A Romanização no
Sul do Mato Grosso (1910 – 1940)
Jérri Roberto Marin [1]
Unesp
Este artigo tem como objetivo analisar as especificidades
do processo de romanização[2]
da Igreja Católica na região sul-mato-grossense, durante a República Velha, a
partir da criação da diocese de Corumbá, em 5 de abril de 1910.
A diocese de Corumbá se localiza numa região de fronteira
entre o Paraguai e a Bolívia.[3] Esse aspecto gerou inúmeras especificidades
ao processo de romanização da Igreja Católica. Os paraguaios e bolivianos,
buscando melhores oportunidades, cruzam as fronteiras e trazem sua cultura.
Brasileiros cruzam a fronteira e freqüentam escolas e colégios no Paraguai. No
ir e vir, muitos aspectos culturais foram assimilados, reelaborados e fundidos.
“O Paraguai, individualizado, talvez já
pronto, é extravazante; o Brasil, absorvente, digeridor, vai assimilando todos
os elementos, para se plasmar definitivamente”.[4]
Reunido vários elementos culturais, sem desprezar e hierarquizar nenhum
aspecto, formou-se uma nova linguagem resultado da fusão de todas as
contribuições. As paraguaias foram rebrasileiradas como reporta João Guimarães
Rosa em Sanga Puytã.
“Onde só se bebia
mate e se bailava ao som da polca e do santa-fé, passaram a tomar café e dançar
samba. “O Paraguai está recuando...”- dizia alguém, jovialmente, como se
comentasse uma partida de esporte. Mas tudo se passa num estilo harmonioso,
convivente. Em Dourados, uma mulher mostra seu filho, menino teso como
guaicuru: - ‘Paraguayo, no Brasilerito!...’ “.[5]
A criação da diocese de Corumbá insere-se no processo de
romanização do catolicismo brasileiro e de estadualização do poder
eclesiástico. Pela bula pontifícia “Novas Constiture” do Papa Pio X, de 5 de
abril de 1910, foram criadas as dioceses de Santa Cruz de Corumbá, e de São
Luiz de Cáceres desmembrando a diocese de Cuiabá que foi elevada à Arquidiocese
e Sede Metropolitana. Os motivos que levaram à divisão foi o isolamento da
Igreja no Mato Grosso (separada da Igreja Brasileira), a vastidão territorial
sujeita à jurisdição da diocese e as condições geográficas adversas à atividade
pastoral que tornavam impossível o atendimento espiritual e a evangelização das
populações dispersas pelo interior. Contribuiu também o limitado número de
sacerdotes, muitos sem o zelo necessário para exercer suas obrigações. A nova
diocese, através do incremento religioso, deveria acompanhar o progresso já
observado nas dioceses dos demais Estados brasileiros.
O sul de Mato Grosso, por ser uma região de fronteira,
vivendo em constantes lutas, guerras, gerou uma sociedade militarizada em
virtude da defesa do território, das fronteiras geográficas e pela luta da
posse da terra. A sociedade formou-se em torno do latifúndio, voltada à
atividade pastoril e extrativa. Devido a esta formação histórica, predominava,
na região, um indiferentismo religioso, uma mentalidade e uma opinião pública
anti-religiosa e anti-clerical. Havia pouca predisposição por parte dos homens
e das mulheres em internalizar as normatizações do catolicismo e de manifestá-los
publicamente. Outro aspecto que deve ser considerado é o isolamento da
população (“embrenhadas nas matas e
vivendo na ignorância”) e a falta de assistência religiosa aos católicos
por falta de padres. Para Melo e Silva,
“o nosso pioneiro mato-grossense do sul não exteriorizava em qualquer das
manifestações de sua vida rústica, o menor vislumbre de sentimentalismo cristão”.[6]
Essa irreligiosidade se manifestava principalmente na recusa em exteriorizar a
fé católica expressa nas práticas sacramentais. Por outro lado, havia uma
religiosidade popular, independente do controle clerical, autônoma que se
manifestava nas festas religiosas. Essas eram mais profanas do que religiosas e
se realizavam sem o aval da autoridade eclesiástica, que não tinha a menor
interferência na organização e direção das mesmas. Os leigos não prestavam
contas ao pároco e nem seguiam as determinações canônicas relativas à
organização das festas.[7]
Diferentemente das demais dioceses do Brasil, o projeto de
romanização na região sul-mato-grossense foi específico. Enquanto nas demais
dioceses apresentavam sinais de revitalização religiosa e a romanização
alcançava os primeiros resultados, o cenário religioso da diocese de Corumbá
permanecia inalterado. Em suma, observou-se um descompasso entre a realidade
religiosa da diocese de Corumbá em relação a maioria das dioceses brasileiras.
