Lyndon
de Araújo Santos*
“O protestantismo trouxe para os nossos costumes latino-americanos não sei se a pureza da alma, de que o mundo sempre desconfia, mas o asseio inglês, o regime inglês, a satisfação de bem cumprir os deveres religiosos e de viver com conforto”. João do Rio. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Ed. Organização Simões, 1951. P. 101.
Esta comunicação pretende tratar da
questão de fundo de nossa pesquisa que é a relação entre o protestantismo e a cultura brasileira. Como
em toda pesquisa historiográfica em andamento, a preocupação centra-se na
metodologia e na abordagem que nos auxilie nesta tarefa. Ao perguntarmos pela
relação protestantismo/cultura, almejamos uma perspectiva que compreenda o nosso objeto de fora para dentro e de dentro para fora. Ou seja, que o
compreenda como um movimento religioso cujas facetas múltiplas devem ser
analisadas a partir dele para a sociedade e desta para ele em seus olhares e
interpretações.
Parece-nos necessário discutir e
contemplar as abordagens da historiografia dos anos 80/90 a fim de tentar
responder às questões acima expostas. Trabalhamos a noção de representação atualmente discutida pelas
ciências sociais e que nos parece útil no dialogar e no avançar outras
concepções e abordagens. Esta noção será aplicada em quatro tipos de fontes
analisadas: nas literaturas de Josué Montello e de João do Rio, no jornal O Correio Evangélico e na iconografia do
quadro chamado Os Dois Caminhos.
Duas reflexões precisam ser colocadas em
questão como discussão precedente. Elas dizem respeito às formas de abordagem
do protestantismo na história e na sociedade. A primeira diz respeito à
utilização da metáfora das ondas no
entendimento sociológico do desdobramento histórico do protestantismo no
Brasil. Segundo ela, o protestantismo teria se desdobrado no Brasil em
movimentos historicamente seqüenciais e, por isso, sujeitos a classificações
tais como 1. Protestantismo histórico, 2. Pentecostal clássico, 3. Pentecostal
carismático ou de cura divina e, por fim, 4. Neo-pentecostal.
Esta metáfora ajuda a pensar num movimento
religioso que formou processos que avançaram até um limite de experiência e de
acomodação. Ao esgotarem as possibilidades de ampliação e crescimento,
permitiram a formação de um novo processo religioso em seqüência. Ao mesmo
tempo, permite pensar as mudanças atreladas às transformações sociais e
políticas vividas pela sociedade. O questionável neste tipo de acercamento está
no risco de desvincular-se movimentos com linhagens comuns e não perceber o continuum que haveria entre, por
exemplo, o protestantismo histórico e o pentecostalismo.
A segunda reflexão se limitaria a
analisar uma só vertente eclesiástica dentro deste conjunto. Como opção
alternativa à análise do protestantismo em seu conjunto, historiadores elegem
grupos determinados (denominações) classificando-os de acordo com os tipos já
estabelecidos.
Apesar das especificidades de cada
segmento protestante e suas ligações com os ramos do protestantismo na Europa e
nos Estados Unidos, nossa preocupação se volta para a possibilidade de se
perceber o protestantismo no Brasil como um movimento que teve uma ação
conjunta comum aos seus grupos, aliados entre si – conscientes ou não – no
âmbito maior e mais profundo das práticas e das mentalidades.
Em outras palavras, nem a metáfora das
ondas, nem a particularidade de uma experiência eclesiástica, dariam conta do
evento mais profundo e forjador de mudanças que foi o encontro e a relação
entre o protestantismo e a cultura brasileira.
Literatura, Leitura
e Leitores
Ao inserir a noção de representação
encontrada na historiografia mais recente dos anos 80/90, necessário se faz um
debate em torno dela. Além deste debate, o passo seguinte também necessário
seria a sua pertinência na análise do nosso objeto, o protestantismo no Brasil.
Ou seja, ao erigir-se um conjunto de fontes sobre e do protestantismo no
Brasil, deve-se ter em mente o caráter destas memórias registradas. São representações de discursos, imagens e
práticas construídos num lugar e numa situação. Em outras palavras, construídos
na sua historicidade.
A utilização da noção de representação
torna-se apropriada na abordagem histórica do protestantismo pelo fato de que
suas fontes são rarefeitas, esparsas e indiretas quando se pesquisa em arquivos
e bibliotecas públicas, e mesmo nos testemunhos orais. São, por outro lado,
concentradas, cumulativas e diretas, quando se pesquisa no âmbito interno das
instituições protestantes. O procedimento, então, mais consistente seria o de
cruzar os dados e as fontes, mas, sobretudo estar atento para a apreensão de
que este material são elaborações construídas por seus sujeitos-autores. Nosso
propósito é compreender o protestantismo de dentro para fora e de fora para
dentro (TILLICH: 1992, p. 13).
