O metodismo e a ordem social republicana

 

Vasni de Almeida[1]

RESUMO: Este estudo está voltado para os códigos de comportamentos, posturas institucionais e condutas individuais e coletivas que formaram o escopo social metodista em seu envolvimento na ordem política instaurada em 1889.  O discurso sobre a ordem social, recorrente na literatura metodista da primeira metade do século XX, é analisado enquanto componente de um encadeamento sócio-cultural mais amplo, que perpassava em diferentes instituições  comprometidas com a modernidade requerida nos espaços urbanos em desenvolvimento. A insistência desses protestantes em divulgar suas concepções sobre  temas como higiene, saúde, hábitos alimentares, entre outros, revelam os percursos religiosos e educacionais identificados com setores sociais envolvidos na constituição de uma ordem que se pretendia inovadora.

 

  

            Este artigo apresenta o envolvimento dos protestantes metodistas no processo de desenvolvimento social e cultural pensado e articulado pela elite intelectual brasileira nas primeiras décadas do século XX[2]. Para tanto, tomamos como fonte textos publicados no jornal Expositor Cristão (EC), na revista Voz Missionária (VM) e na revista infantil Bem-Te-Vi, dos quais emergem normas de convivência social e regras de condutas individuais e coletivas consideradas pelos metodistas como pilares de uma sociedade “moderna”.  Os saberes divulgados sobre a moralidade nos costumes e hábitos sociais não serão analisados somente pelo caldo moralizador puritano que cerca a religiosidade protestante brasileira desde sua implantação no país, mas também enquanto componentes de um conjunto de propósitos desencadeados pelo conjunto de instituições envolvidas no processo de instauração e continuidade do sistema republicano de governo – sistema esse que  carreava para as decisões administrativas as ideologias de grupos que pensavam a organização da sociedade em moldes conservadores, porém distintos do tradicionalismo cultural até então verificados.

            As intenções dos metodistas e suas propostas de ordem social são, dessa forma, analisadas aqui como integrantes de um encadeamento social mais amplo, que perpassava por diversas instituições e grupos comprometidos com a ordem política instaurada em 1889. Os discursos de clérigos e lideranças leigas sobre regras de condutas e comportamento social, exaustivamente publicados em seus meios de comunicação, destinados tanto para os membros da Igreja Metodista quanto aos demais leitores, revelam um compromisso com a ideologia da “ordem e progresso” instilada pelos setores dominantes da sociedade. Nossa pretensão, nesse sentido, é propiciar uma abordagem que, ao não se restringir à idéia de que todo conteúdo moralizador é parceiro do autoritarismo paternalista, possibilite visualizar, na visão de mundo dos protestantes sobre a moralidade e conduta, sinais de um comprometimento com a modernidade nas relações sociais. Cândido Procópio Camargo, há muito tempo, alertou sobre os cuidados em não impingir aos protestantes uma faceta estreitamente moralizadora, pois,embora o protestantismo estivesse aquém das instituições que propugnavam por modificações mais profundas na estrutura política do país, ele “se apresentou, em determinados momentos históricos, como agente de mudança social” (1973, p. 144).

 Não estamos, com essa proposta de interpretação, contudo, negando o conflito e as tensões que envolvem qualquer envolvimento social de uma instituição religiosa. O que estamos reiterando é que posturas sociais reveladas trazem em seu bojo intenções diversas, justificando, no mesmo movimento pendular, o poder dominante que as articula  e as iniciativas de instauração de um novo modelo de sociedade a partir das especificidades religiosas. Ainda que sem propósitos políticos racionalmente definidos, sem a preocupação em romper com estruturas dos poderes vigentes, esses evangélicos foram envolvidos no processo de civilidade percebida em diferentes camadas sociais, mais perceptível nas camadas médias em ascensão, para quem novos hábitos e condutas seriam motivações para uma nova ordem. Essa participação na “rede de tecido”, lentamente constituída ao longo do século XIX e anunciada com força no início do período republicano, será, assim, perquirida por meio de autores que se incumbiram de estudar as relações entre os comportamentos sociais e os objetivos do poder público em fases de grandes mudanças políticas e econômicas.

O conceito de processo civilizador, empregado por Norbert Elias no estudo das transformações culturais e sociais européias, na passagem da Idade Média para a Moderna, orienta-nos na compreensão das mudanças sociais, notadamente no que diz respeito aos comportamentos coletivos nos ambientes urbanos, ocorridos na sociedade brasileira nas primeiras décadas do século passado. Se, nos trinta primeiros anos da experiência brasileira de sistema republicano, uma ordem política e econômica estava substituindo uma outra mais pautada no compadrio, era necessário que essa mudança fosse acompanhada de novos comportamentos sociais, tanto na esfera pública quanto na privada, tendo em vista novas posturas exigidas no campo administrativo/tecnológico e as complexidades verificadas nas interdependências entre camadas sociais próximas ao poder estabelecido. Ações dos religiosos metodistas no combate ao alcoolismo, ao tabagismo, na divulgação de normas de higiene doméstica e de comportamentos individuais e coletivas revelam uma identificação com processos de regulamentação de condutas formativas de uma sociedade em que ser civilizado era se apresentar bem aos olhos dos outros. Os convertidos ao metodismo deveriam se apresentar à sociedade de forma diferenciada, pois, além de tudo, estava em jogo uma competição religiosa, encetada com os católicos, espíritas (não menos com tendências filosóficas e políticas). Os cuidados com o corpo, com o vestuário, com as formas de entretenimento, o asseio e o controle do orçamento familiar eram condutas decantadas como diferencial religioso. Ser o que o outro não pretendia ser, dadas as circunstâncias culturais, era a possibilidade de obter prestígio social, solidificando assim o seu  espaço religioso. A competição, uma ação própria das camadas sociais e grupos sociais em conflito, impele para o controle de condutas, tornando-se o autocontrole um hábito na busca de poder e prestígio (ELIAS: 1994, vol. II, p. 211).