A criação da diocese não implicou em mudanças significativas a curto prazo, nem
na organização da instituição, como da religiosidade da população.
É significativo, no período em apreço, o grande número de
bispos que foram nomeados para a diocese e o pequeno período de tempo que cada
bispo permaneceu na sua administração. Na Sé de Cuiabá, por exemplo, os bispos
permaneciam por um longo período de tempo (Dom Carlos Luiz D’Amour permaneceu
por 43 anos e Dom Francisco de Aquino Corrêa por 35 anos). Administrar uma
diocese numa terra longínqua, isolada e com um clima excessivamente quente,
assolado por freqüentes epidemias, parecia não estar na preferência dos bispos
que sonhavam com a sua transferência. A permanência em Corumbá deveria ser
apenas por um período breve, mesmo assim insuportável.
O primeiro bispo foi Dom Cirilo de Paula Freitas (1912 –
1918); o segundo Dom Helvécio Gomes de Oliveira (1918, foi transferido antes da
nomeação); o terceiro bispo Dom José Maurício da Rocha (1919 – 1927); e o
quarto Dom Antônio de Almeida Lustosa (1928 – 1931). Portanto, a diocese ficou
vacante por duas vezes por um período de dois anos cada. E nem sempre o mandato
era cumprido na sede do Bispado. Dom José Maurício da Rocha, por exemplo, cujo
governo foi maior que os demais, ausentou-se constantemente do bispado,
deixando um padre como encarregado do expediente da Câmara Eclesiástica em
Corumbá.
Todos os bispos nomeados para a diocese de Corumbá eram
ultramontanos, portanto mais ou menos zelosos na condução dos assuntos
eclesiásticos. Porém, a situação da diocese era considerada ruim por todos os
bispos. Não tinha clero para atender todas as necessidades, nem recursos de
ordem material para garantir as necessidades econômicas do bispado e das
paróquias, pois não tinha vida religiosa que pudesse gerar rendas. Os padres
eram mal vistos, desprezados, e desconfiava-se das suas intenções. Muitas
vezes, eram dirigidos aos padres expressões de escárnio. Contribuiu para isto o
comportamento de alguns padres menos zelosos e outros que abandonaram o
sacerdócio e mudaram de religião. Segundo o padre Archangelo Lanzillotti, no
relatório da Paróquia de Santo Antônio de Campo Grande, “a libertinagem pagã reinava no povo; na igreja era uma verdadeira
algazarra”.[8] A
principal tarefa era homogeneizar as práticas religiosas, enquadrando-as
segundo o modelo europeu sacramental e clerical. As práticas do catolicismo
popular consideradas pelos agentes romanizadores como “ignorância” religiosa a
serem extirpadas, eram freqüentes, agravadas pelo indiferentismo religioso
predominante. As paróquias não tinham vida espiritual. As igrejas eram, em sua
maioria, taperas, e houve casos de criação de várias paróquias, sem ter, ao
menos, uma capela na sede da mesma. Os fiéis não sabiam se comportar
adequadamente na Igreja, os sacramentos não eram praticados. O casamento civil
sem o religioso era comum e poucos leigos preocupavam-se em realizá-lo. Na
região sul-mato-grossense, a autoridade dos padres não era aceita pelos leigos,
e estes não os reconheciam como condutores, como líderes autênticos. Esta
autonomia não era aceita pelo modelo de catolicismo romanizado, que procurava
destituir os leigos de toda e qualquer autonomia submetendo-os à esfera
clerical. Agravava a situação a concorrência que a Igreja Católica enfrentava
na região do protestantismo, do espiritismo, do candomblé, da umbanda e das
práticas de feitiçaria que encontraram todos, na região, inúmeros adeptos.
Dom José Maurício da Rocha (terceiro bispo da diocese de
Corumbá) ao assumir, em 12 de outubro de 1919, a diocese, esta já estava criada
há nove anos e, no entanto, encontrava-se no estado “mais primitivo que se possa imaginar”. [9]
Dom José afirmava que a religião era a maior necessidade da sua diocese.[10]
Em 1919 determinou, cumprindo um dever episcopal, que fosse celebrado na
catedral missas pela manhã e à noite, aos domingos e dias santificados,
realizando também conferências sobre a importância das práticas sacramentais.
