aquisição da pílula
anticoncepcional como um agente de libertação à prática sexual.
A reivindicação do prazer sexual feminino veio a se transformar em um elemento básico para
a emancipação da mulher na sociedade, tão importante quanto qualquer outro
elemento almejado na esfera pública.
(GIDDENS, 1993)
Verificamos também que no conteúdo da fala das
mulheres batistas acha-se um elemento que
declara a ocorrência a respeito
do fenômeno que assombra a sexualidade humana nos nossos tempos – a obrigatoriedade do sexo e a obrigatoriedade
pelo bom desempenho – buscando ela própria,
alternativas para se dispor a esta imposição de conduta sexual
aceitável.
Como resultado desta nova realidade no campo da
sexualidade, surge uma vertente
crescente no discurso de liberação sexual, que defende a liberdade de dizer não
ao sexo. O discurso pela liberação chegou a tal ponto que as práticas sexuais
passaram a se tornar uma obrigação, uma opressiva medida de competência.
(GUILLEBAUD, 1999)
“...a mulher pra ter prazer ela tem que ter liberdade pra buscar e sentir o prazer(...)parece que hoje, isso virou meio obrigação(...)e de repente a gente nem quer mais(...)a revolução sexual deixou a mulher mais livre(...)livre pra que?(...)livre pra ser obrigada a sentir e prestar contas do que sente?(...) isso não é liberdade(...)isso é escravidão de novo, e eu me sinto escrava...” (Paloma, 23 anos)
“...liberdade e prazer estão
longe um do outro(...)eu achava que se eu deixasse de ser virgem eu teria mais
liberdade(...)queria me libertar da minha família, das minhas obrigações(...)eu
fiz tudo com um propósito(...)ser livre(...)eu não tive prazer...” (Sheila, 27 anos)
“...a mulher lutou muito pra ser
livre(...)mas se escraviza diante de tantas opções que a liberdade lhe
traz(...)sei que parece contraditório e é lamentável que haja algo de contraditório no prazer feminino(...)muitas
mulheres se sentem livres com a pílula, mas se prostituem pelo preço dessa
liberdade...” (Rosa, 53 anos)
O discurso das mulheres batistas reflete uma
insatisfação que reside entre a
distância da conquista da liberdade em
se buscar o prazer e a não realização
necessariamente do prazer. As mulheres mais jovens vêem a possibilidade do prazer vinculada à noção de liberdade que
o discurso da revolução dos costumes ofereceu à sociedade e do qual esta
geração buscava usufruir. Há frustração no sentido de que “agora eu posso, mas não consigo”, há um descontentamento
quanto aos resultados, do ganhos reais obtidos diante da liberdade conquistada.
O prazer
feminino é visto como um indicador para a felicidade da mulher. Nota-se
que muitas vezes a mulher satisfeita é
a esposa e é a mãe. O prazer sexual se assemelha muito ao contexto
do casamento e da reprodução, ainda que hoje a mulher
diga-se liberta destas funções.
“...a mulher conquistou o
direito de ser feliz e de fazer o que lhe satisfaz sem deixar de lado a
família, a feminilidade e suas responsabilidades(...)isso tudo está contido no
direito à liberdade que hoje é
garantido às mulheres(...) e ainda por
cima, tem o prazer conjugal, isso é muito bom!” (Maressa,
30 anos)
“...hoje, a mulher tem a
liberdade da prática sexual só para o prazer(...) é muito valioso que possamos
ter relações sexuais com nossos maridos apenas pelo prazer e sem sermos
condenadas por isso...” ( Mariana, 20 anos)
Há de se observar que o prazer feminino no discurso das jovens mulheres
batistas está ancorado na relação familiar, no ato conjugal. Representando
assim um retorno ao âmbito anterior em que se estabeleciam os parâmetros para a obtenção do prazer da
mulher, a família e o casamento.
É importante ponderarmos a respeito da noção de
“alojamento” e de realização do prazer para as mulheres de
mais idade, que compõem a geração de senhoras entre 60 e 80 anos desta pesquisa .
O prazer para estas mulheres reside na própria capacidade feminina de se
abster das agruras impostas socialmente e das agruras ideologicamente
formuladas, se impõem portanto na posição de ‘gerentes’ próprias
deste prazer. O prazer está em se apropriar das bem venturas do cotidiano.
