Identidade Cultural ou Identidade Religiosa – dilema do islamismo no Brasil

Profa. Dra. Vitória Peres de Oliveira – Dep. de Ciência da Religião – ICHL/UFJF

Profa. Dra. Cecília Mariz – Dep. Ciências Sociais/UERJ

 

            O Islã, no Brasil ainda é um grande desconhecido. Apesar de termos alguns estudos sobre a religião em si, o seu credo, seus dogmas e sua história, o Islã como é vivido cotidianamente pelos crentes brasileiros não foi muito estudado ainda. Este trabalho do qual agora vou falar, se baseou numa pesquisa conjunta que realizei com a profa. Cecília Mariz  que começou em 2000 e terminou no primeiro semestre de 2001, ou seja, antes dos atentados de 11 setembro que de alguma forma estão já mudando este cenário, atraindo novos estudiosos sobre o tema.

            Uma das razões de um menor interesse pelo Islã no Brasil possivelmente se deve ao seu pequeno número de adeptos. Segundo o censo do IBGE de 1991, havia uma população de 22.000 muçulmanos. Fontes ligadas às mesquitas, entretanto, nos disseram durante a entrevista que o número era em torno de 500.000 fiéis, ou seja, 0,4% da população brasileira. Desse número 219.300 encontram-se no estado de São Paulo e deles 200.000 estão filiados a Sociedade Beneficente Muçulmana da cidade de São Paulo. No Rio de Janeiro, há em torno de 5.000 muçulmanos em todo o estado. É interessante chamar a atenção para o fato de que após os atentados de Nova Iorque, os números citados pelos jornais brasileiros aumentaram, chegando a falar em um milhão e até em um milhão e meio de fiéis muçulmanos, citando também fontes muçulmanas.

            O número de muçulmanos é pequeno e a visibilidade deles também era pequena até setembro último. Um fato que ocorreu durante a pesquisa ilustrou este desconhecimento entre as camadas mais populares. Como não conhecíamos bem onde ficavam as mesquitas, perguntamos nas imediações tanto da mesquita de São Bernardo como da mesquita do estado, em São Paulo capital, aos transeuntes, motoristas de táxi, comerciantes, onde ficava a mesquita e todos esbarravam na palavra mesquita e perguntavam: “Mesquita, o que é isso?”.

            Além dos acontecimentos de setembro último, o Islã também se tornou mais conhecido a partir da exibição de uma novela numa emissora de TV, que tem entre seus personagens vários muçulmanos. Aliás, o sheik por nós entrevistado, naquele então nos falou dessa consultoria que ele vinha dando para a referida novela. A continuação da pesquisa começará ainda neste semestre para observar as mudanças que aconteceram no campo religioso.

            O Islã no Brasil ainda pode ser considerada uma religião de imigrantes. É possível observar conversões de brasileiros não-descendentes de imigrantes muçulmanos, mas essas conversões são ainda em pequeno número.

            Nossa pesquisa, por se situar no Brasil, um país de tradição católica, porém um estado secular, laico, onde a crença de cada crente é sua opção pessoal, buscou perceber a diferença entre o Islã como crença enquanto opção pessoal, em um estado secular, e o Islã como religião de estado. Como diz a socióloga marroquina Fátima Mernissi (1987), ser muçulmano em um país muçulmano é muito distinto, já que “ser muçulmano é um estado civil, uma constituição, um passaporte, um código de família e um código preciso de liberdades públicas”.  Esta descrição nos mostra como é distinto ser muçulmano onde o Islã não é a religião do estado, e sim uma escolha pessoal em uma sociedade religiosamente plural com poder estatal, onde as esferas política e religiosa se entendem como separadas.

            Este estudo então foi construído a partir da concepção desta distinção e por isso vemos como básicos para a discussão, entender o Islã a partir de dois eixos, um como identidade cultural e outro como identidade religiosa. É este dilema que nos parece fundamental para a compreensão do fenômeno. É um estudo preliminar e exploratório, que ainda está se desenvolvendo. Nesta apresentação vamos tratar principalmente da questão da liderança e apontar para a tensão entre a identidade religiosa e a identidade cultural.

