Asilo Espírita “Discípulos de Jesus” de Penápolis:
A loucura no cotidiano de uma instituição disciplinar (1935-1945)
Carlos Eduardo
Marotta Peters*
UNESP
O presente trabalho tem como problemática a reflexão acerca do papel da instituição
Asilo Espírita “Discípulos de Jesus” na sociedade penapolense e suas
vinculações com as políticas públicas do Estado no período que abrange 1935 –
1945.
O Asilo Espírita foi fundado pelo dirigente espírita local
João Marchese em 1935, na busca de dar continuidade aos trabalhos caritativos
executados pelos membros do Centro Espírita “Discípulos de Jesus” (fundado em
1925). Entre 1925 e 1935, os espíritas
penapolenses acolheram mendigos e dementes (designação dada pelos espíritas a
pessoas acometidas por qualquer espécie de distúrbios mentais) em suas próprias
residências , realizando ali diversas modalidades de tratamentos espirituais.
Assim, podemos dizer o asilo propiciou a organização e
institucionalização de uma prática preexistente no movimento espírita local e já prevista quando da fundação do
seu primeiro Centro. Podemos perceber no próprio estatuto do Centro, impresso
em 1926, uma preocupação central com a
questão da assistência aos desvalidos. No capítulo primeiro do impresso aparecem
os objetivos traçados para o movimento espírita penapolense:
“Parágrafo 1.
Estudar o espiritismo sobre as bases methodisadas por Allan Kardec, debaixo do
duplo ponto de vista theorico e pratico.
Parágrafo 2. Praticar a caridade na sua mais ampla
accepção, sem attentar convicções, raças e costumes.
Parágrafo 3. Praticar com o mais vivo interesse o
tratamento dos doentes indigentes, nesta localidade, e para esse fim, tratará
da creação de um posto médico homeopático para distribuir remedios gratuitamente
aos necessitados, e um asylo para desamparados e orphãos.”
A questão que suscitou nosso interesse no tema do
espiritismo em geral foi a constatação de que, no seio do movimento, ou mesmo
fora dos círculos espíritas, as práticas assistencialistas espíritas eram
vistas apenas como uma manifestação da
bondade, decorrente do preceitos básicos da sua doutrina. Acreditamos, ao
contrário, que no caso específico em que centraremos nossa análise, que a
bondade, ao manifestar-se na esfera pública, pode ser corrompida e incorporada
aos mecanismos do Poder Público, configurando-se numa alternativa para a
resolução de diversos problemas sociais. Existe, portanto, uma dimensão
política que abarca as práticas assistencialistas, e é tal dimensão que
tencionamos investigar neste trabalho,
pois desde Maquiavel sabemos que a
manifestação da bondade na esfera pública pode prestar-se a ensinar as pessoas a resignarem-se frente
ao mal, tornando-as submissas frente aos governos e ao que consideram desígnios
do destino (Arendt, 1985: 88).
Como dissemos, o
mais importante empreendimento assistencialista do espiritismo penapolense foi
a construção do Asilo Espírita “Discípulos de Jesus”, inaugurado em 1935. Sua
finalidade inicial era dar abrigo a mendigos e pessoas que sofriam de
distúrbios mentais e que não tinham condições de permanecerem com suas famílias
ou de serem enviadas para hospitais especializados. A motivação que deu impulso
à construção do asilo foi o crescimento do número de mendigos e dementes na
cidade no final da década de 1920 e
inícios da década de 1930, o que se transformou, no decorrer dos anos, em um transtorno para as autoridades
locais. A cadeia pública não possuía cômodos suficientes para recolher tais
elementos e o Hospício do Juquery de São Paulo encontrava-se superlotado, com
fila de espera de milhares de pessoas oriundas de todo o Estado de São
Paulo (Cunha, 1986: 84).
As autoridades locais, conhecendo as atividades
assistencialistas dos espíritas de Penápolis, passaram nesse momento a
solicitar freqüentemente seus serviços. Num primeiro momento, os espíritas, e
principalmente João Marchese, acolhiam tais elementos em suas residências. Com
o crescimento do número de solicitações, resolveram construir uma instalação
própria para tal trabalho.
O crescimento do número de mendigos e dementes em Penápolis
decorreu da própria dinâmica de seu
processo de desenvolvimento. Penápolis está localizada entre as cidades de Araçatuba e Lins, das
quais dista cerca de cinqüenta quilômetros. A história da cidade inscreve-se,
portanto, no contexto da região Noroeste, que estende de Bauru até a fronteira
do Estado do Mato Grosso do Sul.
O crescimento da produção cafeeira (principal atividade econômica no início do
século XX) nesta região foi rápido e intenso. Já em 1920, a produção de café na
local atingiu amplitude significativa. Nesta data produziam 722.199 pés de
café, o que correspondia a 3.7 % do total produzido no estado de São Paulo.