Essas mulheres constroem sua sexualidade em busca do prazer ancoradas nas
oportunidades de lazer, de conhecimento do corpo, de conhecimento pessoal, da
realização pessoal e na realização do outro e
com o outro também.
“...o prazer está no
romantismo(...)no saber namorar(...)curtir a dois as belezas da vida(...)o
prazer sexual é uma conseqüência imediata(...)o prazer sexual é inerente ao bem
estar...” (Emília, 68 anos)
“...o prazer esta em conhecer o
seu sexo(...)conhecer o seu órgão genital
e saber o que ele pode fazer...” (Rosane,
72 anos)
“...o prazer da mulher(...)o
orgasmo da mulher(...)se dará quando ela tiver a capacidade de se dar prazer e
de se permitir ao prazer...” (Marilse, 74 anos)
“...a mulher precisa descobrir o
prazer do sexo(...)o sexo é a melhor forma de se viver(...)ver o marido
sorrindo na cama é ter prazer, ver o marido sorrindo por uma comida gostosa,
isso é ter prazer..” (Betina, 79 anos)
Para GUILLEBAUD (1999), a racionalização do
desejo tem banalizado o senso de transgressão e de pecado. Considera que o primeiro torna-se
meramente um jogo de limites a serem discretamente vencidos e o último um mero
conceito de re-insuflação do desejo.
O depoimento abaixo exemplifica claramente a
preocupação com esta banalização do senso de transgressão e do conceito de pecado,
onde as mulheres batistas defendem uma
liberdade para se obter o prazer sexual não fundada em um contra censo doutrinário, antes porém
buscam a garantia do prazer num mediar dos jogos entre cultura e religião,
modernidade e fundamentos bíblicos, ou
mesmo entre liberdade e liberalidade.
“...sabe, acho que com tanta liberdade ditada na sociedade a mulher acaba se confundindo um pouco, digo a mulher cristã(...)a mulher ganhou a liberdade para o prazer(...)isso é certo(...)mas, ela precisa tomar cuidado porque tanta liberdade pode parecer soar como liberdade para pecar, liberdade pra fazer coisas que não deve(...)a mulher cristã, a mulher batista, precisa entender que essa liberdade que a sociedade dita é a liberdade que Deus nos deu, é sim a liberdade que nos é proclamada a eras atrás, só que a religião e a própria igreja deturpou tudo(...)nós somos livres(...)mas essa liberdade que nos orgulhamos de termos conseguido só trás deterioração pra mulher(...)muitas mulheres pecam em nome da liberdade(...)pecam não se guardando para o casamento(...)e isso que eu falo não é minha opinião simplesmente, é a palavra de Deus(...)se eu sou crente é porque eu acredito nisso(...)sou uma mulher livre(...)livre pra pensar, pra querer, pra estudar, pra me realizar, pra trabalhar, pra me casar se quiser, pra ter filhos se quiser, eu sou uma mulher livre, mas livre pra viver e não pra morrer(...)a liberdade que o mundo, a sociedade oferece pra mulher é uma liberdade que leva à morte...”(Gisela, 62 anos)
Nota-se que seu
posicionamento é determinado a partir da compreensão de liberdade
cristã, santificação e a garantia da
salvação eterna. Há uma ênfase na responsabilidade individual.
A busca e a
conquista do prazer por parte da mulher batista delimita-se num território
onde se encontram nas mesmas posições
um empenho pela satisfação, pela liberdade,
e pela obediência à Bíblia. São
preceitos que organizam e hierarquizam o social e o pessoal destas mulheres.
Para tratar da sexualidade
feminina, da construção da sexualidade feminina, se faz necessário evocar
algumas considerações a respeito do elemento que perdurou até a revolução dos
costumes, como o sustentador e até consolador ou justificador da razão do prazer sexual feminino estar
condicionado ao “outro”, ao prazer feminino estar vinculado ao casamento ou a
uma união duradoura, o elemento a ser tratado e considerado aqui, é o amor.
O amor na maioria das vezes vincula-se à sexualidade
por intermédio do evento do casamento, onde duas pessoas se unem por um sentimento.
Esse sentimento, é designado há tempos
e em muitas culturas como o elemento essencial que comporia uma possível ambição da mulher ao sexo. E não apenas um dos fins para a intenção da prática sexual de
uma mulher como também a única possibilidade do ato sexual por parte dela.
Seguindo esta máxima, a mulher faria sexo somente com quem ama.
