Um Panteão nas Nuvens:
memória, identidade e projeto em Alceu Amoroso Lima: uma leitura a
partir de Companheiros de Viagem
Marcelo Timotheo da Costa[1]
I) INTRODUÇÃO
Neste texto, analiso a obra Companheiros de Viagem do pensador
católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983), livro marcado pelo elogio à
diversidade, característica muito exaltada na leitura de cristianismo que Alceu
acabou por privilegiar.
Feita in memoriam, evocando mortos - uma das manifestações mais antigas
da memória humana na História -, Companheiros
de Viagem encerraria apropriações interessantes dos conceitos de memória,
identidade e projeto da parte de Amoroso Lima.[2]
Finalmente, pensada também
como um Panteão imaginário, a obra em questão contribuiria na busca de
harmonização dos vários selves
encarnados por Alceu na sua longa trajetória, organizando e equilibrando
vivências bastante plurais. Algo que, a meu ver, mostra-se por demais
importante quando se tem em foco alguém como Amoroso Lima, um intelectual que
teve na admissão pública de seus câmbios um de seus traços mais recorrentes.
II) IN MEMORIAM - Companheiros de Viagem ou uma Visão do Paraíso
Esta seção pretende
direcionar a discussão de Companheiros de
Viagem[3]
para um campo bem definido. Quer-se demonstrar que o livro em questão, lido a
partir da religiosidade amorosiana, refletiria a visão do céu cristão segundo
Alceu.
CV é uma sucessão de necrológios - há mais de uma centena deles. Contudo, a obra não se restringe à coletânea memorialística, pautada em elogios fúnebres. Através destes, opera-se uma ascensão. Creio que Alceu, com base na sua fé, lança ao céu pessoas marcantes para sua trajetória terrestre.
Numa frase: acredito que estamos diante da comunhão dos
santos amorosiana - versão particular e adaptada para o homem do século XX
de um conceito cristão ao mesmo tempo antigo e familiar ao universo dos
crentes.
Há mais - e esta é uma
passagem extremamente relevante - CV, como leitura soldada pela memória e in memoriam, define também uma
determinada identidade e encerra um dado projeto.
Antes de desenvolver tais
questões, é preciso que exponha a anunciada interpretação de CV como a
representação do céu de Alceu.
II.1) A Reunião das Gentes
CV encerraria, então, uma
visão do paraíso. Leitura amorosiana sobremaneira marcada pela pluralidade -
característica, ademais, bem de acordo com a tradição cristã.[4]
Convém que se detalhe mais este ponto.
Em CV, há heterogeneidade em
relação aos mortos evocados que, ver-se-á, são das mais variadas extrações. Há
heterogeneidade também quanto aos motivos apresentados por Alceu para dispor
tais pessoas na sua polis celestial.
Aqui, em vez de indagações sobre a proveniência dos finados honrados na
referida obra, o foco se dirige às razões de semelhante escolha.
A discussão desta dupla
pluralidade ocupa as próximas linhas - que, penso, acabarão por compor um
roteiro possível para o estudo de CV. Ou, já em termos amorosianos, segue-se
uma tentativa de itinerário para o céu pensado pelo cristão Alceu.
II.2) Os Finados
Inicio pela diversidade do
paraíso amorosiano. Basta lançar um olhar para a lista organizada por Amoroso
Lima. Ela é, sem dúvida, eclética.
Lá estão, entre outros: a
babá do autor, Quiquina, filha de escravos. Dois pontífices romanos, Pio XII e
João XXIII.
João Kopke, o primeiro
mestre do menino Alceu, e Golschmidt, o professor de caligrafia. Pensadores
famosos, importantes para a formação intelectual do homem Amoroso Lima: Georges
Bernanos, Paul Claudel, François Mauriac.
Sacerdotes católicos como D.
Sebastião Leme e Leonel Franca. O pastor protestante Luther King.
Anônimos como o mordomo do
Centro D. Vital. Homens e mulheres de letras e artes: Mário e Oswald de
Andrade, Jorge de Lima, Afrânio Coutinho, Álvaro Lins, Cecília Meireles, Anita
Malfatti.
E tantos mais. Gente unida
pelo vínculo da morte e pela constatação que, de uma forma ou de outra, de
perto ou de longe, todos marcaram a peregrinação amorosiana por este mundo.
Eles foram, portanto, os “companheiros de viagem” de Amoroso Lima.
O inventário poderia
continuar. Mas não creio que seja necessária uma chamada mais exaustiva. Penso
ter ficado suficientemente clara a variedade - social, cultural, religiosa,
entre outros fatores - apresentada pelos finados notáveis do intelectual em
pauta.
II.3) Das Causas
Mas a heterogeneidade não se
revela somente na lista de falecidos reunidos em CV. Os critérios para a
escolha que efetuou seu autor também são muito ilustrativos. Devo, pois,
abordar como Alceu apresenta seus ilustres aos leitores. Mais uma vez, a ênfase
na diversidade mostrar-se-á bastante nítida.
Cabe refletir sobre o que
move Amoroso Lima na sua singular construção. Mais exatamente: o que faz de
determinados homens e mulheres não apenas dignos de menção, lembrança, mas
também de imortalização? Em outras palavras: o que faz Alceu dar assento a
certas pessoas no seu Panteão privado - espelho da comunhão dos santos cristã?
Se, como se viu, o grupo
“ungido” por Alceu é bem plural, os motivos para tanto são igualmente
ecléticos. Passo a elencar seus finados, valendo-me de algumas virtudes e/ou
características a eles atribuídas.[5]
Os de natureza “angélica”
Trata-se de uma
classificação freqüente em CV. Por meio dela, Alceu procura destacar que alguns
de seus mortos, dada sua pureza de alma, estariam inequivocamente com lugar
garantido junto a Deus, como os anjos. Prerrogativa, lembre-se, também dos
santos. Tem-se, aqui, a mais explícita afirmação de que alguns de seus
“companheiros” já seriam contabilizados na comunhão sobrenatural que aguardaria
os justos.