O protestantismo sempre propagou-se como
a religião da palavra, tendo a
prática da leitura como fundamental para o cultivo da verdade religiosa. Os
missionários protestantes introduziram a Bíblia como livro-texto para leitura
pessoal e comunitária a partir de meados do século XIX no Brasil. A vendagem de
Bíblias, além de atender à demanda de um mercado em ascensão, atendeu à
necessidade de referendar o discurso oficial dos missionários estrangeiros.
Esta representação da verdade teológica e religiosa, na linha de raciocínio de
Chartier e de de Certeau, deve ser historicamente compreendida junto com as
apropriações por parte dos consumidores. Se a leitura torna-se um objeto para a história, ainda se deve
escrever sobre a história da leitura da Bíblia no Brasil.
A
leitura no âmbito das práticas do protestantismo não se deu somente com a
Bíblia, mas com uma série de outras literaturas que tinham o propósito de
reforçar a ortodoxia e o padrão de comportamento religioso. Daí compreender-se
o porquê de tantas importações e traduções de textos teológicos e clássicos da literatura
protestante da Europa e dos Estados Unidos. Além dessa literatura, a edição de
jornais representou um significativo meio de fixação da doutrina e para o
combate contra o catolicismo opositor. Este conjunto de textos compõem um
acervo ainda inexplorado sob a ótica que a historiografia recente tem refletido
e proposto.
Uma das possibilidades metodológicas em
torno das práticas protestantes seria a de se buscar os discursos repetidos em
vários segmentos e lugares produzidos no campo protestante brasileiro no início
do século XX, tais como as atas, os jornais, os sermões, as doutrinas
sistematizadas, panfletos e edições de rituais litúrgicos, de Bíblias e de
hinários (cancioneiros). Nestes fragmentos de discurso, estão presentes
reproduções (reinterpretações) de falas enquanto núcleos de sentido
(enunciados) cujo conteúdo e roupagem são teológicos. Estas falas eram tidas
como permanentes, atemporais, e fundadoras de verdades inquestionáveis porque
estavam revestidas de uma autoridade.
Esta autoridade foi sendo estabelecida no
tempo através da instrumentalidade, em primeiro lugar, das instituições
eclesiásticas com seus cânones e sínteses teológicas reunidos em credos e
textos de referência produzidos e editados pela burocracia interna destas instituições.
Em segundo, pelas universidades de Teologia na Europa e nos Estados Unidos,
responsáveis pela formação de um clero especializado e proprietário de um
capital intelectual que seria imposto nas comunidades, nos centros de produção
do saber, nas edições religiosas e no todo do campo protestante. Em terceiro,
pelo uso (leitura) diferenciado de diversos outros setores do movimento
protestante. Houve uma sedimentação de sentidos que foram se estabelecendo a
partir da veiculação de edições e publicações sucessivas desde a Reforma do
século XVI e que formaram um corpus
tomado como uno e coerente por cada um dos ramos do protestantismo.
Por fim, tomando as noções centrais de
representação, de prática e de apropriação, remetemo-nos para o procedimento de
utilização do discurso literário como fonte histórica ou como se trabalhar no
limiar - frágil ou inexistente - entre ficção e história. Sabemos que a
discussão situa-se em torno da pergunta se a escrita da história equivale à
literatura posta no mesmo patamar da ficção. A questão de fundo é a
possibilidade da verdade no discurso histórico.
Escolhemos dois autores que viveram em
duas cidades importantes dos primeiros tempos da República a fim de
trabalharmos suas construções acerca do protestantismo: Josué Montello,
escritor maranhense, e João do Rio, jornalista carioca. Além deles, um jornal
editado em São Luis, contemporâneo ao olhar de Montello, revela as
representações e as estratégias do protestantismo no início do século XX. Por
fim, introduzimos uma análise de um quadro presente no história do
protestantismo no Brasil, tomando-o como uma iconografia reveladora de suas
idéias e representações.
A obra de Montello, Os degraus do Paraíso retrata o período do pós-guerra (1918) na
cidade de São Luís no Maranhão. Seu texto literário pressupõe uma representação
ou um sistema de representações historicamente elaborados pelo olhar e pela
experiência pessoal de seu autor.