Dom José percebeu imediatamente que em Corumbá, sede do bispado, a população
não freqüentava as cerimônias religiosas e nem praticava os sacramentos. Referindo-se à situação da religião na sede
do bispado e da diocese Dom José afirmou que “se o estado espiritual da catedral era este, fácil é concluir quanto
ao resto da diocese”[11].
A diocese não tinha constituído um real patrimônio
diocesano, nem um palácio episcopal (tendo de alugar provisoriamente uma casa),
o movimento na secretaria do bispado era nulo, pois nas sete paróquias
existentes apenas duas estavam providas de párocos. Segundo Dom José “numa diocese tão vasta, contando somente
dois vigários, não é possível houvesse vida espiritual. E não a havia com
effeito”[12]. A
extensão territorial da diocese (450.000 km2),
as distâncias entre as paróquias, a ausência de padres, de uma assistência
religiosa permanente e a mentalidade anti-religiosa parecem ter sido os maiores
obstáculos. A população estava dispersa numa vasta extensão territorial, com
poucas vias de acesso. O pároco ficava impossibilitado de percorrer toda sua
paróquia, assim como os leigos que para batizar uma criança ou realizar um
casamento tinham que percorrer de 80 a 90 léguas a cavalo, canoa ou carro de
bois.
Por pressões institucionais, os bispos criavam paróquias
sem que tivesse igreja ou capela e um padre para provê-la. Devido a
inexistência de um clero secular, por ocasião da criação da diocese, e a
impossibilidade de constituir um clero numeroso a curto prazo, dadas às “especialíssimas condições da região”13 , o episcopado depositou no clero
regular a tarefa de cristianizar a diocese, pois considerava que o clero
regular seria o único que poderia ter êxito, diante de tantos problemas e
dificuldades, nos trabalhos apostólicos. Por outro lado, era considerado
aconselhável que as paróquias fossem entregues a várias congregações religiosas
e não somente a uma[14].
Destacou-se na atuação da diocese a atuação dos padres Salesianos e
Redentoristas. Também havia a presença de Congregações religiosas femininas
como as irmãs Filhas de Maria Auxiliadora. A presença do clero regular
amenizava em parte os problemas, pois mesmo assim a maior parte das paróquias
estava privadas dos serviços religiosos. Era comum o mesmo padre atender duas
paróquias. A maioria da população
sul-mato-grossense, pelo fato de estar dispersa pelo interior, ficava sem
nenhuma assistência religiosa.
O pequeno número de paróquias com padres e a pouca
freqüência da população às práticas sacramentais geravam problemas para que a
diocese constituísse um patrimônio diocesano. O bispo não tinha residência
própria, e não havia rendas na secretaria do bispado, pois a diocese tinha
apenas dois vigários e estes enfrentavam o mesmo problema. Os dízimos e as
taxas não eram pagos pelos fiéis, e as paróquias e a secretaria do bispado não
registravam nenhum movimento religioso. A constituição de um patrimônio
diocesano que garantisse fontes de rendimento e um acúmulo patrimonial era
prioritário, porque possibilitaria o estabelecimento de obras, serviços e de
instituições na diocese. Com dificuldades de sobrevivência, Dom José ameaçou de
se retirar de Corumbá, em 1923, e propôs transferir a sede da diocese para
Campo Grande, posteriormente fez uma consulta à Santa Sé para extinguir a diocese.
A Igreja se empenhou em mudar a mentalidade anti-religiosa
da região. Procurou atrair primeiro as mulheres e principalmente as crianças
para depois tentar o mesmo com os homens. Os párocos deveriam se esforçar para
que o maior número de fiéis se aproximasse da Igreja. Para tal, inúmeras
estratégias foram utilizadas. Entre elas destacam-se a construção e reforma das
igrejas; atrair Congregações Religiosas masculinas e femininas para a diocese;
constituir um patrimônio diocesano; catequizar as crianças e promover
conferências para os jovens e adultos; fundação de associações devocionais,
impor novos padrões litúrgicos e o catolicismo romanizado e sacramental;
realizar visitas pastorais às paróquias; e a realizar festas com procissões
religiosas para os santos que possuíam maior número de devotos. Com relação aos
casamentos, a Igreja procurou regularizar as uniões, realizando o ato religioso
com isenção das taxas pela realização. Os padres procuravam incutir nos fiéis
que o casamento religioso mais que uma formalidade era uma obrigação de
consciência. A principal estratégia era a de destituir os leigos de sua
autonomia e subtraí-la para o controle clerical. As associações devocionais
eram o espaço privilegiado para o controle decisório do clero. Porém esse
processo se impôs em outros aspectos do social, como o das festas religiosas.