 

            Estudo exploratório de campo

            1. Os líderes - duas tendências

Como um estudo preliminar e exploratório, nossa pesquisa de campo se restringiu a visitas e entrevistas nas mesquitas de São Bernardo (região metropolitana de São Paulo) e de São Paulo, capital (duas mesquitas). Foram também feitas visitas à comunidade do Rio de Janeiro, mas em relação às lideranças e suas tendências, estaremos falando apenas das várias mesquitas de São Paulo. Como foi já mencionado acima, o estado de São Paulo abriga o contingente mais antigo e maior de muçulmanos no Brasil. A mesquita de São Bernardo e a mesquita do centro da cidade de São Paulo, conhecida como Mesquita Brasil, são enormes, vistosas e muito freqüentadas, a mesquita de Sto. Amaro é bem grande e vistosa, mas menos freqüentada.

A população muçulmana se organiza em torno de “Sociedades Beneficentes Muçulmanas”. Essas sociedades servem de sede não só para o culto de sexta-feira (onde se realiza a prece congregacional), mas são também um espaço social e cultural dos seus membros. Algumas dessas sociedades têm suas mesquitas. Apesar do Rio de Janeiro também possuir uma mesquita, situada em Jacarepaguá, ela se encontra fechada atualmente e eles utilizam a sede  da Sociedade Beneficente (localizada num apartamento pequeno) no centro da cidade.

Os grupos visitados são todos sunitas. Há um grupo xiita em São Paulo, mas que ainda não foi visitado, nos restringimos, por enquanto, ao grupo sunita que é o dominante em termos de população. Não há em nenhum dos grupos, uma preocupação intensa com a conversão de novos fiéis, é mais comum encontrar uma preocupação com os muçulmanos mais afastados e principalmente com os jovens filhos de famílias muçulmanas. O proselitismo não é tão característico no Islã, quanto por exemplo, nos evangélicos, ultimamente é que se tornou um pouco mais comum, principalmente através de um trabalho de divulgação escrita promovido por países como a Arábia Saudita. Identificamos, a partir das entrevistas iniciais com os líderes entrevistados em São Paulo, duas tendências: uma mais aberta, no sentido de preocupada em traduzir sua mensagem para o contexto brasileiro atual, e a outra, pelo contrário, mais preocupada em manter a ortodoxia religiosa procurando destacar fronteiras e diferenças em relação à sociedade mais ampla.

O líder de Santo Amaro que associamos à tendência mais aberta, aceita e defende a necessidade do Islã se adaptar às mudanças da sociedade moderna e de se tornar mais brasileiro, entendendo por isto, uma maior flexibilização e necessária adaptação da doutrina. Defende uma participação maior da mulher. Ele organiza um grupo de estudos para os membros da mesquita que se reúne sábado à noite. Dele participam homens e mulheres, principalmente jovens, e segundo esse líder, nessas reuniões ele incentiva a participação das mulheres. Também parece ser mais compreensível com as mulheres em relação ao uso do véu. Segundo seu relato, não há uma preocupação em converter brasileiros. A sua preocupação maior no momento é atrair para a religião, os jovens, filhos de muçulmanos membros da mesquita de Santo Amaro, que estão afastados por motivos diversos.