Os missionários e missionárias norte-americanos fundadores de igrejas e escolas metodistas no Brasil, tanto na segunda metade do século XIX quanto na primeira metade do século XX, estavam convictos de que eram agentes a serviço da implantação da civilização no país escolhido como campo de missão. As suas ações religiosas  e educacionais visavam expandir uma visão de mundo segundo a qual uma realidade resultante do sucesso obtido no seu país de origem poderia ser instaurada em seus locais de atuação. Pretendiam instituir novos comportamentos, tencionando compor uma ordem social acalentadora de princípios condizentes com os desígnios divinos, caminho que, para eles, seria o único possível para se alcançar a “salvação eterna”. Novos comportamentos, novas posturas e novos hábitos, filtrados pela crença e cultura religiosa protestante seriam os alicerces a sustentar uma sociedade que se pretendia moderna e civilizada. Quem não se encaixasse nessa visão de social e religiosa, era entendido como atrasado, havendo pois, a necessidade de combater suas práticas e princípios. A noção de civilização com a qual julgava suas ações e a de seus desafetos era a que permeava a cultura anglo-saxônica, onde o comportamento se projeta na realização e está em constante movimento. Civilidade, assim, tem caráter expansionista e com extrema preocupação com a superfície dos atos e seus conseqüentes sucessos (ELIAS: 1994, p. 25).               

 

A conduta gerando a ordem

           

            Entre todos os perigos que os metodistas encaravam como fatores de “atraso da nação”, o mais destacado e o mais combatido, estava o alcoolismo, mesmo porque o cuidado com o corpo era um dos principais desdobramentos da doutrina wesleyana da santificação, na qual um corpo sadio significa um sinal vivo da ação humana na busca de um viver perfeito (WESLEY: 1984, p. 104). Nas Atas das Conferências, nas mais diversas literaturas de catequização e nas páginas do seu jornal transbordam títulos que tratam do tema. Bastava uma autoridade da área médica levantar problemas em relação ao consumo de bebidas alcoólicas e lá estavam os redatores a postos para a publicação de textos de palestras, debates, campanhas e determinações dos poderes públicos. O reverendo James L. Kennedy, no início de fevereiro de 1903, tratou de fazer chegar até as páginas do Expositor Cristão, do qual era redator, um manifesto conjunto das Associações Médicas de Temperança, dos Estados Unidos e da Inglaterra, e da Sociedade de Médicos  Alemães e Franceses tratando dos efeitos do alcoolismo nos indivíduos e na sociedade. Como era de se esperar, foram destacadas as condenações dos médicos ao consumo de bebidas alcoólicas, reafirmando que os seus consumidores tendiam  a apresentar um “sistema nervoso instável”, com “depressão mental, moral e física para o ser”. A autoridade médica foi assim evocada na tentativa de se instaurar uma sociedade “próspera e feliz”, pois, na visão desse dirigente religioso, manter um corpo sadio significaria estar mais próximo de uma sociedade ajustada do ponto de vista cultural protestante (EC, 12.02.1903, vol. XVIII, n. 6).

                    No final de março de 1903, na esteira de um panfleto adquirido junto à Assistência Pública Francesa, o reverendo novamente publicou uma extensa relação dos malefícios em conseqüência do consumo de álcool, com destaque para a afirmação que acreditava ser a mais contundente na erradicação do vício: “O hábito de beber arrasta a desafeição da família, ao esquecimento dos deveres sociais, ao aborrecimento ao trabalho, à miséria, ao roubo, ao crime”. O artigo segue anunciando as doenças decorrentes da embriaguez. O discurso religioso metodista procurava, assim, estar ancorado no discurso médico, tendo em vista a sua legitimidade perante o público. O puritanismo protestante, não no sentido da tendência religiosa, mas em relação à purificação dos hábitos individuais e sociais, emerge com força dos textos direcionados ao combate ao consumo de bebidas destiladas e ao fumo. Ele sinaliza para o modelo de uma sociedade em bases conservadoras, disso não se tem dúvida. No entanto, é necessário perceber no combate encetado a especificidade do momento político, econômico e cultural experimentado, e é ele que indica ser a manutenção da saúde um fator de avanço social. Saúde física exemplar não era decididamente prerrogativa de metodistas, presbiterianos, batistas e demais protestantes. A mesma disposição para defender o corpo é com facilidade encontrado nos discursos de católicos, espíritas e associações beneficentes da época, basta olhar a infinidade de Ligas Anti-Alcoólicas que proliferaram nas décadas iniciais do século XX. O que estava em jogo era a necessidade de novos comportamentos individuais e coletivos, tendo em vista fortalecer o momento político e econômico instaurado, ou mesmo constituir novas relações políticas e produtivas a partir de novas condutas sociais. Uma ação estava imbricada na outra, eram, enfim, interdependentes.