Eis alguns casos: Quiquina,
a babá que Alceu via como que “preservada do pecado original.”[6]
Já Wagner Antunes Dutra, funcionário do Centro D. Vital, surge como
“[…] a própria expressão da virtude segundo Cristo, a que passa no meio dos homens despercebida [...] Era um anjo entre nós […] foi o secretário e amigo, o confidente e o conselheiro, em quem confiamos mais que nós mesmos […] Vivia fazendo o bem.”[7]
Creio que a caracterização
deste grupo está bem nítida: são homens sobremaneira virtuosos - ou assim Alceu
os vê -, parecem estar acima da condição humana. Encerro a descrição dos mais
“etéreos” companheiros de Amoroso Lima com outro “ariel”, Jaime Ovale - que me
servirá, inclusive, para fazer a conexão com o grupo seguinte. Ovale, figura
complexa, funcionário da Aduana, boêmio, poeta e músico, é retratado como
“amigo dos anjos”:
“Não parecia uma pessoa real […] dotado de alegria inata […] nos deu […] a imagem do homem total […] era um testemunho vivo da naturalidade das coisas sobrenaturais, da realidade do invisível, da presença de Deus entre os homens.”[8]
A boemia de Ovale lança luz para outro grupo: os que conectaram
beatitude e alegria, seja através da atividade boêmia, seja por meio de um
discurso mais ligado à espiritualidade franciscana.[9]
Os boêmios seriam “anjos sem asas” para Amoroso Lima.[10]
Gente como Cláudio Ganns, professor de História na Universidade do Brasil:
“Tinha a alma
grande, aberta, arejada, luminosa dos verdadeiros boêmios […] não tinha hora
certa de entrar ou sair de casa, como ocorre sempre com esta espécie encantadora
de homens livres, pelos quais Deus deve ter uma predileção e uma
condescendência toda especial.”[11]
Como se vê, valorização da
alegria e jovialidade de espírito. Algo também discernível, já sob um registro
mais usual ao universo religioso, no franciscanismo de Alceu.
Neste rol estariam, por
exemplo, os amigos João Carlos Machado (dotado de “esplêndida mocidade de
espírito”[12]), Rodrigo Otávio Filho (em quem Alceu destacou
a radiosa felicidade) e o líder do grupo modernista Festa, Tasso da Silveira, que teria conectado religiosidade e busca
da alegria.[13] Todos
apresentando características relacionadas ao franciscanismo.
O céu amorosiano também está
habitado pelos que lograram harmonizar extremos. Objetivo, diga-se, que
Alceu considerava inerente ao homem.[14]
Há muitos neste caso: Paul
Claudel, J. Ortega y Gasset, Ewelyn Waugh, Augusto Frederico Schmidt. Este
último seria a mais completa tradução do citado ideal amorosiano.
“[…] nele, como em ninguém se tocavam realmente os extremos [… Schmidt era mesmo] composição de antíteses […] intelectualmente imponderável […] Integralmente poeta e integralmente homem de ação […] Oscilando sempre entre pólos opostos - a contemplação e a ação […] o patriotismo e o cosmopolitismo; o classicismo e o romantismo […] todos estes Schimidts que passaram, nestes trinta anos, por nossa vida, todos eles se encontraram afinal naquilo que foi o elo de todo esse mundo de contradições: o Poeta, que nunca separou Vida da Morte, nem o Vulgar do Sublime.” [15]
Destacados também são os
convertidos como Jackson de Figueiredo, tão importante para a conversão do
próprio autor de CV;[16]
Jacques e Raisa Maritain [17];
o padre Júlio Maria. Enfim, gente que, à semelhança de Alceu, trilhou o
“caminho de Damasco.”
Mas há espaço para os que,
diversamente de Amoroso Lima, não abraçaram credo algum. Grupo, por
exemplo, de Oswald de Andrade cuja postura hostil para com a religião é
transformada em virtude:
“O problema
religioso sempre foi nele [Oswald] uma obsessão. Seu ódio à Igreja e seus
sarcasmos constantes contra a Fé eram sua forma de amar a Deus!”[18]
Todavia, penso que a
presença mais representativa seria a de Simone Weil:
“Jamais conheceu a paz de espírito […] Ficou, até o último momento […] entregue ao tremendo e grandioso martírio de sua busca entre gemidos […].”[19]
Fracasso que, antes de ser
um interdito ao céu amorosiano, credencia Weil a ele. Constatação, convenha-se,
nada ortodoxa - ainda mais para um fiel tão inserto no seio católico como
Alceu.
Porém, o mais impactante
está por vir: Péricles Maranhão, criador do famoso personagem O Amigo
da Onça, é incorporado ao quadro de honra dos finados de Alceu. O que há de
tão admirável em tal fato? Maranhão suicidou-se, atitude vigorosamente
condenada pelo cristianismo. Gerações inteiras de católicos, a de Amoroso Lima
inclusive, foram criadas aprendendo que aos suicidas só restava a condenação
eterna.
Tônica que mudará
radicalmente no pós-Vaticano II. Mas o artigo amorosiano tem data de janeiro de
1962, nove meses antes da abertura dos trabalhos conciliares.[20]
Mesmo admitindo a existência de discursos menos rigorosos antes da renovação
conciliar, a ótica presente em CV causa espécie.
Amoroso Lima questiona a
voluntariedade de tal ato, classifica-o de “gesto supremo de desesperança” [21]
e, indicando o seu desfecho sobrenatural, lança Maranhão à Paz de Deus.[22]
Em outras palavras, Alceu não se mostra apenas compassivo para com Maranhão.
Junta-o a seus notáveis.
Tendo lembrado o angustiado
Maranhão, convoco agora outro grupo: os que souberam morrer. Aqui,
transparece um ideal piedoso cujas raízes remontam ao final da Idade Média: a
arte do bem morrer. Encontram-se neste caso os escritores Afrânio Peixoto -
este também indicado como um exemplo de harmonia de extremos - e José Lins do
Rego.[23]
Outro homem de letras, Jorge de Lima, exprime o que está em jogo: o passamento
virtuoso, modelar. Nas palavras de Alceu, Jorge “morreu como um santo.”[24]
Termino aqui esta proposta
de leitura para CV. Quis-se frisar que, por meio da obra em análise, Amoroso
Lima expôs sua interpretação do paraíso, enfatizando a pluralidade. Variedade -
consoante com a tradição do cristianismo - refletida na escolha dos celebrados
por Alceu e nos motivos por ele apresentados para tanto.
As seções seguintes tratam
de analisar, a partir da interpretação aqui defendida, CV com os conceitos de
memória, identidade e projeto.
III) MUITO ALÉM DO PANTEÃO
Começo com um dado que pode
parecer paradoxal: em CV, os mortos são mais festejados que pranteados. O tom
amorosiano é visivelmente comemorativo, apesar de recordar falecidos.