Montello
descreveu e construiu imagens da cidade, das famílias, dos costumes, do
comércio, do clima, da política, das ruas e das ladeiras, dos becos e das
fontes de águas, das instituições, da boemia, da prostituição, dos variados
tipos sociais e da relação de gênero dentro de uma sociedade patriarcal mas
dominada pela mulher no interior da casa. Descreveu também o impacto que a
modernidade trazia naqueles dias: os carros nas ruas e a substituição de
luminárias a querosene pela iluminação elétrica. A cidade saía das sombras para
a luz. O tempo, antes da eletricidade, era cíclico, as coisas se repetiam no
dia a dia e nas fases principais da vida humana. Depois da luz elétrica, o
ritmo muda, assim como as pessoas, suas subjetividades, suas práticas. O
sistema de referências imutável começa a incorporar outras possibilidades.
Dentro desta reconstrução do espaço, das
mudanças, das posturas sociais, das etiquetas e dos diálogos o autor reproduziu
o permanente conflito religioso vivido, sobretudo, pelas personagens femininas
da narrativa. Tanto o protestantismo como o catolicismo são representados nos
sucessivos diálogos e falas dos personagens, assim como pela descrição de
gestos, do vestuário, das posturas, da arrumação do ambiente doméstico, enfim,
da própria mentalidade religiosa
oposta uma à outra.
O catolicismo foi categorizado como uma
religião plenamente inserida na cultura local, com seus valores, costumes e
instituições. Ele representava um ideal conscientemente inatingível pelos
fiéis, sempre distantes do padrão modelar do clero e das ordens religiosas. No
entanto, esforçavam-se em cumprir as suas obrigações rituais tendo o auxílio
dos santos como mediadores de suas tentativas compensadoras de atenuar a culpa
religiosa. A vocação religiosa era uma das poucas opções de vida.
Sobretudo, Montello pressupõe uma
relação entre religião e fiel como uma relação tanto afetiva como ritualística.
Por isso, era uma religiosidade negociada nas duas esferas contrapostas e
inconciliáveis, a do desejo e a da obrigação. O catolicismo configurou-se como
um sistema de regras e rituais rígidos mas ao mesmo tempo de concessões ante as
inclinações humanas dos fiéis. Constituiu-se como um sistema baseado na
consciência da culpa religiosa, sem necessariamente reconhecer uma culpa moral
real.
O protestantismo, por sua vez, foi
categorizado ou representado como tendo uma austeridade ética diante das
extravagâncias e da sexualidade frouxa do contexto maranhense. Foi visto pelo
autor a partir da intolerância diante da fé concorrente e da práticas
religiosas e culturais comuns. Um aparato racional em suas interpretações da
vida comum, ao mesmo tempo letrado e enrubescido.
O protestantismo tentou desconstruir o
sistema religioso baseado numa culpa ritualizada e exteriorizada, e
internalizou-a como forma de domínio mais eficaz do corpo e das paixões,
transpondo o conflito entre desejo e obrigação. O protestantismo projetou-se no
cotidiano das pessoas no momento oportuno e coincidente das mudanças
tecnológicas inseridas no espaço público e doméstico. Daí podermos relacionar a
constituição do protestantismo com a modernidade e suas transformações.
João do Rio foi um jornalista na virada
dos séculos XIX/XX no Rio de Janeiro, chamado por Nicolau Sevcenko de “repórter
dos novos tempos” (SEVCENKO: 1998, 541). Estes novos tempos referiam-se ao
período da chamada Belle Époque
carioca, do arrivismo, do encilhamento e das revoltas populares. Dentre outras
obras, escreveu “As Religiões do Rio” dedicando seus capítulos ao mosaico de
cultos presentes na vida urbana da capital da República. “O Rio, como todas as
cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada
homem uma crença divina” (1951, p. 9).
Sua perspectiva é a de um observador
surpreso ante a variedade das crenças e dos mistérios em que os indivíduos
acreditavam. O espanto diante da diversidade religiosa levou-o a constatar que
o país não é tão “essencialmente católico” como se poderia imaginar. “... A
cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar” (1951,
p. 10).
Em seis capítulos, o autor dissertou
sobre o que chamou de “o movimento evangélico”. Se os “vários capítulos
dedicados ao mundo dos orixás e babaloxás [revelam] de forma inequívoca a
importância que estes haviam adquirido na cidade do período” (CHALOUB: 1996, p.