                    A insistência dos clérigos metodistas na cruzada contra o consumo de bebidas alcoólicas e contra o tabagismo era justificada pela crença de que o corpo era a morada do espírito e se não poderia ser corrompido; dado o perigo da perdição eterna, era melhor cuidar para que ele residisse em lugar seguro. Essa argumentação de caráter teológico era desdobrada enquanto contribuição do protestantismo às aspirações das camadas médias em via de expansão econômica e social. Se as camadas médias buscavam uma modernidade pautada na ordem, na segurança e na proteção de seus interesses, a moralidade pregada tinha um papel a cumprir, com o seu discurso metodista sendo construído na tentativa de granjear a confiança dessas camadas. Os gradientes valorizados para a constituição de uma sociedade ordeira, sem crimes, cadeias, hospícios, com elevado padrão físico e moral estavam presentes em várias campanhas desencadeadas por escolas e igrejas metodistas espalhadas pelo país (EC, 28.11.1918, vol. 32, n. 47). Cândido Procópio Camargo apontou com acuidade a identificação entre os padrões de comportamentos exigidos de um crente protestante e os hábitos valorizados pela “classe média urbana”. Ao assumir condutas semelhantes aos de uma sociedade propagada como progressista e ordeira, as camadas médias esperavam consolidar moral pública e privada representativa do prestígio que aos poucos alcançavam. O autor ainda chamou a atenção para o fato de que a ética protestante introduzida no país, legitimada pelo comportamento exigido dos conversos, permitiu que os protestantes atuassem na sociedade desempenhando papéis mais dos que os até então predominantes (1973, p. 143).

                    No início de março de 1903, Kennedy abriu espaço no Expositor Cristão para um artigo ríspido contra o “jogo do bicho”, de autoria do reverendo Martinho Oliveira. O texto, pontuado de frases condenando tal prática  (aliás, muito praticada pela população), colocava  nesse jogo de azar a culpa pelo atraso do país, pela imoralidade na qual estava envolvido e, sem meias palavras, culpava-o de ser ele e outros similares uma vergonha nacional. Exagerado na questão, como era de se esperar de um protestante ortodoxo, o clérigo não eximia essa ou aquela camada social, esse ou aquele indivíduo, fosse ele rico ou pobre: todos os que eram dados a jogar por dinheiro, sob a permissão ou não das autoridades públicas, estariam a macular “os brios da nação”. Aqui está o ponto nodal do discurso desse religioso e do jornal que possibilitou a sua publicação: o jogo considerado de azar era concebido como um dos elementos a impedir a ordem social ideal para o sistema republicano recentemente instalado. A República não seria verdadeira se não estivesse ancorada na moralidade e nos hábitos culturais que irrigavam o ideal de sociedade representada no discurso protestante. Para que o sistema político tivesse a credibilidade desejada junto aos fiéis protestantes, o poder público deveria não apenas manter a ordem nos locais de apostas do citado jogo, mas assumir o compromisso pela sua total eliminação. Evocando sentimentos que em certa medida eram os mesmos de uma sociedade que vivenciava os primeiros sintomas das transformações econômicas e políticas em curso, o reverendo solicitou, junto ao “governo da nossa República”, o banimento da “jogatina imoral, que tanto têm prejudicado os nossos princípios na marcha da ordem e do progresso” (EC,12.03.1903, vol. XVIII, n. 10).

O controle de condutas proposto pelos metodistas, tendo em vista equiparar a ação dos seus conversos e da sociedade como um todo ao momento político e econômico no qual o país ingressara, indica um envolvimento social, já que a conduta exemplar perseguida era, no jogo social, resultado das ações de outros, fossem esses parceiros ou inimigos de caminhada. Quanto mais as ações de uma instituição se sintonizam com outras, maior rigor se exige na sua condução, passando essa a ter um caráter social, dado que o seu estímulo reside também nas ações dos demais componentes sociais (ELIAS: 1994, vol. II, p. 196).

Os metodistas, ao divulgarem comportamentos caros às camadas médias que se enriqueciam no comércio urbano e na prestação de serviços, estavam convictos de que os valores sociais requeridos ecoariam na sociedade, com as respostas esperadas aparecendo no decorrer do tempo. Havia uma certa cumplicidade entre os propósitos culturais dos metodistas e os desejos de desenvolvimento cultural e social das camadas médias em ascensão. Camadas sociais estabilizadas ou em ascensão, alerta Norbert Elias, apreciam condutas e hábitos corretos, pois estas estão relacionadas ao que há de mais “moderno” e “civilizado”, havendo, pois, na sua execução, possibilidades de adquirir status social capaz de coroar a posição econômica granjeada. 