Seguindo de perto esse ritmo, houve um sensível aumento populacional na região
como um todo, que, em 1920 já contava com 13.454 pessoas, número que saltou
para 608. 027 em 1935, o que transformou a região em uma das mais populosas do
estado (Milliet, 1982: 22 – 23).
Tal estatística abrange o período que se estende até 1940.
José Oscar Beozzo , ao analisar o crescimento populacional da região Noroeste,
aponta o período que abrange de 1920 a 1935 como o que apresentou o maior
índice de aumento populacional. Tratou-se, segundo ele, de uma avalanche humana
de quase meio milhão de pessoas que se instalaram na região nesse curto espaço
de tempo. O imigrante estrangeiro, segundo o mesmo autor, representava, em
1940, 12, 27% do total populacional da região (Beozzo, 1969: 777-782).
Obviamente, um aumento populacional tão extremado não
poderia ocorrer sem ser acompanhado de uma série de problemas. A pobreza, a
mendicância, a prostituição, a criminalidade e também a loucura, são os efeitos
colaterais do crescimento econômico e urbano. Penápolis, bem como as cidades
circunvizinhas, não escapou de tais problemas, que foram agravados ainda mais
pela conjuntura que se inaugurou a partir da grande crise de 1929, que de
diversas maneiras vitimou produtores de café da região, afetando, num efeito
cascata, os diversos setores que compunham a economia regional.
O trabalhador rural arruinado, nesse momento, viu-se
necessariamente impelido para os centros urbanos na busca de emprego. Nesse
contexto, a questão da assistência aos desvalidos passou a preocupar
sensivelmente as autoridades locais. E foi nessa conjuntura especial que o
movimento espírita penapolense passou a representar alternativa para a
resolução daqueles problemas, o que gerou uma articulação singular entre o
movimento e o poder público local. O Asilo Espírita “Discípulos de Jesus”, uma
instituição sob direção de religiosos espíritas e que contava com um processo
de internação e tratamento considerado no código penal da época como prática de
curandeirismo, passou a receber subsídios da Prefeitura Municipal e alimentos
do fornecedor da Cadeia Municipal, custeados pelo Governo Estadual. Os internos
do asilo eram encaminhados pelo Delegado de Polícia local e pelo Juiz da
Comarca, que freqüentemente solicitava auxílio de João Marchese para a
resolução de problemas referentes indivíduos portadores de deficiência mental.
Isso se deu em um período em que a implantação de uma
política estatal de saúde, principalmente a partir de 1930, coincidia com a
crescente preocupação frente a medicina popular e as práticas de curandeirismo
dos chamados charlatães. Existia um projeto de imposição de novos hábitos
e valores frente à saúde da população que, para ser plenamente alcançado,
deveria eliminar a concorrência da medicina popular frente ao projeto estatal
de saúde (Carvalho, 1995: 14).
De fato, João Marchese foi intimado a prestar contas de
suas atividades de curandeiro em abril de 1934. Todavia, com o advento do
asilo, tal intimação foi sumariamente “esquecida” pelo Delegado de Polícia e
pelas autoridades municipais, só sendo retomada em 1945, quando foi instaurado
um processo criminal contra o dirigente
espírita que resultou no encerramento das atividades do asilo.
O que ocorreu durante os dez anos de funcionamento do asilo
que estimulou tal “esquecimento” das autoridades locais? Acreditamos que o modo
como se articulou o processo de internação/tratamento dos pacientes do asilo
pode fornecer a resposta para esta questão. Baseado na leitura dos prontuários
do asilo, creio que se pode caracterizar sua lógica de funcionamento enquanto
um mecanismo de normalização da sociedade, que acabou por adequá-lo de forma perfeita aos anseios das
autoridades frente aos problemas enfrentados pela sociedade penapolense. Como o
saber médico institucionalizado não apresentava soluções imediatas para tais
problemas (não havia um psiquiatra na cidade e o Hospício do Juquery
encontrava-se superlotado, sem
perspectivas de normalização do atendimento em curto prazo), o Asilo Espírita
“Discípulos de Jesus” preencheu tal espaço.
Num âmbito mais geral, sabemos que a década de 1930
caracterizou-se pelo avanço das políticas sociais governo, dentro das quais a
disciplinação dos trabalhadores foi o principal objetivo. Tencionava-se,
principalmente a partir do advento do Estado Novo, construir um novo conceito
de trabalho, cuja meta era forjar o trabalhador ideal, disciplinado, despolitizado
e produtivo. Simbolicamente, a nação aparecia associada a uma totalidade
orgânica, um corpo, onde as classes sociais figuravam como órgãos, cuja
inter-relação era necessária para que o todo pudesse funcionar plenamente.
Dentro dessa lógica, uma série de mecanismos foram gestados para que tal
projeto de sociedade fosse implementado. Muitas vezes foi imprescindível a
utilização de mecanismos e instrumentos que já vinham sendo forjados nas
diversas instituições e saberes que compunham a sociedade brasileira.