Esse líder de Santo Amaro entrevistado nos contou que estudou com um sheik egípcio, que veio nos anos 50 para São Paulo. Não cursou, portanto, uma universidade de estudos islâmicos como os outros dois líderes que encontramos em São Bernardo.  O sheik com o qual fez os seus estudos sobre o Corão e  a tradição islâmica, era também, segundo ele nos contou, um homem muito aberto e flexível. Ainda segundo esse nosso entrevistado, nos anos 70, a sociedade beneficente de Santo Amaro recebeu dinheiro de fora (principalmente da Arábia Saudita) para ajudar na divulgação do Islã e na construção da mesquita. Segundo ele, isto em vez de ser algo positivo, foi na verdade um obstáculo para o crescimento do Islã dentro da comunidade muçulmana. Como havia interesses financeiros envolvidos, algumas pessoas ficaram na liderança muito tempo, por causa do benefício que obtinham, e, com isso a comunidade terminou por não participar tanto, não havendo um comprometimento grande por parte dos membros. Agora, que não recebem quase nenhuma ajuda externa, a comunidade está voltando a se envolver mais e se comprometer mais com as atividades do centro. Apesar desta ajuda externa reduzida, ainda há na mesquita de Santo Amaro, um sheik egípcio, enviado e pago pelo governo egípcio, que lidera as preces congregacionais. Esse egípcio quase não falava português e apesar de o termos conhecido não conversamos com ele, assim como não conversamos com o sheik sírio que conhecemos na mesquita de São Bernardo, que também é enviado por um país muçulmano. Como não falam o idioma, os líderes que falam português conversam com quem vai visitar as mesquitas. Segundo nos contou nosso entrevistado, o sheik egípcio já estava perto de voltar ao seu país de origem.

Uma das questões que nos pareceu interessante explorar, na continuação da pesquisa, é o papel desses sheiks que vêm de fora e os novos sheiks brasileiros. Outra questão importante é o papel da língua árabe. Nas mesquitas visitadas em São Paulo, o culto da sexta-feira é feito em árabe, tanto as orações como a prédica. A prédica depois é traduzida para o português, ficando disponível na homepage da sociedade. No centro islâmico do Rio, não tem sheik. Um imã lidera esse centro, e apesar de ser do Sudão e ter sido criado na Líbia, faz sua prédica em português, mas as orações, como em qualquer mesquita, em qualquer lugar do mundo, são feitas em árabe. Para a religião muçulmana a língua árabe é sagrada, é a língua da revelação divina e por isso tem um papel fundamental. Enquanto as comunidades são constituídas principalmente por imigrantes, não há problemas quanto ao seu uso e compreensão, tornando-se, entretanto, um obstáculo ou uma dificuldade para um converso brasileiro, sem ascendência árabe.

O líder da mesquita de Santo Amaro, apesar de também ser imigrante, fala muito bem o português (chegou ao Brasil quando criança). Faz muitas traduções do árabe para o português.  Tendo inclusive traduzido o Corão. Contou-nos que recentemente foi convidado e participou de uma série de  encontros com os pastores Adventistas do Sétimo Dia, em Santo Amaro, e pareceu interessado neste tipo de diálogo inter-religioso. Por seu comportamento e suas idéias sobre o Islã (em sintonia com outras vozes internacionais que vêm se ouvindo e que pregam uma maior abertura), este líder nos pareceu representar uma tentativa de tornar o Islã mais brasileiro, ou seja, mais adaptado ao nosso contexto, portanto mais uma identidade religiosa do que uma identidade cultural.

O outro líder está em São Bernardo (cidade industrial próxima à cidade de São Paulo), defende um Islã mais “ortodoxo”, não vendo necessidade de adaptação. Segue uma linha mais ligada a um Islã internacional, com vínculos com países muçulmanos, como a Arábia Saudita, que apóia os grupos muçulmanos no estrangeiro.

Como ele estudou na Arábia Saudita, quando perguntado se seguia a escola saudita hanbalita (muito ortodoxa), disse que não havia muita diferença entre as escolas e que não havia também necessidade de adaptar-se ao modo de vida brasileiro. Já o líder de Santo Amaro reconheceu a existência das várias escolas e suas diferenças, e disse que aqui no Brasil seria impossível seguir a escola hanbalita, por ser a mais severa, e que todos, mesmo que não o dissessem, seguiam a escola hanafita, a mais liberal dentre elas. Há 4 escolas jurídicas no Islã. Estas escolas regulamentam o uso da shari’a e da sua interpretação (Bausani, 1988).