                    Os clérigos não descansavam quando se tratava de projetar a sociedade que consideravam ser a ideal, segundo seus princípios culturais e religiosos. Asseio, saúde, trabalho, obediência eram valores que expressavam a disposição para uma prática de vida santificada, um dos pilares da teologia wesleyana que naquele período sinalizavam para o compromisso social com as sociedades que acolhiam suas igrejas  e escolas, não deixando de ser, dentro das circunstâncias, um envolvimento com a economia, com a educação e com a política do país. Todo o esforço, toda a oportunidade se apresentava como única na denúncia dos hábitos e costumes considerados “inimigos” da “civilização”. O jogo de azar ou qualquer outra competição esportiva com fins lucrativos eram concebidos como verdadeiras afrontas à modernidade. Se o resultado financeiro de um jogo qualquer não fosse dividido igualmente entre todos os participantes (o que na verdade o descaracterizava), sua prática era motivação para o ataque verbal dos metodistas. Com feroz crítica, Kennedy e Fonseca se posicionaram quanto ao jogo de loteria em texto publicado em novembro de 1911, oportunidade em que afirmaram que “só o trabalho honesto é a base do progresso e da prosperidade de todas as nações” (EC, 30.11.1911, vol. XXVI, n. 45).

                    A crítica ao jogo está fundamentada na idéia da construção de uma sociedade alicerçada nos valores culturais arraigados no protestantismo missionário norte-americano transplantado para o Brasil, onde a religião e o progresso social eram sinônimos, os dois lados de uma mesma moeda. O trabalho seria um dos fatores de regeneração social, pois se exercido de forma racional e objetiva, seguindo os princípios éticos do cristianismo e a jurisdição de cada país, estaria a serviço da consolidação da nação – no caso, da ordem republicana.

 

A higiene como fator de mudança

 

                    Não era incomum, no entusiasmo do momento em defender o modelo social idealizado, os metodistas se distanciarem dos princípios caritativos cristãos que marcaram o movimento wesleyano em seus primórdios. Os editores do jornal Expositor Cristão, ao comentarem as medidas administrativas do governo municipal do Rio de Janeiro, RJ, quanto a indigência, inclusive publicando-as na íntegra, foram pouco caridosos ao afirmarem que era pura “vergonha deixarem-se os cegos, aleijados e defeituosos de todas as espécies, incluindo uma infinidade de vagabundos e criminosos, andar pelas ruas de nossas ruas, explorando a caridade pública” (EC,26.03.1903, vol. XVIII, n. 12).

                    Depois dessas duras expressões, os editores alegaram que a esmola na rua não era o melhor procedimento para tratar da mendicância, sendo necessário direcionar os valores das esmolas e os pedintes aos asilos e hospitais preparados para a tarefa. Ainda que a justificativa tenha sentido, não há como negar que na ordem urbana concebida pelos defensores do sistema republicano instaurado, nos espaços públicos especificamente, não havia lugar para aqueles que compunham os resultados diretos das transformações econômicas em curso no país. Manter a ordem urbana significava isolar quem maculasse a  imagem que dela se queria ter.

                    No primeiro trimestre de 1930, um texto sobre a lepra foi elaborado a partir de informações colhidas junto a Alice de Toledo Tibiriçá, presidente da Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, e publicado no revista Voz Missionária como material de consulta, tanto para as associadas quanto para as leitoras  esporádicas. O tema é introduzido fazendo referência aos  bíblicos quanto as posturas dos cristãos em relação aos contaminados pela doença. A caridade cristã é evocada, tendo em vista angariar recursos financeiros para as organizações filantrópicas de apoio aos hansenianos. Porém, o que mais chama a atenção, além da preocupação das mulheres para com os doentes, é a solução apresentada como ideal para erradicar a doença e evitar o contágio de uma quantidade maior de pessoas. Temerosa diante dos números apresentados pela Diretoria do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, onde para cada dois mil habitantes havia duas pessoas contagiadas, a redatora do texto defendeu a aplicação da “lei do isolamento”, evitando assim que “bandos de morféticos que viviam mendigando” aumentassem as estatísticas do governo. A justificativa para tal ação foi assim sustentada no binômio necessidade/dever: necessidade em fazer desaparecer os sinais de contágio e dever de dar “conforto e assistência em sua infinita desventura!” (VM, ano I, n. 2, 1o. trimestre de 1930).

            A defesa do isolamento dos doentes, ainda que motivada por intenções morais do cristianismo, estava eivada de princípios médicos circulantes entre as esferas do poder público e camada sociais privilegiadas. Havia um desejo latente na sociedade e premente nas associações médias em erradicar, a todo custo, as mazelas que davam ao país a sua fama de atrasado. Outra solução proposta pelas articuladoras do texto foi a de tratar o tema nas escolas através da “preleção dos professores sobre as manifestações da lepra, seu contágio e a probabilidade de cura”. Analisando as estratégias de higienização das escolas propostas pelos médicos-higienistas desse período, Heloisa Helena Pimenta Rocha destaca que esses profissionais se apresentavam como portadores de uma “nova ciência”, “capaz de redimir todos os males, regenerando o homem e a sociedade”, assumindo a “responsabilidade pela “articulação de estratégias” de intervenção na sociedade (2000, p. 6). Essa autora se incumbe ainda de apresentar uma discussão sobre a influência da filosofia da Higiene, em voga na Europa no século XIX, na conformação, por meio da educação, dos indivíduos “à disciplina higiênica” (2000, pp. 6/10).