142), o mesmo pode-se dizer do “movimento evangélico”. O “inquieto” jornalista
citou as principais igrejas e instituições deste universo religioso já
estruturado e enraizado no Rio de Janeiro. A maneira de sua abordagem e estilo
constituíram um texto elucidador do funcionamento interno do protestantismo bem
como da visão “de fora para dentro” que recebia.
Em outras palavras, João do Rio
proporciona uma interpretação pelo viés de um jornalista “desinteressado” na
religião mas “interessado” em relatar a religiosidade efervescente nas ruas e
no cotidiano do Rio de Janeiro. O protestantismo é visto como um movimento
plenamente inserido no contexto urbano e entendido como coeso e crescente,
marcado pelor rigor da ética e dos gestos. Seu tom é irônico e cético mas
retoricamente positivo às ações deste protestantismo. Descrevendo a assistência
de um culto protestante, João do Rio diz:
Pelos
bancos uma sociedade complexa, uma parcela de multidão, isto é, o resumo de
todas as classes. Há senhoras que parecem da vizinhança, em cabelo e de matineé, crianças trêfegas, burgueses
convictos, sérios e limpos, nas primeiras filas, operários, malandrins de
tamanco de bico revirado, com o cabelo empastado em cheiros suspeitos, soldados
de polícia, um bombeiro de cavanhaque, velhas pretas a dormir, negros atentos, uma
dama de chapéu com uma capa crispante de lentejoulas, cabeças sem expressão, e
para o fim, na porta, gente que subitamente entra, olha e sai sem compreender.
O templo está cheio. (p. 116)
Algumas passagens e depoimentos
registram as leituras e percepções do protestantismo, representações
construídas de dentro para fora e de fora para dentro. Em tempos de afirmação
da República e de concorrência com o catolicismo enfraquecido na sua posição no
campo político, o discurso do mais antigo pastor protestante vivo, João Manuel
Gonçalves dos Santos, da Igreja Evangélica Fluminense, é relevante:
A única religião compatível com a nossa República é exatamente o evangelismo cristão. Submete-se às leis, prega o casamento civil, obedece ao código e é, pela sua pureza, um esteio moral. A propaganda torna cada vez mais claras essas idéias, no espírito público aos poucos se cristaliza a nítida compreensão do dever religioso. Os evangelistas serão muito brevemente uma força nacional, com chefes intelectuais, dispondo de uma grande massa. E, de repente, com convicção, o velho reverendo concluiu: - Havemos de ter muito breve na representação nacional um deputado evangelista. (pp. 97,98)
O depoimento mostra com clareza o
projeto protestante para a nação e suas estratégias de conquistar espaço
nacional. Estes se dariam pela conjunção entre religiosidade, intelectualidade
e política na figura profética e messiânica do evangelista.
João do Rio nos permite, através de seus
olhares, perguntar pela relação entre protestantismo e cultura brasileira. Pois
são outros níveis de percepção deste encontro que nos interessa registrar. O
protestantismo como um todo não foi tomado como um quisto na sociedade. Antes,
diz o jornalista:
o protestantismo
trouxe para os nossos costumes latino-americanos não sei se a pureza da alma,
de que o mundo sempre desconfia, mas o asseio inglês, o regime inglês, a
satisfação de bem cumprir os deveres religiosos e de viver com conforto. (p.
101)
O protestantismo seria uma religião
asseada, metódica, intelectualizada e possivelmente ética, tendo o inglês como
padrão cultural. Ou seja, a sua contribuição era mais cultural do que religiosa.
Quanto à figura dos evangelistas categorizadas por Santos, João do Rio os
identifica de outra forma à cultura nativa, sobrepondo as representações que
tinha sobre o brasileiro: “Não há como os evangelistas e os evangelistas
brasileiros, para gentilezas. À bondade ordenada pela escritura reúnem essa
especial carícia do brasileiro, que, quando quer ser bom, é sempre mais que
bom” (p. 102).
Três momentos rituais vivenciados pelo
protestantismo foram registrados por João do Rio. O culto batista foi assim
analisado por ele:
Sem
o perfume dos hinários e sem aquelas letras negras na parede, a gente está como
se estivesse numa aula de canto do Instituto de Música, ouvindo o ensaio de um
coro para qualquer cêche mundana ...
(p. 117).
A fronteira entre o sagrado e o profano é
muito tênue diante da racionalidade do ambiente e dos discursos. Uma cerimônia
de casamento realizada na Igreja Metodista foi detalhadamente descrita e, no
fim, comparada ao evento no catolicismo:
Estava terminada a cerimônia. Houve um movimento, como nos templos católicos, para felicitar o feliz par, capaz de jurar em tão pouco tempo tantos juramentos de eternidade. (...) Eu assistira a um casamento sensacional (p. 108).