Característica essa muito
presente no cristianismo. Le Goff lembra não somente o caráter comemorativo do
culto cristão[25] como a
associação entre morte e festa no cristianismo: de uma maneira geral, a Igreja
celebra seus santos e mártires no dia presumido de suas mortes.[26]
O padre jesuíta e teólogo
Francisco Taborda vai além: ele sustenta que o cristianismo, ao valorizar os
acontecimentos pela celebração, liga os fiéis ao passado, sob a forma de
memória, e ao futuro, sob a forma de esperança.[27]
Em outras palavras, a partir
de determinada identidade (a cristã), uma certa memorialística é conectada a um
tipo bem específico de esperança, aquele expresso através de um projeto
remetido ao futuro. Creio que as implicações do que se disse são dignas de
nota.
A partir do exposto acima, a
análise de CV se abre, a obra ganha em profundidade: CV não reuniria apenas uma
multidão espectral. Feita in memoriam,
traduziria e expressaria uma identidade, encerrando determinado projeto. É
exatamente de memória, identidade e projeto que tratam as linhas seguintes.
Antes de seguir adiante,
cabe enfatizar a importância do que foi dito. Como advoga Gilberto Velho,
memória, identidade e projeto articulam-se, tanto individual como
coletivamente, de forma não linear e dinâmica.[28]
De particular relevo é a constatação de que, em sociedades complexas como a
nossa, memória e projeto ordenam e dão significado às trajetórias individuais,
contribuindo para dar consistência à individualidade em realidades
fragmentadas.[29]
Isto posto, gostaria de
analisar o trinômio em questão.[30]
III. 1) Memória
Sem dúvida, numa primeira
aproximação, a memória é mais evidente em CV - o que justificaria o destaque de
uma subseção para ela. Afinal, e como já se disse, esta é uma obra feita in memoriam; concebida como uma
estratégia para se vencer a morte, o esquecimento.
Mas a questão em absoluto é
nova. Manter a chama da memória acesa, vencer o tempo e seus efeitos. Desafio
já presente entre os povos antigos como egípcios, gregos e romanos.[31]
O anseio de imortalidade
aplica-se a todo tipo de realização humana - feitos heróicos, vitórias
militares, triunfos políticos, composições artísticas. Memória que aponta o
sublime, o extraordinário. Nos tempos atuais, como o sucesso das “Histórias da
Vida Privada” indica, o cotidiano e o comezinho também ganham destaque.
Desafio bem inculcado no
judaísmo e cristianismo, “religiões da recordação”, como oportunamente diz Le
Goff.[32]
Vão ao encontro desta afirmação, por exemplo, o Shemah judaico e a ceia eucarística que é repetida a cada missa.
Retorne-se a Amoroso Lima. Ele se lembra. Recorda não só seus
mortos. Descortina também os mundos a eles associados. E, no bojo de tal
exercício, evoca a si próprio também.
São questões que, penso, pedem desenvolvimento.
Alceu, por CV, memorializa
as gentes que influenciaram sua trajetória e a si mesmo. Sua evocação, por
exemplo, é também memória de sua geração, do catolicismo brasileiro
contemporâneo, da intelectualidade nacional, memória urbana do Rio de Janeiro -
cidade onde nasceu e viveu. Poder-se-ia elencar muitas outras memórias
possíveis. Ou, balizando-me em David Lowenthal, o passado como forma de
consciência é intrinsecamente pessoal - todavia, o “passado lembrado” é pessoal
e coletivo.[33]
As citadas dimensões coletivas
do passado alertam para o caráter plural da escrita memorialística, mesmo
quando aparentemente tão bem definida e limitada como em CV. Escrita que, à
semelhança da História, Lowenthal classifica de residual.[34]
O autor de The Past is a Foreign
Country frisa
ainda um interessante paradoxo através da belíssima metáfora utilizada no
título do livro: o passado é estrangeiro e íntimo. É distinto do presente e, ao
mesmo tempo, coexiste com ele. O tom é de incerteza, nebuloso. Ou, em termos
amorosianos, de mistério.[35]
Passado e memória,
fragmentados como se viu, assumem assim contornos de um mosaico. Concordando
com sua irresgatibilidade, quero aqui reunir algumas de suas pedras multicores
a partir de meu objeto de estudo, o universo amorosiano.
De outro modo: quer-se,
através de uma especial memorialística empreendida por Alceu, tecer
considerações acerca de sua trajetória, visão de mundo e de si e de seus planos
de intervenção no século. Intuito que, para ser minimamente bem sucedido, há de
levar em consideração as limitações da pesquisa memorialística. Valendo-me
outra vez de metáfora de Lowenthal, deve-se ter bem claro que o conhecimento
memorial não traduz fielmente os fatos -
ele força a seleção, destila e transforma o passado.[36]
III.2) Identidade e Projeto
Enfatizado o cunho
memorialístico de CV e dadas algumas características de tal linguagem, cumpre
desenvolver, brevemente que seja, a conexão (não linear) entre memória,
identidade e projeto. Mesmo admitindo o caráter difuso do lembrado, a memória
aponta para a identidade de quem a realiza, reforça tal identificação e
interage com o projeto do agente em questão. [37]
No caso específico deste
texto, quer-se demonstrar as estreitas ligações entre CV (tomada como exercício
de memória) e um certo universo amorosiano. Mais exatamente, creio poder ligar
CV - e a construção do Panteão imaginário aí contida - a determinados
identidade e projeto encampados por Alceu na segunda metade de sua militância
católica.[38]
Devo ainda ressaltar que tal
discussão de forma alguma se mostra simples. A trajetória amorosiana nada tem
de linear. Ou, nas próprias palavras que Alceu emprega para se referir a sua
vida:
“A subida da montanha se faz em ziguezague, por isso não me arrependo de modo nenhum de ter mudado ao longo de minha vida. Mudei e mudarei até o fim […].”[39]
CV, como já disse, foi
editado em 1971. Mas reúne artigos que datam do ano de 1945 ao início da década
de 70. São portanto necrológios distintos e bem distantes (no mínimo, quase
vinte anos) da conversão de seu autor. Se é verdade que o Amoroso Lima da
década de 70 tinha uma face bem definida, também é correto dizer que tal
identificação diferia em muito daquela assumida por Alceu ao abraçar a fé aos
trinta e cinco anos incompletos, em 1928. Um Amoroso Lima que era conduzido à Igreja
pelo reacionário Jackson de Figueiredo.
E se a identidade amorosiana
dentro da orbe católica cambiara tanto - como de fato cambiou - a explicitação
e legitimação de tal mudança deveria ser feita pelo “peregrino” Amoroso Lima.[40]
Algo a ser empreendido com “naturalidade”.[41]
Neste espírito, Alceu não negava modificações em sua maneira de pensar e agir.
Antes, proclamava-as. E, antecipando a discussão da próxima seção, creio que o
Panteão nefelibata eregido em CV está relacionado com tal atitude. Mas não devo
me adiantar.