A sharia, código de comportamento muçulmano, rege a vida do crente na sua relação com Deus, na sua relação com os outros e com a comunidade, abrangendo todos os aspectos da vida de um muçulmano. É entendida como uma lei divina, e constituída por princípios do Corão, hadiths (ditos) e suna (comportamento) do Profeta e consenso dos doutores da Lei, ou teólogos muçulmana. Nos países muçulmanos, a jurisprudência coincide com a aplicação da sharia, que foi instituída no século X, ou seja três séculos após a morte do Profeta Muhammed. Seguir a sharia em um país muçulmano é uma obrigação, já que há uma vigilância e punição para aqueles que não o fazem. Em países não-muçulmanos, seguir a sharia não tem a mesma ênfase, já que o crente não é punido pelo Estado e, portanto, torna-se uma questão mais pessoal e relativa à freqüência do crente na comunidade muçulmana. Dentro do mundo muçulmano há aqueles mais ortodoxos que seguem defendendo a sharia como uma lei divina ainda pertinente e atual, e outros que questionam e reivindicam uma atualização e contextualização desse código de comportamento. O líder da mesquita de São Bernardo defende a sharia como uma lei divina, composta de direitos e obrigações, que deve ser seguida e que, por ser divina, não tem porque ser mudada.

Nesta questão podemos observar como é distinto seguir o Islã, como uma identidade religiosa em uma sociedade laica, e segui-lo em um país muçulmano.

O líder de São Bernardo é um sheik, formado na Arábia Saudita. É de família libanesa, mas nasceu no Brasil, em Mato Grosso.  Até muito recentemente não havia sheiks nascidos no Brasil. Os que haviam, como já mencionamos acima, vinham do estrangeiro para o país com a missão de desempenhar este papel em alguma mesquita por tempo determinado. Muitos, durante sua estada no Brasil, nem chegam a aprender o português, já que convivem basicamente com a comunidade muçulmana que fala árabe.

Esta situação vem mudando. Em São Bernardo, há dois sheiks brasileiros, formados na Arábia Saudita.  Em São Bernardo, possivelmente pela presença desses dois sheiks, funcionam as sedes da União dos Estudantes Muçulmanos do Brasil, do Centro Internacional de Divulgação do Islã e também do World Assembly of Youth, o primeiro dirigido pelo sheik Jihad Hassan Hammadeh e os dois últimos pelo Sheik Ali Abduni. Essas duas instituições são apoiadas por verbas internacionais, principalmente enviadas pela Arábia Saudita. É a World Assembly of Youth que organiza uma peregrinação à Meca, com jovens vindos de todo o mundo e o sheik Ali seleciona os muçulmanos brasileiros que participarão.

Em São Bernardo, há uma grande mesquita de construção recente. Assistimos a prece congregacional da sexta-feira e a prédica foi realizada pelo sheik sírio em árabe e traduzida por um dos sheiks brasileiros. Havia em sua maior parte homens e em muito menor proporção mulheres com crianças. Em geral eram imigrantes ou filhos de imigrantes, comeram juntos após a prece e muitos conversavam em árabe.

Foi lá que aconteceu em abril de 2000, o encontro da Comissão de Estudos para Defesa das Minorias Islâmicas, organizada pela OCI (Organização da Conferência Islâmica), entidade internacional que reúne os países islâmicos do mundo. Este evento reuniu autoridades da OCI e representantes de associações islâmicas do Brasil e da América Latina.

Simultaneamente a essas transformações de estruturas físicas e organizacionais, o Islamismo vivido por esse grupo  se distingue do anteriormente analisado em dois aspectos: 1) um maior dinamismo no processo de difusão da religião em grupos de origem não islâmicas; 2) uma tentativa de reavivar o Islã entre os já religiosos defendendo regras e princípios mais ortodoxos que desviem o mínimo possível do prescrito.

Embora se ressaltasse, nas entrevistas, que o objetivo de divulgar o Islã entre os não muçulmanos era antes para combater o preconceito e evitar mal entendidos gerados pela a ignorância, alguns trechos dos livros apresentados e discutidos conosco por um dos sheiks durante a entrevista tinham um tom mais missionário e um tanto proselitista, parecendo ser elaborado para converter.