Por fim, a eucaristia na Igreja
Evangélica Fluminense, ao descrever um ambiente obscuro, silencioso, austero e
cerimonioso:
Sentei-me
humilde no último banco. Como nos evangelhos, eu via os homens darem de comer o
pão de Deus, e darem a beber o sangue de Jesus. Era tocante, naquele mistério,
na paz da vasta sala, quase deserta. E, com gula, a cada um que eu seguia no gozo da suprema felicidade, parecia-me
ver o seu olhar, - o olhar, a janela da alma! – voltar-se para o céu na certeza
tranqüila de um repouso celeste (p. 97).
João do Rio particulariza cada uma das
igrejas com sua história e formas de governo, mas pressupõe uma noção de
conjunto das ações e do espírito
deste protestantismo. Talvez esta percepção tenha sido reafirmada pela visita à
Associação Cristã de Moços (A. C. M.) e o depoimento ouvido pelo seu
presidente.
Você não terá uma idéia integral do movimento das cinco igrejas evangélicas do Rio sem ir apreciar de perto o capitel magnífico dessa coluna de branco mármore. A A. C. M. é o remate admirável da nossa obra de propaganda. (...) A Associação é o capitel, é a razão de ser da futura propaganda, é o centro do evangelismo, a maneira eficaz por que todas as igrejas evangélicas demonstram na sua perfeita integridade a vida do cristão. (pp. 121,127)
Pela A. C. M., o protestantismo reafirmava-se ao mesmo tempo numa unidade de propósitos éticos comuns e como instrumento proselitista. Visava demonstrar um padrão ideal do homem religioso, humano e cidadão. As aspirações e os ideais religiosos eram conciliados com as atividades do mundo secular forjando uma cultura do lazer, do físico e do espiritual. Era o capitel de um projeto ideal de ser humano e de sociedade, contraposto de forma superior às alternativas que a sociedade teria.
Mas a A. C. M., conforme descrita pelo nosso jornalista, nos permite entrever como o “mundo” protestante se articulava internamente por meio de agentes oriundos dos diversos segmentos do protestantismo carioca. Estes agentes dedicavam tempo, recursos e idéias em função de seus empreendimentos comuns. Constituíram-se numa rede de sociabilidades com suas práticas e ações por meio de instituições e de publicações. Outra instituição representativa deste capitel evangélico, muito importante ao protestantismo republicano, foi o Hospital Evangélico que contou com os mesmos agentes financiadores e motivadores.
Reconstruir estas instituições
representativas do protestantismo republicano por meio das redes de
sociabilidade de seus agentes, torna-se um passo fundamental na pesquisa sobre
o protestantismo no Brasil.
No dia 30 de setembro de 1918, foi
publicado na cidade de São Luis, Maranhão, o terceiro número do Jornal O Correio Evangélico, já no seu quinto
ano de circulação. O periódico não declarava de qual denominação protestante
pertencia mas era editado pelo protestante de nome Araújo Jorge. Era, por certo, uma publicação independente que
buscava ampliar seus leitores como não era raro na época. Talvez aí esteja a
razão de sua fraca regularidade de três números em cinco anos. Araújo Jorge era
um protestante com recursos próprios que editou um jornal independente mas
organicamente identificado com o protestantismo de seus dias.
Podemos ilustrar esta coincidência da presença protestante no
momento de modernização da cidade de São Luis com uma fonte representativa do
discurso interno do protestantismo das primeiras décadas do século XX. Ao invés
de tomarmos como ponto de partida a conjuntura e as relações macro-estruturais
que compõem o contexto de insurgência do protestantismo, optamos partir de um
dado, de um detalhe, de uma pista. O protestantismo já contava com um universo
significativo de publicações internas nesta época, fossem elas institucionais
ou de iniciativas individuais como os jornais O Cristão e O Estandarte.
Este material apresenta-se como fonte fértil de pesquisa e análise históricas. A Imprensa Evangélica, foi fundada pelos
presbiterianos Simonton e Blackford no Rio de Janeiro e teve um significativo
tempo de circulação, de 1864 a 1889.
O Correio
divulgava a mensagem protestante, e anunciava o preço de publicações
religiosas como bíblias, hinários, cálices para a eucaristia e panfletos
apologéticos e proselitistas comuns a todos os ramos das igrejas protestantes.