Volto ao Alceu de CV, aquele
que está prestes a completar 80 anos. Como e com o que se identificava o
pensador católico em análise? E qual projeto seria coerente com tal identidade?
Penso que um breve e
possível encaminhamento a tais questões deve frisar o posicionamento de Amoroso
Lima como crente liberal, um renovador que triunfa sobre um Alceu reacionário
(tributário da influência do grande mentor de sua conversão, o polêmico e
iracundo Jackson de Figueiredo, morto logo após Alceu ter assumido a fé
católica). Triunfo que, ao tempo de CV, já era bem consolidado e público.[42]
Os vínculos deste Alceu
renovador ou progressista com o texto de CV são muito claros, como penso poder
sustentar a seguir.
Também no início da década
de 70, o líder católico em questão declarou-se “seduzido pela variedade e
multiplicidade.”[43] Atração
que, obviamente, refletir-se-ia na visão de Igreja e cristianismo de Alceu.
Ainda para Amoroso Lima, o referido encanto estaria bem traduzido num versículo
do Saltério da Vulgata: “circumdata
varietate”. Isto é:
“A Igreja se apresenta como uma rainha, rodeada de variedades […] de caminhos diferentes através dos quais é possível trilhar a verdade.”[44]
Como se vê, um inequívoco
louvor à alteridade. Acolhimento ao pluralismo que, para Alceu, encontraria
expressão na figura de João XXIII, papa de 1958-1963.[45]
Enfim, a década de 70 exibe
um Amoroso Lima entusiata do que chama de leis da pluralidade, liberdade e
variedade - “indispensáveis à harmonia e temperança”.[46]
Um cristão, liberal,
pluralista, inimigo do sectarismo - classificado como a negação da verdadeira
fé.[47]
Um defensor da convivência dos extremos - virtude que, lembre-se, foi decisiva
para a disposição de alguns “companheiros de viagem” no seu Panteão particular.[48]
Procuro reforçar o dito até
aqui, retornando a CV. A construção in
memoriam de um “paraíso aberto” pelo Amoroso Lima que evoca seus
“companheiros” está intimamente ligada com sua identidade enquanto cristão
tributário da diversidade.
Para encerrar a corrente
seção, resta expor, mesmo que sumariamente, o projeto que estaria embutido em
tal identificação.
Mais uma vez, e como fiz em
relação à identidade, apenas encaminho uma possível resposta à questão sugerida
acima.
Se, como
expresso in memoriam em CV, Alceu se
identifica com um determinado registro de cristianismo, o futuro passa a ser
concebido de forma coerente com tal visão de mundo. No entendimento de Gilberto
Velho,
“A consciência e a valorização de uma individualidade singular, baseada em uma memória que dá consistência a uma biografia, é o que possibilita a formulação e condução de projetos.”[49]
Ora, o projeto
contemplado por Amoroso Lima deveria ser coerente com suas memorialística e
identificação cristãs, ressaltando, pois, o plural e o diverso. E penso
realmente poder conectar o Alceu seduzido pela heterogeneidade a um projeto
remetido a seu público condizente com tal condição. Projeto de defesa da
pluralidade aplicável em duas instâncias de atuação muito caras a Amoroso Lima:
a eclesial e a nacional.
De outra forma: creio
encontrar em CV propostas para a Igreja e o Brasil baseadas no respeito à
diferença e na manutenção da variedade.
Primeiramente, a Igreja: os
tempos são de adaptação ao Vaticano II. As mudanças decorrentes do Concílio
foram muitas, muitas também as resistências por parte do clero mais
conservador.
A recepção das novas
diretrizes romanas encontrara resistências. Apesar de minoritários, grupos como
a TFP brasileira, a Septuaginta
holandesa e a Pensée Catholique na
França pregavam abertamente a rejeição ao Concílio e a volta a padrões
tridentinos.[50]
Assim, os obstáculos ao aggiornamento da Igreja não podiam ser
desprezados e Alceu bem o sabia. Acompanhara o processo desde o início.
O Concílio fora rico em
disputas e tensões. Amoroso Lima o acompanhara de perto, tendo sido um dos
representantes brasileiros na sua abertura. Também estivera sobremaneira
inserto no debate pós-conciliar como membro da Pontifícia Comissão de Justiça e
Paz (seu mandato se estendeu de 1967-1972).
Deste período, Alceu fala da
“atmosfera de euforia” que se seguiu ao encerramento do Vaticano II.[51]
E também dos acalorados debates entre os membros do Pontifício Conselho, onde
tinham lugar “reacionários e revolucionários.”[52]
Por tudo isso, acredito que
CV,[53]
com sua memorialística e tom aberto e renovador, pode ser interpretada não
apenas como uma identificação, uma adesão aos ventos renovadores conciliares.
Seria também um texto/ proposta para o futuro da Igreja.
Opinião reforçada pelos
necrológios dedicados a João XXIII em CV. Ali, Roncalli é crismado de “Grande
Pontoneiro”. Mais que isto, sob a ótica amorosiana, fora o pontífice que
“[…] nos curtos anos finais de sua longa existência, arrancou a Igreja do atoleiro do saudosismo para a projetar, pelo Concílio, à sua missão profética no mundo em gestação.”[54]
O vocabulário não deixa
dúvida. Evocando seus mortos e, simultaneamente, posicionando-se nas hostes
católicas, Amoroso Lima acaba por saudar vigorosamente o projeto “profético” de
Roncalli para a Barca de Pedro. Memória, identidade, projeto.
Indo da Igreja à conjuntura
nacional: acredito que o elogio à diversidade contido em CV também se adequaria
ao Brasil de 71, sendo contraponto à uniformização desejada pelos novos donos
do poder e, ao mesmo tempo, sinalização de um projeto alternativo ao imposto à
força pelo regime. Alceu será bastante claro a este respeito:
“Não devemos querer a unidade na uniformidade. Mas a unidade na diversidade.”[55]
Logo, depreende-se que a
pluralidade retratada em CV tem nítidas conexões com outra questão muito cara a
Alceu: a liberdade. Em 1969, ele já afirmava:
“Ao longo de minha vida, adquiri cada vez mais o sentido da liberdade e a paixão da liberdade.”[56]
Numa nação como
a brasileira do início dos anos 70, onde a simples discordância pública do
regime representava um risco e onde imperava a censura prévia em todos os meios
de comunicação, um escrito defendendo a pluralidade e lançando ao céu
personalidades proscritas pelo regime - como Anísio Teixeira, por exemplo - já
causa espécie.
