O Protestantismo Brasileiro
Um Balanço Historiográfico

Elizete da Silva*

Na presente comunicação pretende-se analisar o processo de constituição do protestantismo como objeto de reflexão e estudo da História. A intenção é abordar as principais correntes historiográficas e linhas de abordagens sobre o protestantismo. Dada à exigüidade do espaço e os limites de uma comunicação desta natureza, realizar-se-á  uma abordagem preliminar, privilegiando os trabalhos pioneiros elaborados por pastores e missionários: uma historiografia apologética; e, em um segundo momento, abordaremos as obras já elaboradas com uma conotação mais científica, menos confessional: uma historiografia crítica.

As incursões de protestantes no território brasileiro, durante o período colonial, ocorreram de forma esporádica e vinculadas às guerras religiosas decorrentes da Reforma Protestante e da política mercantilista da Europa moderna. Huguenotes no Rio de Janeiro, no século XVI e calvinistas em Pernambuco, no século XVII, fundaram comunidades evangélicas efêmeras, as quais duraram o tempo da ocupação francesa e holandesa.

A presença sistemática do protestantismo, no Brasil, ocorreria na primeira metade do século XIX, em decorrência de uma conjunção de fatores de ordem econômica e política, destacando-se a abertura dos portos às nações amigas, em 1808, e a imigração européia[1] a partir do período de D. João. Os Anglicanos adentraram o país como comerciantes nas grandes cidades e os luteranos, como pequenos colonos no interior da região sul. Fundaram suas igrejas para propiciarem assistência espiritual aos fiéis de origem inglesa e alemã, respectivamente. Esses dois grupos são considerados, por excelência, protestantismo de imigração.

Na segunda metade do século passado, uma segunda onda, denominada de protestantismo missionário, instalou-se no País. A política liberal, que propiciou a entrada de anglicanos e luteranos no início do século, continuava vigindo, mas outros fatores também tiveram o seu peso: uma nova corrente migratória vinda dos EUA; a expansão dos interesses comerciais norte-americanos no Brasil; para além das questões terrenas, fatores religiosos se alinharam, a exemplo do avivamento missionário, ocorrido no seio das denominações protestantes dos Estados Unidos da América do Norte. A partir de 1858, missionários de origem congregacional, metodista, presbiteriana, batista e episcopal fundaram suas igrejas no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul. Fazendo jus a sua principal característica, que é o espírito proselitista, o protestantismo missionário irradiou-se por todo o território nacional.

A partir das primeiras décadas deste século, uma terceira onda protestante, classificada como pentecostal, com as suas diversas ramificações, chegou ao Brasil, fundando, principalmente, comunidades da Congregação Cristã e da Assembléia de Deus. Dentre outros fatores, a crescente urbanização do País é um fator a ser considerado na implantação e no desenvolvimento do pentecostalismo brasileiro. No final da década de 70, o chamado neopentecostalismo, representado especialmente pela Igreja Universal do Reino de Deus, partindo do Rio de Janeiro, espalhou-se nas grandes cidades como um verdadeiro movimento inovador no campo religioso nacional.

Nas três últimas décadas observa-se, no Brasil e internacionalmente, um revigoramento do fenômeno religioso em suas mais diversas manifestações. Questionando os teóricos defensores da secularização, presencia-se um “reencantamento do mundo”, um avivamento das expressões do sagrado, coexistindo como num processo de superposição de uma religiosidade difusa, onde a convivência de tradições religiosas e recriações inovadoras ganham espaço e visibilidade social. Vive-se hoje um pluralismo religioso, no qual a religião não é mais herdada, o sentimento religioso é algo a ser buscado, práticas são construídas de vários fragmentos difusos ou de sistemas mais ou menos institucionalizados. “Um novo discurso religioso toma forma, não para se adaptar aos valores seculares e sim para voltar a dar uma base sagrada à organização da sociedade, modificando-a se preciso. Esse discurso usa inúmeras expressões para pregar a superação de uma massa falida em que os contratempos e os impasses são atribuídos ao afastamento de Deus.”[2]

O mundo contemporâneo, cada vez mais globalizado em suas relações econômicas, passa por um processo de mundialização da cultura, no qual a religião, enquanto manifestação do sagrado, também se faz presente e ativa, cimentando relações sociais e políticas. O “fator religioso” ganha novos contornos não só nas sociedades terceiromundistas asiáticas ou da América Latina; pelo contrário, trata-se de um fenômeno que adquire dimensão universal. “Até no coração das sociedades industriais avançadas, durante os anos 80, a religião mostrou uma renovada capacidade de agregação e identificação, como mostra o inesperado surgimento nos Estados Unidos do neofundamentalismo evangélico, especialmente da “Moral Majority”... e também nos países europeus mais industrializados, assiste-se à multiplicação e difusão de cultos, seitas e novos movimentos religiosos.”[3] Um tal avivamento das forças do sagrado não é um fato isolado, mas acompanha as mudanças socio-políticas vigentes num mundo onde os paradigmas, a racionalidade, as promessas do bem-estar social desmoronam e os homens estão a buscar sentido e significado, para suas existências, em outra direção, numa dimensão espiritual, que é mais estável, gratificante, imediata e pessoal.