Observando o seu conteúdo e a sua apresentação, podemos perguntar qual era a face com que o protestantismo se
mostrava à sociedade maranhense no início do século passado. Em outras
palavras, qual foi a representação deste segmento religioso numa dada conjuntura,
tomada a partir de seu discurso e de seus códigos. Esta percepção nos servirá como ponto de partida
na compreensão mais ampla do esforço de ajustamento e de inserção que o
protestantismo vivia, não somente na capital maranhense mas em outras cidades
nas primeiras décadas do século XX.
Nos anos da edição do Correio Evangélico (as décadas de
1910/20), a fé protestante - ou seja, quase todas as igrejas e movimentos
para-eclesiásticos do protestantismo europeu e norte-americano - já estava
estabelecida no Brasil através de agências missionárias, templos erigidos,
corpos estabelecidos de lideranças eclesiásticas, instituições de ensino
secular e teológico. Esta presença já tão estabelecida representava um paradoxo
entre a sua limitada expressão numérica e sua força simbólica por meio de suas
instituições e publicações. As comunidades protestantes encontravam na condição
de minoria as forças para se afirmarem nos limites e no interior do sistema
maior e normativo (TURNER: 1974, p. 133-137). As denominações oriundas da
Europa e dos Estados Unidos tinham suas igrejas organizadas e com seus códigos
doutrinários definidos no solo brasileiro.
Sua primeira página trazia elementos
significativos e reveladores do processo de afirmação que o protestantismo adotou
na sociedade brasileira. O título está ladeado pela figura de um carteiro entregando um envelope com as
palavras "Quem dizer",
indicando uma mensagem a ser entregue, e segura com outra mão um outro conjunto
de envelopes. Em torno deste título, estão reproduzidos os mais modernos meios
de transporte e de comunicação da época: o telégrafo, o trem, o navio e uma
rede de fios de energia elétrica. A afinidade com estes meios modernos e
recentes de comunicação tornava a mensagem a ser entregue relevante e à frente
de todas as outras.
No centro e abaixo do título um
funcionário dentro de uma sala está rodeado de sacolas contendo mais
correspondências e outro dizer aparece: "Novas
de grande alegria". O universo protestante se reproduz com o sentido
de uma fé que se amolda e se propaga através do trabalho, da racionalidade, do
pragmatismo e da eficiência. Não há a representação de figuras comuns de uma
religião cristã tradicional como um templo, a Bíblia, o símbolo da cruz ou
mesmo um sacerdote. Esta ausência parece indicar o esvaziamento do sagrado e a
identificação com uma modernidade que traz em si a secularização, que dispensa
a piedade e racionaliza o sobrenatural.
Em outras palavras, este protestantismo
se mostrava dentro de um escopo deísta onde o mundo do progresso funcionava por
si mesmo sem a ingerência diretamente divina. Nele, o sagrado se reduziu a um
discurso que traz felicidade. Mas este não era, ao que parece, o discurso das
instituições e das Igrejas, mais dogmático e combativo aos erros da Igreja
Católica e demarcador de uma identidade mais particularista de cada segmento.
O deísmo do jornal se confirma pelo que
vem logo abaixo de toda esta representação, uma foto do intelectual Joaquim
Nabuco sentado com um livreto ou uma revista ao colo. A passagem bíblica ao seu
lado indica o propósito missionário do jornal e da fé reformada que era
acolhida por uma das principais figuras da política nacional. Nabuco,
embaixador do Brasil nos EUA desde 1905, havia escrito em 1909, uma carta para
o provável editor do jornal, Araújo Jorge. O bilhete de Nabuco bem revela sua
postura deísta:
Brazilian Embassy,
Washignton, Outubro 10 de 1909
Meu caro amigo Dr. Araújo Jorge,
Não sei se posso agradecer o seu opusculo sem o ler, mas
hoje não leio mais sobre Jesus Christo sinão os Evangelhos e a Imitação. Fico
por isso a espera de outro trabalho seu em que a Revelação não esteja em causa,
para lhe dizer tudo que penso do seu brilhante talento.
Seu muito sinceramente,
Joaquim Nabuco
A propaganda protestante estaria, então,
respaldada pelo pronunciamento respeitado de um intelectual como Nabuco, embora
já falecido em 1910. O protestantismo visou atrair as elites para si
mostrando-se moderno e identificado com as mais recentes tecnologias. Aceito
pelas elites, distanciou-se das camadas mais baixas da população. Mas o fato é
que também o catolicismo passou por um processo de mudanças semelhante ao
esforçar-se por reencontrar seu lugar na sociedade depois de sua separação do
Estado.