Sensação que
aumenta quando se depara com
comentários muito pouco sutis como o que está disposto no necrológio destinado
a Miguel Couto. Neste artigo, Alceu faz um contraste entre a cordialidade do
finado (classificado como Homo Cordialis)
e o Brasil dos militares:
“[…] hoje vivemos
com as divisões, os ódios, os extremismos, as vinganças, as punições que nos
dilaceram.”[57]
Afirmação e posicionamento
coerentes com o lido em CV, um louvor à diferença, à heterogeneidade, assim na
terra como no céu. Obra fruto de um pensador que, com base em seus testemunhos
e crenças, não se limitou às críticas, propondo recorrentemente a tolerância
para com as diferenças e a harmonização de extremos (que seriam condições
básicas para o equilíbrio e desenvolvimento individual e social). E que, do
futuro, dizia esperar justiça social e liberdade.[58]
Por tudo que foi disposto anteriormente, sustento que CV também inclui
propostas para a sociedade da época, encerrando um projeto consoante com o
cristianismo de Alceu.
Não se trata
aqui de realizar uma apologia de Amoroso Lima. Desejo tão somente demonstrar o
entrelaçamento de memória, identidade e projeto - algo que seria discernível
por meio do Panteão nefelibata de Alceu.
Por fim, e já
fazendo a ligação com a próxima seção, devo dizer que parte significativa das
características que identifiquei como constituintes do projeto do cristão Alceu
são apontados pelo próprio como mais antigas que seu cristianismo.[59]
Natureza que teria sido
contrariada pela conversão e a fase reacionária de Amoroso Lima - que se inicia
em 1928 e começa a decair nos anos quarenta. Relendo seu registro cristão,
Alceu reencontraria sua mais íntima identidade. Nas palavras de Amoroso Lima:
“Eu creio que a evolução que se processou no meu pensamento foi uma espécie de volta a mim mesmo. Após minha oscilação à direita, quando ingressei no catolicismo, era natural que viesse mais tarde a corrigi-la.”[60]
Mudanças que
Alceu se sente na obrigação de explicitar e explicar. Exercício que confere ao
Panteão imaginário de Alceu uma função adicional, diversa daquela de exaltação
da pluralidade como algo desejado por Deus e modelar para os homens. É sobre
isto que versam as próximas linhas.
IV) DE VOLTA
AO ETÉREO MÁRMORE SUSPENSO
Gostaria de lembrar alguns
pontos para avançar um pouco mais. Até aqui, trabalhou-se com a idéia de CV
como um monumento aos finados caros a Amoroso Lima. Ele próprio, ao resumir seu
intuito na introdução de tal obra, aponta nesta direção:
“[…CV forma um] quadro de honra de meus mortos, semelhante àqueles dos ‘mortos pela pátria’, que os monumentos dos pracinhas de todos os países ostentam.”[61]
Semelhança que, devo
acrescentar, não empanaria, na minha opinião, uma notável diferença entre as
construções reais e a imaginária.
Naquelas, como o monumento
dedicado aos pracinhas, a pátria, reverente, evoca seus mortos que, num
contexto absolutamente laicizado, são reconhecidos como heróis. Heróis mortos.[62]
Por outro lado, na
construção intangível de Alceu, os lembrados, graças a uma especial leitura de
fé, continuam a viver e, nesta memória e também esperança, há lugar para a
celebração. Festa que, ainda sob o ângulo da crença cristã, proclama a vitória
sobre a morte, vista como passagem. Seguindo-se tal linha de raciocínio, antes
que um final, a morte terrena seria vista como restituidora da natureza
original do homem,[63] “a porta da vida”.[64]
Logo, o Panteão amorosiano
celebra a memória de “vivos especiais”,
gente muito diversa que, transportada ao céu de Amoroso Lima, ilustra a
valorização da pluralidade e a convivência harmonizadora dos extremos. De tudo
isso, afloram conceitos de memória, identidade e projeto bem específicos - como
tive oportunidade de demonstrar. CV seria, então, uma edificação também
“especial”, ideal, moldada em “etéreo mármore suspenso”.[65]
Estas poderiam ser as conclusões do presente texto. Contudo, há mais.
O impalpável Panteão
amorosiano ganha sentido complementar quando pensado em termos de sua longa e
rica trajetória. Percurso de vida nada monolítico, percurso plural - como já
aludi. Tentarei expor tal caminho com maiores detalhes, mesmo que ainda
brevemente.
Alceu assumiu a fé católica
convencido pela retórica de Jackson de Figueiredo. Debate epistolar que
consumiu anos - de 1924 a 1928, segundo a maior parte dos estudos sobre o caso -
e que muito influenciaria o registro de catolicismo abraçado por Amoroso Lima
nos anos seguintes a 28. Convertido sob o signo da autoridade,[66]
Alceu diz ter contrariado, inclusive, sua formação familiar e temperamento
liberais.[67]
Nova tendência que, na lembrança
do convertido, teria sido acentuada pela morte de Jackson, meses após sua
profissão de fé.
“Jackson Figueiredo
[…] viria a exercer uma ação póstuma sobre mim.”[68]
Premido pela influência
natural e sobrenatural de Jackson, Alceu diz ter se sentido obrigado a seguir
tal orientação logo após sua morte.[69]
Orientação que se refletiu na ação amorosiana como líder da intelligentsia católica, papel em que
foi “ungido” por D. Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro (então Distrito
Federal) e maior figura do episcopado nacional.
Afinal, Alceu convertera-se
para agir. Identidade e projeto, mais uma vez, irmanam-se. Amoroso Lima, tal
cruzado moderno, combatia, entre outros inimigos, o comunismo, a secularização
e dessacralização da sociedade moderna, a tibieza do corpo social, o niilismo
reinante - notadamente entre os intelectuais.
Cerra fileiras para
“combater o bom combate”. Assume, em 1928, a diretoria do Centro Dom Vital -
que, sintomaticamente, divulgava seu pensamento num periódico chamado A Ordem. Funda o Instituto Católico de
Estudos Superiores[70] (junto com o cardeal Leme,
em 1932), a Liga Eleitoral Católica (1933) e preside a Ação Católica Brasileira
a partir de 1935. Não há dúvida: Alceu, a partir de uma leitura de direita,
quer cristianizar o século e, para a consecução deste projeto, vários espaços
precisam ser ocupados.