Aquelas festas que não tivessem o aval
da autoridade eclesiástica não poderiam ser realizadas. Várias foram proibidas
por contrariarem a legislação eclesiástica.
Dom José Maurício da Rocha, ao se despedir da diocese em
1927, lamentava o insucesso dos empreendimentos realizados durante sua gestão.
Esses poderiam ser considerados irrelevantes, mas para a região, diante todos
os problemas enfrentados, as realizações eram significativas.
Em suma, a romanização na região sul-mato-grossense somente dará sinais de vitalidade na década de quarenta, quando aumentou significativamente o número de sacerdotes, como também de paróquias. A cristianização da região deveu-se também a grande presença de migrantes, em sua maioria católicos. Aos poucos uma nova mentalidade se criava, sem deixar de permanecer alguns elementos culturais da formação histórica.
[1]
Mestre em História pela UFRGS, doutorando na UNESP – Campus de Assis, Professor
da UFMS.
[2]
Esse processo é entendido como o “movimento de reeuropeização do Catolicismo de
características centralizadoras e sob a autoridade papal. É um movimento de
inspiração eminentemente hierárquica e clerical.” ARAÚJO, José Carlos Souza. Igreja Católica no Brasil: um estudo de
mentalidade ideológica. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 22.
[3]
Nos apropriamos do conceito de fronteira no sentido mais amplo do termo,
afastando-nos dos conceitos tradicionais que estão restritos a critérios
geográficos, políticos e até mesmo históricos. Quis-se pensá-lo numa dimensão
simbólica que ultrapasse inclusive aspectos concretos e localizados dos
fenômenos. Entendemos fronteira “como construção ideológica, traço cultural ou
conjuntos de fenômenos concretos extremamente diversos cujo único elo parece
ser, por vezes, o fato de pertencerem a um mesmo campo de representações”. Desta
forma, o termo fronteiras, quando concebido de forma ampla, defini-se como
aquilo que determina as relações dos elementos com seu espaço. A fronteira
enquanto espaço de divisa e de delimitação também demarca diferenças, afirma
identidades e origina novas necessidades de representação. CARVALHAL, Tânia
Franco. Comunidades inter-literárias e relações entre literaturas de fronteira.
In: ANTELO, Raúl (org.) Identidade e
representação. Florianópolis: UFSC, 1994. p. 93-102.
[4]
ROSA, João Guimarães. Sanga Puytã. In: Ave,
palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p. 19.
[5]
ROSA, João Guimarães. Sanga Puytã. In: Ave,
palavra. Rio de janeiro: José Olympio, 1978. p.19.
[6]
MELO E SILVA, José de. Canaã do Oeste.
Rio de Janeiro: Nacional, 1943. p. 58.
[7] O
BRASIL desconhecido. Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 29 set. 1929. Nº
218, p. 4.
[8] LANZILLOTTI, Archangelo. Relatório da paróchia de S. Antônio de Campo
Grande – Bispado de Corumbá (Estado de Mato Grosso) (27 de outubro de 1921 – 6
de junho de 1924), p. 1.
[9] O
BRASIL desconhecido. Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 29 Set. 1929. Nº218, p. 1.
[10]
ROCHA, Dom José Maurício da. Carta
Pastoral de Dom José Maurício da Rocha Saudando aos seus diocesanos..Maceió:
Typographia da livraria Fonseca, 1919. p.7
[11] O
BRASIL desconhecido. Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 29 Set. 1929. Nº218, p. 1.
[12] O
BRASIL desconhecido. Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 29 Set. 1929. Nº218, p. 1.
[13]
ROCHA, Dom José Maurício da. Carta
Pastoral de Som José Maurício da Rocha, bispo eleito de Bragança despedindo-se
da diocese de Corumbá..Maceió: Typographia da Livraria Fonseca, 1927.p.7.
[14] O
BRASIL desconhecido. Gazeta de Notícias,
Rio de Janeiro, 29 Set. 1929. Nº218, p.1.