Tão somente, o catolicismo não poderia apropriar-se
deste discurso de afinidade com a modernidade devido aos seus posicionamentos
contrários ao espírito de sua época secularizada (MICELI: 1988, p. 12). Os
caminhos foram outros. Ambos distanciaram-se das camadas mais pobres visando as
elites políticas e intelectuais. Estas camadas mais pobres da população
permaneceram na prática das devoções mais populares herdeiras do legado
colonial ou acolheram o pentecostalismo nascente a partir de 1910. A
experiência religiosa popular, no entanto, não se reduziu a estas duas
vertentes somente.
No conjunto das representações do
protestantismo no Brasil a presença de uma iconografia parece bem reduzida. Símbolos
e ícones foram sempre negados e identificados com o cristianismo deturpado do
catolicismo. A proibição aos protestantes da utilização de formas que se
assemelhassem à religião oficial do Império, sobretudo as fachadas dos templos
com o sino e a cruz, aliou-se à crítica radical feita pelos primeiros missionários
ao catolicismo “idólatra” com seus santos e imagens. O protestantismo brasileiro
constituiu-se pobre de símbolos, preservados somente na aplicação dos
sacramentos, um reducionismo racionalizado da mística cristã.
A presença do quadro dos Dois Caminhos no corpo do protestantismo
brasileiro, utilizado pelas diferentes denominações torna-se uma importante
exceção a ser analisada. Embora ainda desconheçamos sua origem e autoria, bem
como por quem, quando e como foi introduzido no Brasil, o quadro nos traz
instigantes questionamentos relativos aos pensamentos e às imagens cultivados
pelo protestantismo. Trata-se, portanto, de uma primeira tentativa de abordagem
de uma iconografia introduzida e incorporada pelo protestantismo brasileiro. Tanto
quanto analisar sua riqueza de sentidos e vinculações históricas, a pergunta
pelos seus efeitos concretos na prática religiosa e social torna-se mais
central. Em outras palavras, como este quadro foi lido e traduzido pelos crentes e transformado em visões de
mundo e práticas sociais. As possíveis respostas iluminariam a questão da relação
entre protestantismo e cultura brasileira.
O quadro retrata dois caminhos opostos e
se estrutura na perspectiva da oposição entre duas possibilidades inconciliáveis,
embora intercambiáveis, de vida. À direita se projeta o caminho estreito com
sua entrada dificultada pela porta pequena na altura e na largura. Além de
indicar o custo da opção pela porta da salvação, o caminho estreito se contrapõe
ao largo com todas as suas facilidades. As oposições e os contrastes afloram
nas figuras. O quadro contrasta as instituições do mundo do prazer (prostituição,
jogo, teatro, bebida, o luxo, a dança) às do mundo religioso (templo e edifícios
religiosos). No fim de cada caminho há dois destinos opostos, céu e inferno,
representados por imagens mais coloridas que o tom sombrio geral do quadro.
Vênus (deusa da formosura, do amor e dos
prazeres) e Baco (deus do vinho), dão as boas vindas aos que entram no caminho
largo à esquerda, representantes do paganismo antigo revivido na modernidade
secularizada. O mundo protestante radical e puritano se vê à margem do outro
mundo em suas extravagâncias sensuais, sofrendo as conseqüências da violência, do
suicídio e da guerra. Ele se identifica mais com as cenas campestres e rurais
contrapostas ao mundo urbanizado e suas tecnologias. A ênfase no caminho largo
está mais centrada na questão moral e suas práticas. Ausentes estão instituições
financeiras e políticas, bem como outras religiões. A perspectiva é puritana,
rural e apocalíptica. Se no caminho largo há multidão, no caminho estreito há
solidão. Neste está representado o esforço do peregrino que solitariamente
trilha sua sina de sofrimento e tentações até chegar ao seu destino final, o céu.
O ideal puritano na figura de
personagens em peregrinação remete-nos ao clássico da literatura protestante
escrito por John Bunyan (1629-1688), pregador batista de Bredford, Inglaterra. O Peregrino é uma alegoria da conversão
e da vida cristã, tornou-se um dos livros mais extensamente lidos da língua
inglesa e depois traduzido para vários idiomas (LATOURETTE. 1977, p. 182).