                    Na coluna denominada “O Lar”, do Expositor Cristão, T. H. Lander, esposa de renomado missionário norte-americano, publicava textos relacionados aos valores sociais considerados pelos metodistas como pilares da ordem republicana, que em muito se assemelhavam aos defendidos pela intelectualidade e administradores públicos com ela comprometidos. Em artigo publicado no final de junho de 1911, com título significativo – “O valor da limpeza”, a autora faz elogios às autoridades brasileiras pelo cuidado para com as estruturas físicas das cidades, para com alguns projetos de embelezamentos urbanos e para com os comunicados oficiais sobre os hábitos de higiene coletiva. Depois de um breve comentário sobre a necessidade da ordem nos espaços públicos, a autora adentrou naquilo que considerava como ideal de higiene doméstica. Com sutileza, afirma que a manutenção de uma sala de visitas  em ordem era a melhor maneira de uma família recepcionar um visitante; no entanto, era necessário não esquecer a organização dos outros compartimentos. Seus conselhos afunilam até chegar ao seu propósito principal, costurado desde o início do texto – a qualidade do ar no ambiente interno da residência. Para ela, compartimentos arejados era sinônimo do “ar que alimentava toda a família”; para tanto, nenhum cheiro ou sujeira poderia existir dentro ou fora de casa (EC,29.06. 1911, vol. XXVI, n. 26).

                    Dois princípios culturais devem ser levados em consideração ao interpretar as palavras da redatora do texto. Um se refere ao apego dos protestantes de cultura religiosa aquinhoada nos Estados Unidos, ao hábito da higiene doméstica e, neste sentido, ser fisicamente saudável, residir em ambiente primado pela limpeza e se dedicar ao trabalho seria um dever do cristão protestante, pois este estaria constantemente sendo observado, em sua conduta, pelo restante da sociedade. Nada mais incômodo para as famílias protestantes diante de seus pares e dos vizinhos do que verem um de seus membros acamados em conseqüência de doenças ligadas à verminose ou picadas de insetos, além da doença em si. Nesse sentido, a autora aconselha que as donas de casa lavassem bem os alimentos, alertando também para os perigos da presença de mosquitos em locais onde esses estivessem sendo preparados.  Ser impecável no trajar e na organização da residência eram sinais de dignidade a serem valorizados tanto perante a sociedade como um todo quanto perante os membros da igreja. Não seguir ou não conseguir por circunstâncias sócio-econômicas as regras desse “bem viver” muitas vezes colocavam os conversos em situações de constrangimento, o que levava os mais incautos a não freqüentar os espaços de sociabilidade das igrejas protestantes ou se adequar ao modo de vida tido como modelar. Outro princípio eminente no texto de Lander é a influência do liberalismo positivista no pensamento protestante do período. Cuidados com a higiene doméstica era um dos requisitos básicos para se constituir uma sociedade ancorada no progresso e civilidade, segundo o positivismo em voga na área médica.

Ao estudar a organização disciplinar das fábricas paulistas dos primeiros decênios do século passado, Margareth Rago chama a atenção para a obsessão dos médicos higienistas pela erradicação sujeira, dos gases nocivos e na defesa de ambientes de trabalhos iluminados. Todo um arcabouço teórico fundamentado na teoria biológica do meio era ovacionado para justificar cientificamente as ações em cujas finalidades se encontrava a necessidade de conformar as populações pobres ao ideário social das camadas dominantes. Nesse sentido, a autora registra que a política de Paula Souza à frente do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, mesmo negando os métodos militares e autoritários até então utilizados nas campanhas de saneamento e vacinação, sustentava-se numa permanente “reeducação e domesticação dos hábitos da população”. Seguindo a teoria pasteuriana, para quem a origem das doenças que assolavam as populações urbanas não se restringiam aos focos de sujeira, mas poderiam emanar de qualquer parte do ambiente, os médicos e representantes do poder público acreditavam que todo indivíduo era portador em potencial de micróbios, especialmente os pobres, devendo o Estado dedicar maior atenção sobre esses e não somente nos focos de contágio (1997, p. 44).

Insistindo na influência do saber médico higienista na condução das políticas públicas na “desodorização do espaço urbano”, Margareth Rago alega que, no investimento em mecanismos de ventilação dos espaços, fossem eles privados ou públicos, estava explícita uma cruzada para formação de indivíduos “fortes e sadios” em moldes conservadores, bem ao gosto da burguesia urbana em ascensão. A autora encontrou no tecido cultural que envolveu o fortalecimento da burguesia européia do século XVIII as justificativas para os apelos de salubridade dos higienistas brasileiros dos anos iniciais do século XX (idem, pp. 167/168).

Esses mesmos  saberes médicos eram assumidos pelas lideranças metodistas, com os textos sobre os cuidados  com o ambiente doméstico, com sua higienização e para com o preparo dos alimentos sendo espalhados em vários volumes de sua literatura. No segundo trimestre de 1939, na seção “Para as donas de casa”, da revista Voz Missionária, era ensinada a maneira correta de se usar o sal e seus benefícios na limpeza da residência, na remoção de gorduras, na restrição do mau cheiro, na extração de ferrugens e na desinfecção de compartimentos sanitários. As normativas desse naipe podem ser apreendidas como instrumentos de consolidação de hábitos higiênicos em espaços públicos e privados em ritmo de mudanças acentuadas (VM, ano X, n. 2, 2o. trimestre de 1939).