Porém, a sexualidade e o amor nas
sociedades modernas tomaram novos contornos
e abstiveram-se de uns valores
para se apropriarem de outros tantos quanto importantes para a nossa reflexão a
respeito da sexualidade de mulheres batistas. Torna-se essencial neste
estudo, nos referirmos às novas
concepções da instrumentalidade do amor na construção da sexualidade das
mulheres batistas. E para tanto, evocaremos a focalização do elemento amor
abordado por GIDDENS (1993) e postulado como um elemento constitutivo para a
formação da intimidade , local onde se dá uma relação amorosa.
GIDDENS é categórico ao afirmar que as mulheres
levaram adiante, após os anos 60, uma luta pela autonomia sexual feminina,
trazendo transformações importantes para a esfera da intimidade, indo além dos
discursos dos movimentos feministas, onde
a mulher reivindicou o acesso ao prazer sexual e à manifestação de sua
sexualidade não mais às escondidas, limitadas que estavam, tanto a um duplo
padrão moral que as julgava como virtuosas ou perdidas, quanto à sua
participação na vida do espaço público. O autor defende que este ideal do amor
romântico, geralmente relegado nas análises sobre sexualidade, possui peculiaridades especiais na vida
cotidiana. No caso das jovens mulheres batistas entrevistadas (20 a 39 anos),
há uma tendência na desvinculação
parcial de sexo e amor, dizendo de
outra forma, há uma articulação entre eles, porém o vínculo prioritário de
dependência entre um e outro é
rejeitada pelas entrevistadas desta geração. O sexo em si é almejado como
elemento de obtenção de prazer e não como somente prática do amor, como antes
tido pela sociedade em favor da sexualidade feminina restritiva. Elas
porém, consentem e admitem que a
finalidade do sexo não é para fins de procriação e também não mais determinado
só pelo amor que une um casal, a
finalidade prioritária do sexo é dar prazer.
“...pra ter prazer, não
necessariamente tem que ter
amor(...)pra ter sexo, não necessariamente tem que começar pelo amor, mas tem
que terminar no prazer(...)acredito que
com prazer tenhamos um florescer do amor, e com o amor há um prazer instantâneo
na relação(...)agora só sexo pra reprodução termina com qualquer prazer e
afunda o sentimento do amor que está dentro da gente...” (Sabrina, 29
anos)
“...faço sexo por amor e faço
sexo por prazer(...)eu amo meu marido e
isso é natural, mas não me garante o prazer(...)tenho prazer em fazer algumas
coisas porque amo o meu marido(...)mas sexo, sexo tem uma finalidade é a de
deixar a gente feliz...” (Sheila, 27 anos)
“...acho bem provável que se
tenha uma relação sexual só por prazer(...)penso que se estamos casados, eu
casei por amor e logo com quem amo, posso fazer sexo só por prazer...” (Maressa, 30 anos)
A admissão feita pelas mulheres mais jovens é
contrariada na geração posterior a elas, através da determinação expressa
na vinculação de sexo com o
amor, e outros atributos, ditos como romantismo, sentimento de afeição ,
vínculo afetivo, e outros termos usados nos depoimentos abaixo pelas
entrevistadas.
“...eu como mulher cristã, eu
nunca desejei um homem pelo simples prazer e desejo, isso é ser animal (...)
tem que haver amor pra ter desejo e prazer” (Edileusa,
59 anos)
“...o prazer está no romantismo” (Emília,
68 anos)
“0 prazer da mulher está em se
sentir amada e querida por alguém, ela tem que se permitir ao prazer com quem
ela ama...” (Marilse, 74)
GIDDENS,
incorporou à sexualidade o amor, diferentemente de outras categorias de análise
que têm na sexualidade uma prática distanciada do amor romântico. Talvez fosse
esperado que as jovens mulheres entrevistadas (20 a 39 anos) fizessem uma
articulação restrita de amor, prazer e
sexo, e o que se constata é que elas não só privilegiam o sexo como resultado
do amor, mas principalmente prevalecem
em seus depoimentos a obtenção do
prazer no sexo, não obrigatoriamente dependendo da existência do amor para o
vínculo sexual.