Ao mesmo tempo ou em decorrência desse ressurgimento do sagrado em suas mais variadas instâncias, os cientistas sociais, inclusive os historiadores, estão sendo induzidos a tomar o fenômeno religioso como objeto de estudo, como um problema a ser abordado, levando-se em consideração a complexidade do tema e da sua interface com os processos sociais. No caso do Brasil, onde a academia constituiu-se de forma laica e identificando a religião com obscurantismo, os estudos sobre a religião, estão saindo tardia e gradativamente, da órbita dos teólogos e analistas religiosos para os centros acadêmicos. Dir-se-ia que a academia rompeu os juízos prévios e começa a lançar um olhar científico sobre a religião. Espera-se que não seja um olhar semelhante ao do colonizador frente às manifestações exóticas do colonizado!

Nesse processo de revigoramento religioso brasileiro nota-se, de forma enfática, a contribuição dos grupos reformados. O modesto crescimento das primeiras décadas deste século cedeu lugar para um expansionismo evangélico nunca dantes presenciado no “maior país católico do mundo”. A melhor performance quantitativa encontra-se entre as denominações de origem pentecostal ou carismática. Uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro, entre 1990 e 1992, atestou que “as igrejas evangélicas totalizam 63% das organizações criadas no triênio, numa média de 5 por semana ou o equivalente a uma nova igreja por dia útil”[4]. Não cabe aqui um aprofundamento sobre as razões desse crescimento vertiginoso, certamente vinculado à pauperização e desorganização urbana das grandes cidades, mas apenas constatar que tal crescimento tem sido um elemento a despertar o interesse de pesquisadores do fenômeno religioso.

O protestantismo de origem pentecostal ou neopentecostal tem tido tanta visibilidade que, além do uso da grande mídia para veicular mensagens e reforçar essa própria visibilidade, tem sido objeto de referência na recente produção cultural do país. O filme Central do Brasil, que ganhou notoriedade internacional entre os críticos da 7ª arte, apresentou uma personagem protestante, o motorista César, vivido por Othon Bastos, que oferece carona para os protagonistas (Dora e Josué), o qual não bebe bebida alcóolica e teme um maior envolvimento com uma mulher tão livre e desprendida. Em Orfeu, além da glamurização da miséria dos morros cariocas, o diretor também constrói uma personagem protestante, o pai do protagonista, vivido de forma magistral por Milton Gonçalves, um neoconvertido, ex-sambista de escola de samba e freqüentador assíduo da congregação evangélica que está fincada no morro, a qual, em meio à miséria, à carnavalização e aos amores contrariados, faz culto e proselitismo entre os moradores. Por razões mercadológicas ou sociológicas, os produtos culturais têm contemplado uma nova fatia da população que tende a crescer e a ganhar importância demográfica e política.

O crescimento e a visibilidade dos diversos grupos protestantes, de origem pentecostal e carismático, no País em geral, têm despertado o interesse crescente de sociólogos e antropólogos, dispostos a desvendar os mistérios do expansionismo e do potencial político que eles demonstram. Infelizmente o protestantismo histórico, representado pelas denominações de origem de imigração ou missionária, não tem seduzido tanto os cientistas sociais e historiadores, mas, na esteira desses interesses pelos grupos carismáticos, alguns trabalhos têm surgido. Para o estudo dos novos e dos antigos grupos religiosos a interdisciplinaridade é fundamental: a Sociologia e a Antropologia terão que buscar na História apoio,  em períodos mais recuados, na busca de respostas ou de outras indagações, nexos e fatores que contribuam para o entendimento do problema protestante no Brasil, um verdadeiro desafio que ultrapassa as respostas prontas e/ou aligeiradas.



* Doutora em História e professora da UEFS/Ba.

[1] BEOZZO, J. Oscar. As Igrejas e a Imigração in DREHER, Martin. Imigrações e História da Igreja no Brasil. Aparecida. Santuário. 1993

[2] KEPEL, Gilles. A Revanche de Deus. São Paulo. Sicilianos. 1992. 1992 p. 12.

[3] MARTELLI, Stefano. A Religião na Sociedade Pós-Moderna. Entre Secularização e Dessecularização. São Paulo. Paulinas. 1995, pp. 9/10.

[4] FERNANDES, Rubem César. Governo das Almas in Nem Anjos nem Demônios. Petrópolis. Vozes 1994 p 166.