 Importantes também para a compreensão das normativas higiênicas em voga nos tempos de virada da Monarquia para a República  são as considerações de Sidney Chalhoub sobre a questão. Percorrendo os discursos de parlamentares voltados para a higienização dos espaços urbanos brasileiros, esse autor afirma estar  em curso nas esferas decisórias do poder, tanto político quanto econômico e social, desde a segunda metade do século XIX, a idéia de que a civilização e a prosperidade do “povo” seria alcançada com a solução dos problemas de higiene pública. A crença de que a higienização da sociedade seria resultado do emprego de técnicas científicas neutras serviu de suporte ideológico para campanhas saneadoras impopulares ocorridas no final do Império e inicio da República. O autor definiu as proposições dos parlamentares e médicos higienistas como um “desejo de fazer a civilização européia dos trópicos”, o que, na prática, significava efetuar uma política pública sem legitimar a participação dos envolvidos no processo de urbanização das cidades (1996, p. 35). Tal qual Margareth Rago, Chalhoub considera os discursos e as campanhas higienistas mais voltadas para os valores da classe média do que para a qualidade de vida das vítimas das doenças que proliferavam no país (idem, p. 168/180).

               Identificados com esse discurso, os metodistas se aventuravam ainda a opinar sobre o consumo de alimentos e sobre o tempo necessário para a sua digestão, num indício do cuidado constante com a preservação da saúde. Coube aos editores do jornal metodista fazer referências aos bons hábitos alimentares a serem seguidos pelos leitores. Os pastores alertavam para os cuidados em não se fazerem refeições com “mente perturbada, ou quando nos achamos tristes ou ansiosos ou quando recebemos um choque ou más notícias”. O alimento, nessas condições, poderia ser pior do que ficar sem comer, porque  a “comida tomada em tais condições só fará mal, formando o veneno no corpo que pode causar doenças; numas pessoas, uma simples dor de cabeça; em outras, congestão e em outras, morte repentina” (19.03.1908, vol. XXIII, n. 12).

                    Esse tipo de preocupação era característico das camadas médias em ascensão social, lembrando sempre que a maioria da população brasileira, formada por trabalhadores braçais, não tinha o privilégio de comer à mesa e não contava com tempo de descanso após a refeição, quando a tinha. Mas, fiéis ao propósito de valorizar a saúde corporal em qualquer circunstância, esses evangélicos espraiavam suas recomendações a todos com os quais mantinham relações, inclusive entre os mais pobres, encontrando, no entanto, maior receptividade entre os grupos em processo de mudança social. O hábito de se alimentar corretamente, com o devido cuidado para com a respiração, foi objeto de um longo artigo elaborado em 1909, pelos clérigos Antônio Cardoso da Fonseca e James Moore Lander, no qual destacaram os problemas de saúde que aos poucos cercavam as populações urbanas:

A boa oxigenação do sangue produzirá milagres fisiológicos. A raça está morrendo por falta de ar. Come-se muito, respira-se pouco. Portanto, a gente está lerda, indisposta, pesada, cansada; necessita de café a toda hora e fumo entre as xícaras, ou recorre aos estimulantes alcoólicos (EC, 13.05.1909, vol. XXIV, n. 19).

                    Um conselho sobre alimentação dado na revista Voz Missionária, em 1940, chama a atenção para os benefícios do consumo de leite na saúde da criança e do adolescente. O ponto focal do texto, extraído das normas estabelecidas pelo Serviço de Fiscalização do Leite e Laticínios do Rio de Janeiro, residia exatamente nos cuidados com o seu armazenamento e seu preparo para consumo. As redatoras lembravam que as vasilhas destinadas para guardar o leite não deveriam ser utilizadas para outros fins; as garrafas a serem trocadas pelo entregador não poderiam ficar ao lado de latas de lixo e ao alcance de animais; nunca fervê-lo em recipientes de alumínio e não tomá-lo aos “tragos” e sim aos “goles”, evitando a coagulação no estômago. Indicativos como esses, abundantes em vários volumes, tencionavam alcançar famílias que experimentavam novos hábitos alimentares provocados pela convivência em espaços urbanos, acelerada nas décadas de 1930 e 1940. As normativas do serviço público para a regulamentação alimentar ecoavam, com receptividade, nos manuais elaborados pelos  metodistas (VM, ano XI, n. 11, 4o. trimestre de 1940).

 O que queremos ressaltar na cruzada de higienização desencadeada por diferentes instituições na Primeira República, além das já constatadas medidas autoritárias e pouco afeitas a participação popular,  é a freqüência de tentativas em  instilar novos hábitos de convivência numa sociedade em que uma parcela maior de indivíduos se preparava para ingressar enquanto produtores e consumidores na ordem social instaurada. Essa freqüência, em curso nas camadas sociais em ascensão, apontava diferentes instituições, agindo, mesmo com estratégias específicas, numa mesma direção: a lapidação do comportamento social. Não se tratava, obviamente, de se comportar bem à mesa ou de se refinar no trato com as pessoas, como exigia a etiqueta de convivência na corte, tal como retratou Norbert Elias, mas de se assegurar um perfil de civilidade a ser demonstrado no asseio do ambiente doméstico, na alimentação saudável, no cuidado com o corpo e do arejamento dos espaços urbanos. Uma sociedade em mutação torna determinados comportamentos uma necessidade de todos, ressalta Elias (1994, vol. I,  pp. 92/95).

