Considerações acerca de uma
Promessa a São Gonçalo do Amarante no Município de Echaporã-SP.
Sanches Júnior, Nelson Martins·
Unesp
A presente comunicação busca extrair
elementos para a interpretação de uma promessa oferendada a São Gonçalo do
Amarante, como pagamento de uma graça recebida por um casal de roceiros, no município de Echaporã - SP em julho de
1998.
Pretende-se analisar a origem da devoção ao
santo e suas características em solos paulistas; a fidelidade para com a
promessa a ser paga; as relações de poder entre rezadores, encomendeiros e
representantes do catolicismo oficial; a musicalidade, coreografias da
festa e distribuição das funções e
requisitos para a manutenção da mesma.
Esta manifestação da religiosidade popular
tem deixado de ser praticada na região. Apenas um determinado grupo de folias de reis de Palmital -vale do
Paranapanema é que ainda tem dado conta
de realizá-la, cumprindo a paga de promessas até de pessoas falecidas como no
caso acima.
BREVE INTRODUÇÃO SOBRE AS CARACTERÍSTICAS
DA DANÇA DE SÃO GONÇALO
A presença da devoção a São Gonçalo do
Amarante no brasil circunscreve-se aos estados de: Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Goiás e Pernambuco e
Alagoas e tem sua origem no culto ao
próprio santo, o qual já era praticado em Portugal no séc. XV. O culto ao santo, no Brasil deu-se através dos
portugueses decisivamente no século XVIII na Bahia. Trata-se de dança
coreográfica intercalada de momentos de oração e de sapateados a qual é acompanhada
pelo bater das mãos sincronizadas ao
som de violas, violões, pandeiros e
adufes.
A festa geralmente pode ser realizada a qualquer momento do ano e representa uma relação de reciprocidade: DO UT DES “Dou a fim de receber alguma coisa em troca” (Queiroz: 1958:
113); embora o dia do santo configure-se em 10 de janeiro. O que é pedido ao
santo é a cura de doenças das pernas, quando não súplicas casamenteiras para
velhas ainda não desposadas.
Câmara Cascudo nos dá a informação de que o
santo teria uma vocação para corrigir o comportamento de mulheres de “vida
desregrada” e “dançara com elas alegremente , mas tendo sapatos de pregos que o
feriam nos pés” (Cascudo: 1962: I: 349). Vendramini nos dá outra versão de que
São Gonçalo teria sido incumbido de entregar os órgão genitais externos às
mulheres, quando aqui chegou encontrou os homens e mulheres em festa e na falta
de violeiros que continuassem a tocar
ofereceu seus préstimos. Tocou sua viola até o meio-dia - hora do fim da
desobriga e assim, quando retornou ao céu foi agraciado com uma dança em seu
nome (Vendramini: 1976: 46).
Uma versão que me foi dada quando da coleta
dos dados desta promessa por um de seus cantadores fala que São Gonçalo teria
“descido” com a mesma incumbência, só que arrebatado pela festa, esqueceu-se de
entregar os órgãos genitais às mulheres e “pegou a cantar com sua viola”.
Quando se deu conta os homens haviam se apoderado dos órgãos genitais e o santo foi punido por São Pedro.
Esta versão demonstra um caráter
diferenciado, pois contrasta o “santo” enquanto enviado divino e com uma
missão, e seu caráter “anárquico” e festivo típico da sociedade brasileira
dotado de uma irresponsabilidade para com os assuntos celestiais, porém,
arraigado com o espaço mundano e portanto profano da festa e da dança. Tais
explicações fornecidas pelo povo que o cultua justificam a popularidade de
casamenteiro, padroeiro dos violeiros e também da fertilidade humana.
Devemos lembrar que as características
atribuídas a esse santo popular aproximam-se bastante das exercidas pelos exús
do candomblé onde o mesmo é tido como mensageiro indispensável entre os homens
e as divindades que preside à
fecundidade, cuja dança reflete esse ato vital. A esse respeito, na região do
alto rio São Francisco é possível ainda encontrarmos relações bastante próximas
entre as duas divindades, pois lá o ato feminino de esfregar o santo junto ao
corpo do devoto proporcionaria-lhe a fertilidade, o que representa também uma
coreografia dos exús do candomblé.