As jovens mulheres batistas articulam sexo com casamento e um casamento realizado com base no amor, porém admitem sexo puramente como objeto de satisfação de um desejo, e sexo para gerar prazer. O amor que GIDDENS postulou é realmente elemento de composição para a construção da sexualidade feminina na medida em que estabelece através dele, o lugar onde se alojará o prazer das mulheres entrevistadas nesta pesquisa, e este lugar é o casamento. O casamento como instituído por este sentimento, o amor, culmina na possibilidade do prazer, culmina no lugar de realização do prazer.
Últimas considerações
A mulher
batista nas três gerações pesquisadas vincula a idéia de prazer sexual à
apropriação da não obrigatoriedade da procriação no ato sexual, conquistando esta liberdade pelo direito ao
prazer através do advento da pílula. Elas lutam pelo direito de sentir prazer ,
sabendo claramente que o prazer não se encerra em uma obrigação , elas buscam
alternativas para se dispor à imposição de uma conduta sexual aceitável que
impera nos tempos atuais. As mulheres batistas reivindicam seu direito ao
prazer firmadas nessa consciência que não concebe a alienação, muito antes, o
reivindicar dessas mulheres, situa-nas dentro de um estado de acesso à atualidade social, cultural e religiosa.
Na busca do
prazer pelas mulheres batistas há recuos, temores, empreendimentos, e
contradição, ou até, podemos dizer, há
muita lógica contextual. A geração mais jovem (20 a 39 anos) revela-se
como angariadora de um lugar de segurança, oscila entre a liberdade ditada e
não realizável no cotidiano e uma suspeita em temor à contrariar a fé. As duas
outras gerações desfrutam de um lugar no patamar do percurso de construção da
sexualidade que lhes garantem autonomia para a realização do “querer” e do
“poder”. Verificam-se obstáculos a serem rompidos e desafios a serem vencidos nesta caminhada na busca do prazer da
mulher batista.
Observando as
evidências de conflitos e ambigüidades, como também adequações e remodelamentos
de comportamentos no interior de cada geração e na relação das gerações entre
si, percebe-se que as mulheres batistas buscam aproximarem-se do seu real
cotidiano, o ideal de mulher batista que a elas foi imposto pela igreja, mas
que também foi por elas declaradamente aceitos por ocasião da sua adesão à
religião. A despeito de haver lacunas e
distâncias entre o discurso oficial religioso dos batistas em relação a sua
prática eclesial e a vivência do cotidiano das mulheres, evidenciou-se um
esforço por parte delas em tentar reconciliar doutrina, fé e prática. Os
movimentos das mulheres batistas apontam para a construção de uma sexualidade
que se desenvolve dentro deste campo de reconciliação ou de conciliação entre
as partes integrantes do universo religioso.
Notas
[1] FILOSOFIA DA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA, anais da CBB, 1994, p.513.
[2] Órgão definido por associação religiosa sem fins lucrativos, composta por Igrejas Batistas do Brasil que declaram possuir uma única regra de fé e prática as Escrituras Sagradas, ou a Bíblia protestante, reconhecendo como fiel a “Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira”, que relaciona dezenove pontos: 1) Escrituras Sagradas, 2) Deus, 3) O Homem, 4) O Pecado, 5)Salvação, 6)Eleição, 7) Reino de Deus, 8)Igreja, 9) O Batismo e a Ceia do Senhor, 10)O Dia do Senhor, 11)Ministério da Palavra, 12)Mordomia, 13)Evangelização e mIssões, 14)Educação Religiosa, 15) Liberdade Religiosa, 16)Ordem Social, 17)Família, 18)Morte, e 19) Justos e ímpios. Essa associação foi fundada em 1907.
[3] CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira Série Documentos Batistas. Rio de Janeiro: Juerp, 1987.
[4] Documento “Princípios Batistas”. Emitido pela Convenção Batista do Estado de São Paulo, e entregue às igrejas locais por ocasião de sua filiação oficial.
[5] Conforme propósitos da Igreja, firmado em Documento nomeado Estatuto Interno
[6] Toda a Igreja Batista no Brasil é uma instituição jurídica de caráter religioso, sem fins lucrativos, dotada de estatuto e regimento próprio, presidida em princípio e tradicionalmente por seu pastor titular, e vinculada à Convenção Batista de seu respectivo estado e à Convenção Batista Brasileira.
[7] Estatuto da Igreja Batista da Liberdade. Documento Final dos Estatutos da I.E.B.L. aprovado em assembléia extraordinária realizada em 16 de setembro de 1979, constituindo reforma dos originais promulgados em 1914.
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