Bunyan escreveu durante o período da
crise da monarquia inglesa, do protetorado republicano de Cromwel (1649-1658) e
da Restauração. Intensas conturbações sociais e conflitos políticos ligavam-se às
tendências em conflito do protestantismo
inglês. A definição do modelo político estava ligada à definição do modelo
eclesiástico, daí o intenso debate incluir questões teológicas e políticas. Bunyan
representa o pensamento do puritanismo radical comum às tendências mais
populares e dos setores médios da sociedade britânica, em oposição ao
anglicanismo aliado à aristocracia e à coroa. Os movimentos independentes deste
protestantismo radicalizavam seus discurso e prática em oposição ao clero
anglicano, amparados pelos comerciantes e burgueses.
Azevedo (São Paulo: 1996, p. 177)
utiliza o termo peregrinismo para
descrever o espírito forasteiro do protestantismo. Vai além ao afirmar que “o
peregrinismo é uma visão histórica ... um tipo de dualismo apocalíptico, no
qual existe um plano de Deus para cada pessoa; este plano já é dado: ele
preexiste às decisões de cada um na história. (...) Esta visão de mundo está
inscrita no protestantismo universal ...” (p. 177). Junto com o anticatolicismo
desenvolvido no Brasil, o peregrinismo
começou a fazer parte do protestantismo brasileiro a partir das traduções
feitas por Robert Reid Kalley na segunda metade do século XIX (AZEVEDO. p. 187
e RIBEIRO. São Paulo: 1981, p.106). O
Peregrino está, segundo Azevedo, entre as dez obras mas significativas e
importantes publicadas no Brasil no contexto protestante (p. 207).
O texto e o quadro parecem haver
estruturado um projeto e um ideal de protestante para o olhar do brasileiro
converso. As prédicas dos líderes religiosos e missionários reafirmavam este
ideal baseadas na teologia pietista e nos avivamentos. Por certo, o discurso
protestante acrescentou novas práticas “mundanas”, típicas da paisagem e da
cultura brasileiras, ao conjunto do caminho largo; tais como o carnaval, a
praia, o fumo, a música e mais tarde o cinema e significativamente o futebol.
A negação destas práticas teve uma
motivação moral e religiosa. Ela foi identificada como uma negação à cultura brasileira
e uma incorporação da cultura anglo-saxã. Diferente da ética protestante
vivenciada na Europa e nos Estados Unidos,
... no Brasil, a
ética protestante é interiorizada e individualizada. O fiel recorre à disciplina
comportamental não para transformar o mundo, mas para dominar-se e reprimir-se.
Ele tem consciência de que é diferente e de que o mundo seria bem melhor se
todos fossem iguais a ele (VELASQUES FILHO. São Paulo: 1990, p.210).
Se esta ética foi assim estabelecida no
Brasil com perspectivas diferentes do modelo histórico “original”, isto já
indica uma reapropriação deste modelo a partir de outras referências culturais.
Negar elementos de uma cultura não significa deixar de pensar e agir como esta
cultura sob outras referências mais estruturantes ao nível do inconsciente
coletivo. A reapropriação de um modelo no processo da incorporação cultural já
pressupõe um percurso de releitura, embora a forma seja reproduzida enquanto cópia.
Ao responder a questão referente à relação
entre protestantismo e cultura brasileira, adotamos procedimentos que julgamos
serem passos necessários para nossa pesquisa. Partimos da noção de representação e analisamos o discurso literário,
o jornal e a iconografia.
O paraíso
aparece na literatura de Montello e no quadro dos “Dois Caminhos” como o
destino final da jornada do fiel protestante. Mais do que uma esperança futura,
o paraíso correspondeu a questões práticas e culturais no âmbito do cotidiano e
das relações sociais. Em função dele, foram conformadas as ações e as visões
religiosas de mundo. Posturas, gestos, rupturas culturais e religiosas,
tornaram o protestante visível no campo social. O Jornal O Correio Evangélico, por sua vez, é representativo do
posicionamento protestante afinado à modernidade e suas tecno-ideologias do
progresso. O paraíso bem que poderia ser construído aqui mesmo.
O protestantismo pode ser vislumbrado
como um conjunto de práticas e mentalidades que atravessavam todos os seus
ramos. Poderiam estar reunidas em instituições, verdadeiros capitéis de um
ideal de sociedade e de indivíduo projetado pela religião reformada. Mas foram,
ao mesmo tempo, espaços convergentes das ações de uma rede de relacionamentos
por parte de agentes responsáveis pela sua manutenção. Como “intelectuais orgânicos” do movimento
religioso, ele foram gestores financeiros do universo protestante em formação.
As primeiras duas décadas do século XX,
além das mudanças do posicionamento da Igreja Católica no campo político e
religioso no Brasil republicano, viram, portanto, o protestantismo alcançar
novas posições no campo religioso.
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