A coreografia da dança de São Gonçalo é
bastante próxima da que apresentam as danças de catiras e cururus e da dança de
Santa Cruz - hoje presente ainda na aldeia de Carapicuiba - SP, e que consiste
de alternâncias entre rezas de terços cantados (cinco mistérios, uma
salve-rainha e a ladainha de nossa senhora), quando então são entoados os
versos de oferenda a São Gonçalo, improvisados na hora, e que constam de uma
saudação ao dono da casa ou festeiro, à louvação do santo, intercalando-se o
bater de mãos e de pés, acompanhados das texturas musicais das violas,
comumente afinadas em EM,
(Mi Maior Natural) ou em G (Sol Maior
natural). O improvisos enquadram-se sincopadamente em um compasso simples de
2/4, dentro de uma seqüências de harmonias em B7 (Si com Sétima), A (Lá Maior) e EM ( MI Maior) com solos de
viola aleatórios realizados na escala de E (Mi), defronte a um altar
improvisado em um galpão ou sala, no qual coloca-se a imagem do santo adornada
com fitas coloridas, flores e velas, e onde se vem cantando e sapateando o
cururu, beijando o altar e retornando de frente, sem dar as costas ao santo,
voltando ao final da fila para reiniciar a cantoria. Em alguns lugares as
mulheres dançarinas podem “sequestrar”o santo dançando com a imagem que é
passada de mão em mão.
Maria Isaura de Queiroz (1958) realizou
estudos sobre a dança de São Gonçalo no povoado de Santa Brígida - BA, no
entanto, as festas realizadas no
sudeste brasileiro apresentam características diferenciadas daquela região,
compondo quadros coreográficos e motivados por pequenas alterações, como o dançar
mais espontâneo das mulheres na região nordeste, o que não ocorre na região
sudeste por influências do catolicismo oficial, que prega um comportamento invirtuoso para as mulheres que dançam uma
dança profana, acompanhada por homens, ainda mais quando o santo padroeiro em
questão é padroeiro dos violeiros e consagra a fertilidade como atributo
principal de sua sobrevivência.
A dança de São Gonçalo em Echaporã - SP
Após um breve histórico da origem e das
características da festa de São Gonçalo, partiremos para a interpretação das
informações colhidas em nossa pesquisa de campo, quando então a presenciamos no
município de Echaporã - SP, distante 440 quilômetros da cidade de São Paulo,
entre as cidades de Marília e Assis. A princípio pensamos em encontrar uma festa ou oferenda nos mesmos moldes em
que ela ocorre no resto do país,
todavia, em pleno Oeste paulista, região que não partilha do isolamento
relativo para com os meios de comunicação, sendo que o agricultor de menor
poder aquisitivo ainda, que com esforço tenha em seu domicílio uma televisor,
sabe dos atrativos da indústria de consumo e de seu aceno e a ele não fica
impune.
O sítio em que realizamos nossa coleta em junho de 1998 distanciava-se sobretudo
da idéia de uma “modernidade” ou melhor renunciava a ela. Seus moradores Sra.
Josina dos Santos Barbosa e Sr. João dos Santos Barbosa então com aproximadamente 74 e 68 anos respectivamente solicitaram a presença de uma companhia de reisado da cidade de
Palmital (Companhia de Adão Faceiro), a qual ainda mantém a devoção e conhece a
estrutura do ritual a São Gonçalo, herança de sua origem mineira. A “paga”
resumia-se, a uma graça de cura (doença de pernas) recebida há vinte e quatro anos pela sua madrinha de
casamento, feita pela seu sogro, o qual já falecido não pudera realizar.
Até aqui, nosso campo restringiu-se à
simples observância da tradição, não fossem as condições que tornam nossa
pesquisa peculiar. Todavia, alguns elementos são necessários para que as formas
folclóricas mantenham-se mais ou menos estáveis tais como pudemos observar na
área analisada (residência do festeiro), e que são: ausência voluntária à
implantação de energia elétrica e eletrodomésticos (mesmo movidos à diesel); o
isolamento dos integrantes da propriedade para com o mundo exterior e o apego a
tradições mais “dos antigos”.
A festa
ou desobriga, como em nosso caso, realizou-se nos mesmos moldes das
festas anteriormente descritas, sobretudo na estruturação musical, apresentando
apenas como referencial direcionador a constância dos cânticos em saltos de
oitavas ( EM - EM), de terças ( EM - A)
e de quintas ( EM - C), nos “artões” como são chamados os pontos de
“clímax” das cantorias ou mais agudos, tidos como refrões, sendo que apesar de
os versos surgirem “espontaneamente como um de nossos entrevistados falou
“iluminação divina”, estes não diferenciam-se muito dos que estão presentes em
outras coletas. Como por exemplo:
- em Echaporã:
“Padre, Filho, Espirito
Santo, esse é o primeiro verso que pra São Gonçalo eu canto, ora viva, ora
viva, que prá São Gonçalo eu canto..ai, ai.
- em Alagoas segundo Queiroz (1958):
“nas horas de Deus, Ó meu padi, filho,
espirito santo, Deixa me bejá primeiro, prá sabe cúm quem io canto..”