 

A postura social ideal

 

                    À defesa de hábitos relacionados a saúde física e higiene dos espaços públicos e privados somavam-se os discursos voltados ao comportamento da mulher e da juventude na sociedade. Nesse sentido,  a revista Voz Missionária, além de ser um espaço literário das mulheres metodistas, ou, como alegavam, da “mulher cristã”, apresentava-se em muitas situações como um manual de bom comportamento. No primeiro trimestre de 1935, um longo texto foi publicado com o título “A Mulher Ideal”, sendo sua construção revelador dos resultados que dele se esperava. Algumas perguntas foram elaboradas, com a sugestão de que cada associada deveria escolher uma delas e fazer as reflexões pertinentes durante uma semana. Logo depois, na reunião semanal das mulheres metodistas realizada nas igrejas ou na  residência de alguma “sócia”, cada pergunta deveria ser comentada e debatida com todo o grupo, sendo que as motivações para os debates estavam inseridas no próprio texto. Objetivando sinalizar para a conduta que se esperava das mulheres metodistas e o desdobramento desta na sociedade, apresentamos o resumo de cada uma das dez regras modeladoras do “caráter cristão feminino”:

 

1 – Desprezar como verdadeira peste moral livros, espetáculos e objetos de arte que retratam os vícios;

2 – Fugir de todo o exibicionismo;

3 – Não unir-se a um indivíduo debochado só para depois sentir alívio no divórcio;

4 – Tratar os serviçais, caso os tenha, com respeito, nunca dando ordens que não sejam  possíveis de serem realizadas, fazendo pesar ainda mais o fardo que carregam;

5 – Cuidar em não maltratar os animais domésticos e os demais, não oferecendo aos filhos “chicotinhos” e “espingardinhas”. Limpar adequadamente os lugares destinados aos animais e não comprar roupas confeccionadas com peles de animais;

6 – Fazer de tudo para ser gentil  nos relacionamentos e se conservar em mais perfeita calma;

7 – Nunca molestar vendedores ambulantes e do comércio em geral, tomando deles um tempo precioso. Pagar o que comprou sempre em dia.

8 – Ser caridosa mesmo para com os que vivem para censurar;

9 – Exaltar a boa ordem, sem a qual as nações caem em desgraça;

10 – Trabalhar o mais que puder na Vinha do Senhor (VM, ano VI, n. 2, 2o. trimestre de 1930).

                    No conjunto, os indicativos de boas maneiras no convívio familiar e social apontam para as exigências que se esperavam das mulheres das camadas médias das cidades em rota de urbanização: cuidado com os entretenimentos, a precaução contra casamentos desvantajosos, novas formas de relacionamento com empregados domésticos, exercício da cortesia, valorização do tempo empregado no trabalho, pontualidade nos compromissos financeiros assumidos, exercício da caridade, estar preparada para o trabalho. Se a modernidade republicana necessitava de novos padrões de comportamento, regras como essas demonstram  a percepção das mulheres metodistas para com o processo civilizatório em curso.

                    A postura de crianças e jovens também estava na alça de mira das lideranças metodistas. O reverendo Afonso Bevilacqüa, por exemplo, movia intensa campanha contra livros considerados “imorais” e que estavam pervertendo a juventude como um todo e as da igreja principalmente. Exigia dos dirigentes do Estado medidas restritivas contra toda literatura e professores que não se pautassem por atitudes moralizadas. Num de seus muitos discursos publicados no Expositor Cristão, vieram à tona as ações que esperava no tocante a hierarquia da igreja: fazer circular nas bibliotecas das escolas metodistas e das escolas públicas “livros morais”; pressionar o poder público a restringir o funcionamento das  tabernas, ou mesmo fechá-las; incentivar a criação de leis restritivas ao fornecimento de bebidas alcoólicas e fumo para menores de 16 anos, fechando os estabelecimentos comerciais que insistissem em tais atos e, finalmente, solicitar e agir politicamente junto aos poderes públicos, tendo em vista a erradicação das casas de jogos (25.05.1911, vol. XXVI, n. 21).  No mesmo jornal, T.H. Lander destacava como ação positiva para a ordem social o papel do esporte e da recreação na vida das pessoas, principalmente daquelas que praticavam intensas atividades laboriosas. A recreação, segundo as palavras da autora, já muito praticada em lugares públicos e escolas  de países de cultura religiosa protestante, deveria compor o cotidiano também dos protestantes brasileiros e da sociedade em geral. Entre as crianças e os jovens, o esporte deveria ser praticado não somente enquanto diversão, porém, como um fator de “saúde e de moral”(01.06.1911, vol. XXVI,n. 22).