Está-se diante de um
pensador sobremaneira diverso daquele retratado por CV. Entretanto, o que é por
demais relevante para este texto, ao mesmo tempo que luta, Amoroso Lima vai, de
novo, cambiando. Com a conversão, abandonara a índole liberal adquirida em casa
e na juventude. A partir do final dos anos 30 e início da década seguinte, vai
travando contato com pensadores como Yves-Marie Congar, Jacques Maritain,
Emmanuel Mounier.[71]
“Percebi então que o fato de acreditar na liberdade acima da autoridade, de acreditar na democracia […], na liberdade de pensamento, acima do dirigismo intelectual, não implicava em nenhum conflito com as minhas convicções católicas, com a minha religiosidade, nem com os meus sentimentos cristãos.”[72]
Câmbio por cima de câmbio,
como se vê. O que causa indagações. Provoca reações variadas. Já foi citado,
por exemplo, o trecho onde Amoroso Lima se diz rotulado de traidor pelos
conservadores.[73]
Ora, Alceu era um homem
público, o líder leigo mais prestigiado entre os católicos do país. Tinha
audiência fiel. Escreveu durante toda vida cerca de cem livros, inúmeros
artigos, proferiu conferências no Brasil e exterior. Era um católico
referencial. E, estando na arena pública, devia ou pensava dever explicações:
“A força de um escritor de uma vida inteira é ter sempre sua vida e seus escritos abertos ao público. Incapaz de se desmentir a si próprio.”[74]
Acredito que é exatamente
neste ponto que o Panteão amorosiano ganha o outro sentido complementar a que
aludi anteriormente. O Panteão de CV, além de lugar de memória e de indicar
identidade e projetos consoantes com a diversidade ali encontrável, abrigaria
também o conflito e a tensão decorrentes dos vários selves do seu autor, selves
de diferentes estágios existenciais.[75]
O Panteão imaginário não só os acolheria como chancelaria as mudanças de
Amoroso Lima.
Penso que, dispondo nas suas
etéreas galerias tipos tão plurais, Alceu acabaria, por extensão,
conscientemente ou não, demonstrando a seus leitores a validade de suas
próprias reviravoltas.
Antes de as esconder,
coloca-as disponíveis à visitação pública. Sem pudores e naturalmente. Se CV e
sua emblemática tolerância para com a
alteridade é uma coleção de exemplos diversos de como se chegar ao céu, não se
poderia condenar alguém por ter, em diversas fases, assumido posicionamentos
contraditórios.
Lembro de Le Goff. O
historiador francês, no seu verbete para a Enciclopédia Einaudi sobre a
memória, diz que esta, sob a forma de memória funerária, deu contribuição
central na evolução do retrato.[76]
Aqui, também com base num tipo específico de memorialística funerária, destaco
o papel de CV na definição de um outro retrato: o auto-retrato de seu autor.
Analogia que, mesmo sabedor das diferenças entre um caso e outro, creio ser
válida.
O que está em jogo é a
auto-continuidade, fenômeno dependente da memória - que, evocando experiências
passadas, costura o self presente a
nossos selves antigos.[77]
A memória tem, pois, função
organizadora e de seleção. Triando os fatos, relega uns ao esquecimento e, a
outros, recorda. Incorpora e relê as mudanças vivenciadas. O passado e sua
lembrança - sempre parcial - tornam-se, assim, vitais para a
construção/validação da identidade humana.[78]
Memória, identidade, mudança.
Portanto, através de sua
obra in memoriam, um louvor à
diversidade, poder-se-ia pleitear que Alceu também
aborda a si próprio e sua trajetória dinâmica. Organizando seu self nos anos 70, revê seus outros selves, dando a todos não só a
necessária unidade como autenticidade.
Revisão necessária mas
freqüentemente não intencional - como o esquecimento, afirma Lowenthal.[79]
Neste espírito, no fim da
vida, Alceu faz um balanço de sua trajetória:
“Mudei e mudei
porque vivi, porque viver é mudar.”[80]
Vivendo, mudando, revisando
e ordenando seu self em decorrência
do experimentado, Alceu acaba por ilustrar a crucialidade - a importância - da
memória de que falou Le Goff, na abertura de seu verbete enciclopédico.[81]
Crucialidade que também pode
ser entendida, como quis Margarida de Souza Neves, no seu sentido etimológico,
como cruzamento. Cruzamento, por exemplo, de lembrança e esquecimento, registro
e invenção, fidelidade e mobilidade, dado e construção, revelação e ocultação.[82]
Assim, o Amoroso Lima de CV,
por meio de suas memória e identidade, constrói no seu Panteão de etéreo
mármore suspenso um ode à diversidade, projeto para o futuro. E, não menos
importante, através de CV, Alceu modela a si próprio.
V) CONCLUSÃO
Cumpre inventariar o caminho
percorrido. Valendo-me da obra amorosiana Companheiros
de Viagem, entendida como um Panteão imaginário, propus que nela fossem
divisados memória, identidade e projeto bem próprios.
Memória de finados queridos
de Alceu. Identidade/identificação deste com um registro de cristianismo onde a
pluralidade é exaltada. Projeto - que é proposta e esperança - de triunfo da
mesma pluralidade em termos societários, em suas dimensões coletivas e
individuais, através da harmonização de extremos e da convivência com o diverso.
Companheiros de Viagem seria também, por fim, um lugar ideal no qual as
interações e tensões de memórias, identidades e projetos diferentes seriam
dispostas como legítimas. Onde o dinamismo entre tais conceitos e as mudanças
ocorridas no tempo não pusessem em xeque a estabilidade do self.[83]
Lugar em que houvesse unidade e continuidade na alteridade.
Onde, enfim, o movimento,
como o bailar das nuvens, apenas acrescentasse novas e múltiplas formas.
VI)
BIBLIOGRAFIA
AMOROSO LIMA, Alceu - Companheiros
de Viagem, RJ, José Olympio, 1971
- Idade, Sexo e Tempo: três
aspectos da psicologia humana, RJ, José Olympio, 1938
-
Memórias Improvisadas: diálogos com Cláudio Medeiros Lima, Petrópolis,
Vozes, 1973
- Memorando dos 90: : entrevistas e
depoimentos coligidos por Francisco de Assis Barbosa, RJ, Nova Fronteira,
1983
BEOZZO, J. O. &
ALBERIGO, G. (orgs.) - Herança Espiritual
de João XXIII, SP, Paulinas, 1993
LE GOFF, J. - Memória/História, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1984
LOWENTHAL, D. - The Past is a Foreign Country,
Cambridge, Cambridge University Press, 1985
NEVES, Margarida de Souza -
“Os Jogos da Memória” in MATTOS, Ilmar Rohloff de – Ler e Escrever para Contar: documentação, historiografia e formação do
historiador, RJ, ACCESS, 1998
OZOUF, Mona - “Le Panthéon:
L’École normale des morts” in NORA, Pierre - Les Lieux de Mémoire: Vol. I:
La République, Paris, Gallimard, 1984
TABORDA, F. - Sacramentos, Práxis e Festa: para uma
teologia latino-americana dos sacramentos, 3a. ed., Petrópolis,
1994
VELHO, Gilberto - “Memória,
Identidade e Projeto” in VELHO, Gilberto - Projeto
e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas, RJ, Zahar, 1994
[1] Doutorando em História pela PUC-Rio.