Apesar do distanciamento
entre os pontos de coleta, ambas são em suas estruturas parecidas,
considerando-se que uma foi coletada em 1958 e a nossa em 1998.
O uso de bebidas alcóolicas
foi ordenado em Echaporã, sendo que a mesma (cachaça) também era fabricada
pelo proprietário e foi retirada do
subsolo do quintal da casa e distribuída com moderação antes do ritual
propriamente dito “desobriga” e da “comilança” típica da gastronomia caipira.
Juntamente conosco foi
levado um padre (Pe. Afonso Maurílio - Tarumã - SP), representante do
oficialismo da igreja católica o qual teria a incumbência de “legitimar” o ato
da desobriga, e que extraordinariamente
agiu, de forma diferenciada
acordando com os atos pré-determinados pelos rezadores ou encomendeiros,
ou melhor especificando, o Sr. José Fortunato (Tarumã - SP). - rezador do terço
cantado e que presidiu os “trabalhos”.
A análise maior consiste no
fato da cultura popular, neste caso, sobrepujar-se à importância de um
representante da igreja católica oficial a ponto de: o rezador ordenar ao padre que lesse determinado trecho da bíblia sem
previa consulta, apenas pelo mesmo
fazer parte do que achava correto naquele instante. O pároco humildemente
aceitou e acatou, porém, isto não é o
comum, na maioria das vezes acontece um
confronto de poderes entre o rezador ou encomendeiro e o clérigo, mesmo que
este último tenha uma função secundária dentro do ritual, apresentando-se como
uma incorporação atual nestes rituais, pois a sua presença não é corriqueira e
necessária em outros registros que pesquisamos.
Este fato acaba por
legitimar o ato em si, uma vez que o rezador do terço cantado ou o puxador de
cantorias do São Gonçalo necessita da “presença” e do “oficialismo” da Igreja
Católica mas não de sua interferência
no ritual.
Aliás há de ressaltar que a ordem hierárquica aqui
fica estabelecida de forma clara constando:
Promessa:
graça
Encomendado: tio falecido Festeiro ou
pagador => São Gonçalo
Encomendeiros - violeiros e
rezadores
legitimador:
padre
Ao mesmo tempo que o poder
oficial da igreja não pode transpor ou encontra-se de certa forma banido de uma
atuação maior, como ocorre na maior parte das vezes nas festas e folguedos
populares, ele também não pode ser descartado totalmente, pois legitima o ato.
Sua atuação transcorre como a de um juiz que a tudo vê e ao final do julgamento
promulga a sentença final já esperada por todos.
Podemos concluir que a paga ou desobriga à São Gonçalo do
Amarante na região estudada reflete a presença do culto em suas formas
originais, contrastando apenas a presença de um representante oficial da igreja
católica. Parece-nos que apenas os mais
idosos compartilham da devoção ao santo, sendo que mesmo os convidados
(vizinhos) para a desobriga, a viam com
pouca credibilidade ou mesmo desconheciam o ritual, razão também da quase
ausência de mulheres dançarinas.
Estas formas ritualísticas só podem ser
concebidas quando condições específicas demonstram sua possibilidade, como a
rejeição aos elementos que representam o mundo moderno, sendo o mesmo encarado
como apocalíptico e corrompido pelo festeiro, justificando sua aversão.
A forma ritual que presenciamos tem sua
origem em Minas Gerais pelo que vimos, tendo sido trazida por mineiros e
praticada por eles na região, pois é mais raro encontrá-la no vale do
Paranapanema.
A mediação entre o catolicismo rústico e o
oficial aqui é amenizada pelo objetivo comum da festa, e pelo que vimos, na
hierarquia da mesma, o representante da igreja católica coloca-se em um plano
inferior ao dos rezadores e dos violeiros, apenas sua função é a de legitimar o
ato.
Segundo as informações que nos foram
passadas pelos cantadores tais festas realizam-se esporadicamente e tem tornado-se rarefeitas com o passar dos
anos.
Bibliografia:
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Itatiaia-INL, 1982.
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________ O messianismo no Brasil e no mundo. SP: Dominus Editora, 1965.
_________Messias, taumaturgos e dualidade católica no Brasil. In Religião e
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Vendramini, Maria do Carmo. A dança de São Gonçalo em Ibiúna. In
Revista Brasileira de Folclore, SP: maio/agosto de 1976, ano XIV, nº 41, p. 45-74.
· Sanches
Júnior, Nelson Martins, aluno do curso de pós-graduação em História, nível
doutoramento da Faculdade de Ciências e Letras Unesp - Assis, músico, violeiro
e pesquisador da cultura popular rural o Vale do Jequitinhonha-MG..