               A revista infantil Bem-Te-Vi, cujo primeiro volume foi publicado em 1886, com o nome de “Nossa Gente Pequena”, então sob a responsabilidade do missionário J.J. Ransom, é um outro material rico em informações a respeito de normas reguladoras de condutas requeridas das crianças e valorizadas pelos metodistas. Se, na atualidade, a revista é um instrumento de catequese, publicado para divulgar os princípios religiosos para as crianças nas escolas dominicais, nas décadas de 1930 e 1940, suas redatoras a apresentavam como uma “edição voltada para todas as igrejas cristãs”. Com a finalidade de atender as crianças através de uma linguagem simplificada (porém, com forte apelo moral e voltado para normatização de condutas), em suas páginas, eram transcritos contos infantis, relatos da mitologia grega, poemas de autores nacionais e, principalmente, de autores norte-americanos e ingleses. A catequese, quando havia, ficava restrita a uma coluna chamada de “Pequeno Sermão”, na qual alguns clérigos eram convidados a comentarem textos bíblicos, o que ocorria quase sempre com destaque para os princípios religiosos e culturais valorizados pelos protestantes. A formação da criança em traços evangélicos era ainda instilada por meio de uma infinidade de textos conhecidos do público infantil. Contos de fadas com seus personagens principescos e serviçais, contos indígenas e de populações negras trazidas para o Brasil em regime de escravidão eram transcritos e interpretados segundo critérios morais constitutivos do universo religioso protestante, tendo em vista modelar o comportamento dos pequenos leitores. Obediência, valorização do trabalho e do estudo, cuidados higiênicos e o exercício da caridade eram os temas que mais se repetiam na revista. Para que os pedagogos das igrejas protestantes tivessem o preparo necessário no trato com os temas suscitados, uma outra revista era publicada em conjunto, com os conteúdos alternando-se entre o doutrinamento religioso e as regras de convivência social (Revista Bem-Te-Vi, 1926/1936).

               `A guisa de conclusão, reiteramos ser necessário escapar da tentação da crítica ligeira ao analisar a insistência dos metodistas em encadear diversos temas ao redor da moralidade, pois, se ao pesquisador da atualidade a preocupação com a moralidade soa um tanto quanto uma concepção de mundo restrita, arcaica e conservadora, essa compreensão não deve ser estendida a um período em que defender a conduta exemplar e instilar hábitos de saúde física se apresentava como uma das poucas possibilidades de desenvolvimento social. Possuir um comportamento ilibado, apresentar um corpo saudável e ser respeitado em público sinalizavam um compromisso com um tempo de transformações, ainda que essas residissem muito mais no campo das intenções do que na prática social. Ocupar todo o tempo ocioso, empregar bem o resultado do trabalho, cuidar do corpo por meio do controle dos alimentos ingeridos e da prática do esporte e da higiene podem ser compreendidos como hábitos difundidos, tendo em vista a consecução de uma sociedade obediente, se bem que pouca afeita a estender o conceito da democracia. No entanto, levando-se em consideração os instrumentos possíveis de construção de uma conjuntura cultural diferenciada, então existentes, esses devem ser analisados enquanto sinais de mudanças requeridas pela sociedade.

            O sistema político instalado em 1889 exigia para seu sucesso, na visão de médicos, sanitaristas, educadores e demais integrantes da intelectualidade, comprometidos com os princípios da ‘ordem e do progresso”, a erradicação de mazelas que rodeavam as cidades e outras aglomerações populacionais. Se era exigida uma nova filosofia educacional para o país, uma nova correlação de forças políticas e uma nova mentalidade empresarial, os hábitos e os comportamentos coletivos e individuais deveriam, na mesma medida, ajustarem-se às mudanças propugnadas. Não estamos afirmando que as mudanças econômicas e políticas deflagraram a mudança social, ou que a social influenciou nas econômicas e políticas. Elas não se processaram de forma estanque, elas se deram em conjunto, uma imbricada na outra, como bem defende Norbert Elias, ao analisar sociedades em processos de transformações. Não existe ponto zero nessa questão, afirma esse autor. As mudanças nos hábitos e nas condutas emergiram num leque maior de transformações, no qual elas interagiram com os câmbios verificados na economia e na política. Ao mesmo tempo em que eram impelidas a mudarem, diversas instituições instilaram a mobilidade cultural exigida, seguindo as tendências sociais do período e os princípios que as condicionavam. Nessa cumplicidade social, havia um compromisso tácito para com o sucesso da ordem republicana. Sinais de alerta eram acionados assim que ameaças ao “progresso” pudessem ganhar dimensões descontroláveis. Quanto mais uma sociedade se torna complexa, com padrões de relacionamentos dinâmicos e diferenciados, mais há a necessidade de controle de condutas, não mais calcado no medo e na força física, mas no autocontrole socialmente instilado. As práticas individuais se tornam mais dependentes das regras sociais, contudo, viver se torna menos perigoso (Elias, 1994, vol. II, p. 202).

 

Fontes

 

Jornal “Expositor Cristão”. São Bernardo do Campo: UMESP, Arquivo Histórico da Igreja Metodista, 1900/1940.

Revista “Voz Missionária”. São Bernardo do Campo: UMESP, Arquivo Histórico da Igreja Metodista, 1930/1940;

Revista “Bem-Te-Vi”. São Bernardo do Campo: UMESP, Arquivo Histórico da Igreja Metodista, 1926/1936.

 

Referências bibliográficas

 

CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de (Org.). Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis, Vozes, 1973.

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, vol. 1.

_____________. O processo civilizador: formação do Estado e Civilização. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, vol. 2.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, 3a. ed.

WESLEY, John. Explicação clara da Perfeição Cristã. São Paulo, Imprensa Metodista, 1984.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Doutorando em História na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Assis, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Basto de Albuquerque.

[2] Pesquisa realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.