[2] Importante para a presente discussão é a obra de VELHO, Gilberto - “Memória, Identidade e Projeto” in VELHO, Gilberto - Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas, RJ, Zahar, 1994.
[3] Rio de Janeiro, José Olympio, 1971. Daqui em diante, apenas CV.
[4] Várias passagens bíblicas asseguram o caráter plural do paraíso: a mais célebre talvez seja a de Jo 14,2. Significativos são também os trechos de Gn 2, 8-9, para a idéia de paraíso terrestre, e Ap 21, 3.7 que busca descrever a Jerusalém celeste.
[5] Os grupos que enunciarei são de minha responsabilidade. Creio que tal forma de análise - mesmo que esquemática e, portanto, rígida - será válida para retratar a diversidade do céu amorosiano.
[6] In CV, p. 9.
[7] In CV, pp. 68-69.
[8] In CV, pp. 88-91.
[9] O que uniria tais registros, na minha opinião, seria uma valorização do mundo, do século.
[10] Cf. in CV, p. 165.
[11] Id. ib.
[12] CV, p. 150.
[13] Cf. in CV, pp. 270-71.
[14] Cf., p. ex., in Idade, Sexo e Tempo: três aspectos da psicologia humana, RJ, José Olympio, 1938, p. 296.
[15] CV, pp. 232-34.
[16] Morto em 1928 e homenageado por Amoroso Lima com quatro necrológios - escritos nos anos de 1951, 59, 63 e 68.
[17] Cf. in CV, p. 173.
[18] In CV, p. 256.
[19] In CV, p. 95.
[20] O Concílio Vaticano II iniciou-se em outubro de 1962, estendendo-se até o ano de 1965.
[21] In CV, p. 196.
[22] Onde terminaria a “[…] insaciável procura dos corações puros.” (Id. ib.)
Para que a posição de Alceu seja melhor contextualizada, lembro que, na primeira metade do século, era usual a família de um suicida esconder sua real causa mortis - já que tal admissão entravaria ofícios religiosos pela alma do morto. Ainda com relação a suicidas: até onde pude apurar, a missa de sétimo dia em memória de Getúlio Vargas foi oficiada a portas fechadas no Rio de Janeiro. Tal se deu menos de oito anos antes do necrológio escrito por Alceu para Maranhão.
[23] Cf., respectivamente, às pp. 3-7 e 114 de CV.
[24] CV, prefácio, p. XVI.
[25] Ele cita Dahl, cf. in LE GOFF, J. - Memória/História, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 25.
[26] Cf. in LE GOFF, J., op. cit., p. 27.
[27] Cf. in TABORDA, F. - Sacramentos, Práxis e Festa: para uma teologia latino-americana dos sacramentos, 3a. ed., Petrópolis, 1994, p. 53.
[28] Cf. in VELHO, Gilberto, op. cit., especialmente às pp. 101-102.
[29] Cf. in VELHO, Gilberto, op. cit., p. 102.
[30] Ressalte-se que não há linearidade no trinômio memória-identidade-projeto.
[31] Neste sentido, confira, por exemplo, in LE GOFF, J. - op. cit., pp. 17-18.
[32] Op. cit., p. 24 - no caso, o historiador francês cita Oexle.
[33] Cf. in LOWENTHAL, D. - The Past is a Foreign Country, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 194. Todas as citações traduzidas são de minha responsabilidade.
[34] Cf. in LOWENTHAL, D. - op. cit., p. 192.
[35] Alceu era fascinado pelo mistério - que para ele era, na esfera terrestre, a explicação final de todas as coisas. Não é sem propósito que o título de sua última obra, uma das mais importantes de sua vasta bibliografia, é Tudo é Mistério (Petrópolis, Vozes, 1983, edição póstuma).
[36] Cf. in LOWENTHAL, D. - op. cit., p. 194. À p. 204, Lowenthal volta ao ponto: “Toda memória transmuta a experiência, mais que simplesmente refletir o passado, destila-o.”
[37] Voltarei a este ponto na seção III.
[38] Para tanto, recorrerei a outras duas obras também de caráter memorial de Amoroso Lima. São elas: Memórias Improvisadas: diálogos com Cláudio Medeiros Lima (Petrópolis, Vozes, 1973) e Memorando dos 90: entrevistas e depoimentos coligidos por Francisco de Assis Barbosa (RJ, Nova Fronteira, 1983) - daqui em diante, respectivamente, MI e M90. Por fim, um esclarecimento de método e cronológico: considerei MI (de 1973) como da mesma “geração” que CV (de 1971). Tal procedimento deveu-se tanto à proximidade temporal dos dois como, prioritariamente, à semelhança de conteúdo que encontrei num e noutro. Já quanto a M90, uma reunião de artigos e entrevistas coletados de 49 a 83, vali-me prioritariamente de trechos anteriores a 1971 - declarações posteriores são citadas quando tive elementos para acreditar que já estariam presentes no pensamento amorosiano à época do lançamento de CV.
[39] In M90, p. 92. A entrevista citada é de 1969.
[40] O recurso à imagem do peregrino, bastante recorrente no linguajar amorosiano, traduz a idéia da vida como viagem rumo ao céu, percurso onde muitas mudanças podem ser operadas.
[41] Cf. in M90, p. 39: “a virtude que mais admiro é a naturalidade” (entrevista de 1954).
[42] Em 1969, dois anos antes da edição de CV, em entrevista a O Pasquim, Alceu reitera estar entre os renovadores no seio da Igreja e declara que tal câmbio - a rigor efetuado desde os anos 40 - valera-lhe ressentimentos profundos: “Os tradicionalistas e os integralistas me consideram como um traidor.” In M90, p. 116.
[43] In MI, p. 92. Pensamento que será ratificado tempos depois quando Alceu diz possuir “[…] a máxima sedução pela multiplicidade e variedade.” In M90, p. 167, entrevista de 1976. O recurso à citação posterior a CV é válido, a meu ver, por se tratar de confirmação de opinião já conhecida ao tempo da obra em análise.
[44] In MI, p. 193. A referência não é dada mas, certamente, Alceu se reporta ao trecho de Sl 44, 10: “filiae regum in honore tuo adstetit regina a dextris tuis in vestitu deaurato circumdata varietate”.