A loucura, como bem demonstra Maria Clementina Pereira
Cunha (Cunha, 1986), numa reprodução do que ocorreu no decorrer da consolidação
de todas as sociedades burguesas, foi desde fins do século XIX aprisionada,
anulada e transformada em objeto de saber. Foram criados espaços específicos
para a sua exclusão, onde desde a configuração física do edifício até o processo de tratamento cotidiano derivavam
de uma lógica que visava normalizar o desatino. Existiu, desde o princípio, uma
clara relação entre a violência asilar e o uso da psiquiatria em práticas
repressivas de governos totalitários. Tal relação nada mais fez do que
exasperar uma vocação inscrita na própria origem histórica da psiquiatria, como
parte constituinte de uma vasta gama de saberes e práticas engendradas pela ordem burguesa. A
psiquiatria brasileira e, particularmente o Hospício do Juquery, estavam
intrinsecamente ligadas e preocupadas com os problemas suscitados pelo
crescimento urbano de São Paulo e do país.
A loucura, no período caracterizado pela crescente
industrialização e urbanização de São Paulo e do Rio de Janeiro, aparece
conjugada a diversos outros problemas que também suscitaram mecanismos de
disciplinação para sua contenção. Foram tidos como problemas urbanos típicos a
degradação dos costumes, as práticas dissolutas, o alcoolismo, o jogo, o crime
e as doenças associadas pelo saber médico do período ao ambiente urbano e à
chegada dos imigrantes, geralmente tidos como impuros e degenerados (relação
fortalecida pela identificação do imigrante aos movimentos anarquista e socialista)
(Rago, 1985: 11). A constante ameaça de intranqüilidade social, contaminação
física e moral, que operaria a destruição da nação e degeneração da raça, são
apontados como efeitos nocivos da nova sociedade urbana e industrial em
gestação no início do século e que cresceria assustadoramente no período em
questão.
“Indícios de uma anormalidade social, as práticas populares
de vida e lazer dos trabalhadores fabris, dos improdutivos, dos pobres, das
mulheres públicas, das crianças que vagueiam abandonadas nas ruas vão se
tornando objeto de profunda preocupação de médicos – higienistas, de
autoridades públicas, de setores da burguesia industrial, de filantropos e reformadores
sociais, nas décadas iniciais do século XX.” (Rago, 1985: 12)
Essas preocupações
se acentuaram na década de 1930. Intentava-se então a construção da
grande nação brasileira e para tanto era imprescindível o saneamento do tecido
social, visando disciplinar as dissidências e extirpar os canceres sociais.
Nesse quadro, o que ocorreu foi o crescente enquadramento
dos indivíduos em papéis sociais pré - estabelecidos. A recusa destes papeis
fatalmente conduzia o indivíduo a ser classificado como portador de distúrbios
psíquicos ou morais.
Tais preocupações não se restringiram à esfera do poder
público federal, sendo incorporadas e gestadas pelas administrações estaduais e
municipais, e mesmo pelas diversas instâncias e instituições que compunham a sociedade da época (foi intensa
a participação da Igreja Católica, por exemplo, na consecução do projeto
conservador de construção e saneamento da sociedade brasileira nos anos 30).
Em Penápolis, a questão da mendicância, da prostituição, da
criminalidade e, principalmente da loucura, suscitou a preocupação das
autoridades públicas e de grande parcela da sociedade civil. Tal preocupação
deu margem, como vimos, à aceitação do trabalho do asilo por esses segmentos.
Entendemos que tal aceitação quase que consensual do asilo em Penápolis só pode
ser explicado em função de seu papel normalizador dentro da sociedade, adquirindo
função análoga àquela desempenhada pela psiquiatria nos grandes centros urbanos
do país. A partir de uma leitura prévia das fontes de que dispomos (entre as
quais as principais são os prontuários e fichas dos internos do asilo) pudemos
perceber que, em diversos aspectos, os objetivos do tratamento dos internos não
divergiam daqueles traçados pelos demais segmentos da sociedade preocupados com
a normalização da sociedade.
Entendermos o papel desempenhado pelo Asilo Espírita
“Discípulos de Jesus” só será possível, então, se nos voltarmos para sua
experiência cotidiana, onde o pensamento e a prática espírita encontra
aplicação em situações específicas. É necessário, seguindo a prescrição de
Michel Foucault (Foucault, 1995) , voltarmos os olhos para dentro da prática
asilar espírita e, a partir do entendimento dos sentidos atribuídos à loucura
dentro de seus muros, articularmos sua atuação com a problemática urbana de
Penápolis e região, inserindo-o na complexa discussão que abarca a disciplina
cotidiana, a normalização e adestramento da população urbana e os diversos
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*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Filosofia e
Letras – UNESP – Campus de Assis – Bolsista CAPES