[45] Cf. in M90, p. 48, entrevista de 1962. A admiração e o entusiasmo por João XXIII é um dos dados de mais fácil comprovação na trajetória amorosiana: Alceu citava-o de forma contumaz em entrevistas, a ele dedicou um livro (João XXIII, Rio de Janeiro, José Olympio, 1966) e, no caso de CV, destina a Angelo Roncalli um necrológio ainda em vida (cf. às pp. 190-91, artigo de 04/11/1961, comemorativo dos oitenta anos do papa), caso único em todo o livro. Roncalli é, dentro da análise aqui proposta para CV, “santificado” antes de morrer. Atitude confirmada depois do passamento do papa quando Alceu, de novo e desta feita de forma mais usual, homenageia João XXIII (cf. in CV, pp. 217-220).
[46] Cf. in MI, p. 303. O contraste com o momento vivido internamente no Brasil é, ao mesmo tempo, relevante e pungente. E, ver-se-á, vai se refletir no projeto amorosiano contido em CV.
[47] Cf. in MI, p. 228. Neste mesmo sentido e ainda em MI, afirmou que “A verdade é mais complexa e acolhedora que o sectarismo.” (p. 70)
[48] Cf. à seção I, como nos casos de Ortega y Gasset e Augusto Frederico Schmidt. Alceu voltará ao tema muitas vezes - como numa entrevista que tem uma seção com o seguinte título: “Viver é coexistir com contrários”. Cf. in M90, p. 371.
[49] In VELHO, G. - op. cit., p. 101. Grifos do autor.
[50] Cf. in BEOZZO, José Oscar - “Recepção do Pontificado de João XXIII na Igreja do Brasil” in BEOZZO, J. O. & ALBERIGO, G. (orgs.) - Herança Espiritual de João XXIII, SP, Paulinas, 1993, pp. 105-175.
[51] Cf. in MI, p. 316.
[52] Cf. in MI, p. 317.
[53] Lançada quando seu autor ainda se encontrava ocupando o cargo romano e, portanto, muito afinado com as lutas intestinas eclesiais.
[54] In CV, p. 218. É interessante notar que a condenação ao saudosismo é freqüente no pensamento de Alceu - cf., p. ex., in MI, pp. 326-27.
[55] In MI, p. 285. Mais uma vez, o espírito desta obra entra em comunhão com o disposto em CV.
[56] In M90, p. 92. Entrevista de 1969.
[57] CV, p. 235, artigo de maio de 1965 e mais válido que nunca em 1971. Outras críticas ao governo federal são feitas, por exemplo, às pp. 226, 230 e 234 (onde o movimento militar é rotulado de “abrilada” - classificação tão dura quanto bem humorada já que, aos olhos do governo, a celebração da deposição de João Goulart se dava em 31/03, fugindo-se assim da incômoda coincidência com o 1o. de abril, data tradicionalmente conhecida como “dia da mentira”).
[58] Cf. in MI, pp. 65-66.
[59] Como o cultivo do contato com a alteridade (cf. in M90, entrevista de 1971), o gosto pelo contraditório que o teria impedido de seguir carreira como advogado (cf. in MI, pp. 90-91), o espírito harmonizador (id. ib.), o anseio por justiça social e liberdade (cf. in MI, pp. 65-66).
[60] In MI, p. 234.
[61] CV, p. 283.
[62] Já Ozouf, em belo texto, ressalta a frieza e a consagração do anonimato presentes no Panteão francês, “templo do vazio”. Cf. in OZOUF, Mona - “Le Panthéon: L’École normale des morts” in NORA, Pierre - Les Lieux de Mémoire: Vol. I: La République, Paris, Gallimard, 1984, p. 141.
Creio que a constatação de Ozouf possa estar conectada ao fenômeno da secularização da memória (quanto a este último, ver in LE GOFF, J., op. cit., pp. 28, 36- 39).
[63] Cf. in CV, pp. 35 e 267.
[64] In CV, p. 190. Alceu repete expressão atribuída a São Francisco de Assis.
[65] A feliz expressão foi cunhada, em outro contexto, por Cecília Meireles na crônica “Exercício Nefelibata” (cf. in Crônicas de Viagem, Vol. I, RJ, Nova Fronteira, 1998, p. 69).
[66] “Jackson era um pascaliano, não era um tomista. Em política era um reacionário fanático. Ele acreditava no primado da autoridade sobre a liberdade.” In M90, p. 144, entrevista de 1971.
[67] Cf. in MI, p. 229.
[68] In MI, p. 120.
[69] Cf. in MI, pp. 148-49.
[70] Embrião da atual Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
[71] Cf., p. ex., in MI, pp. 121, 147, 153-155, 172.
[72] In MI, p. 234.
[73] Cf. in M90, p. 116, entrevista de 1969 - referência já dada.
[74] M90, p. 327, entrevista de 1981 mas que, creio, traduz um percepção que pode ter sido despertada graças as mudanças incorporadas por Alceu. Ademais, como bem se nota em muitas declarações de Alceu, era recorrente sua preocupação em explicar seus câmbios (cf., p. ex., in MI, p. 234 e in M90, pp. 88-91, entrevista de 1968). Tal preocupação, ser cristalino para seu público, também pode ser entendível pelo seu culto à naturalidade, já citado na seção II.
[75] É interessante notar que, apesar das diferenças já lembradas entre o Panteão concreto francês e o ideal de Alceu, Ozouf refere-se ao monumento parisiense como um espaço de memória e litígio (cf. in OZOUF, M. - op .cit., p. 139).
[76] Cf. in LE GOFF, J. - op. cit., p. 18.
[77] Cf. in LOWENTHAL, D. - op. cit., p. 197.
[78] Cf. in LOWENTHAL, D. - op. cit., pp. 197-199. Quanto à memória e esquecimento, ver pp. 204-06.
[79] Op. cit., p. 207.
[80] M90, p. 392; entrevista publicada em 1983 - utilizada neste trabalho porque praticamente repete expressão amorosiana de 1969 já elencada neste texto (“Mudei e mudarei até o fim […].” - in M90, p. 92).
[81] “O conceito de memória é crucial.” In LE GOFF, J. - op. cit., p. 11. Lowenthal também usa o mesmo termo “crucial” ao se reportar ao papel da lembrança para nossa identidade (op. cit., p. 197).
[82] Cf. in NEVES, Margarida de Souza - “Os Jogos da Memória” in MATTOS, Ilmar Rohloff de – Ler e Escrever para Contar: documentação, historiografia e formação do historiador, RJ, ACCESS, 1998.
[83] No caso, self de Alceu. Mas tal movimento, em hipótese, poderia ser estendido a qualquer self individual.