Um dos livros tratava de demonstrar que a vinda de Muhammed estava prevista na Bíblia, buscando assim ratificar a verdade da fé, mais do que superar preconceitos ou interpretações mal formuladas dessa tradição religiosa. Nessa mesquita (a de São Bernardo), encontramos um maior número de conversos de origem não islâmicas, inclusive mulheres. Na sede do próprio centro, a secretária era uma brasileira convertida, uma mulher negra de origem não islâmica e que usava o véu (ou seja o lenço na cabeça no estilo muçulmano para ocultar os cabelos).

O uso do véu entre as mulheres e outras práticas, que revelam um islamismo mais ortodoxo, foram mais defendidas nas entrevistas com os sheiks brasileiros de São Bernardo e outros membros da sua mesquita do que com o representante da  mesquita de Santo Amaro. Embora reconhecessem a dificuldade de se adotar no Brasil o estilo de vida e os padrões de comportamento muçulmano como pregados na Arábia Saudita, os entrevistados procuravam sempre mostrar a justeza e importância dessas regras da sharia. Especialmente as regras em relação às mulheres foram bastante defendidas (possivelmente porque as entrevistadoras eram mulheres e provocaram um pouco com questões sobre o tema). Há por parte desse grupo, uma tentativa de maior proximidade com o discurso do Islamismo da Arábia Saudita (considerado mais ortodoxo), que parece ser considerado o ideal.

Um argumento de defesa para o estilo autoritário do governo saudita em relação ao cumprimento da sharia, era afirmar que lá não há violência nem crimes como no Brasil. A segurança para criar a família e a proteção das mulheres foram ressaltadas como vantagens pelas quais vale a pena sacrificar alguns aspectos dessa liberdade individual que temos no Brasil.

Durante as entrevistas formais e as conversas informais com os sheiks brasileiros e com outros de seu grupo, não se ouviu nenhuma crítica ao estilo religioso desse islamismo mais ortodoxo. Em todos os momentos, era enfatizado o discurso oficial de unicidade do Islã, evitando falar de suas diferenças e tensões. Esse desejo de evitar tratar da questão da tensão no campo religioso se revelou também quando, em suas falas e apesar de perguntado, esse grupo se limitou ao mínimo possível qualquer menção às atividades de outras mesquitas (Sto. Amaro, por exemplo) cuja orientação se afasta um pouco da sua.

O único comentário que apontava para uma tensão interna, feito pelos presentes em nossa visita a essa mesquita, partiu de uma mulher, a secretária do grupo, que comentou da dificuldade para uma mulher viver segundo os preceitos dessa fé. Embora não claramente crítico, nem com intenção de contestar nada, esse comentário revelava que para essa mulher convertida estava claro que havia custo maiores para mulheres do que para homens na adoção dessa fé. O mesmo tipo de comentário foi feito também, em conversa informal, por outra mulher convertida (casada com um dos conversos de classe média).

A formação em Escola da Arábia Saudita explica a direção tomada pelos sheiks brasileiros de São Bernardo e pelo grupo que lideram. Relativamente jovens, os dois sheiks apararentam ter menos de 40 anos. Filhos de prósperos comerciantes libaneses de São Bernardo, ambos fazem parte da primeira geração nascida no Brasil, sendo fluentes em português e árabe. Ainda adolescentes, um estava com 15 anos e outro com 17, foram estudar na Arábia Saudita com bolsas de estudo desse país. Com a riqueza gerada pelo petróleo a partir da década de 70, os países árabes, especialmente a Arábia Saudita, passaram a oferecer recursos e bolsas de estudos com a finalidade de apoiar grupos islâmicos e divulgar o Islã no mundo.

Os dois sheiks que fizeram os estudos na Arábia Saudita fazem parte da primeira leva de jovens brasileiros a ganhar bolsas. Eles nos contaram que o número de jovens que embarcou para a Arábia Saudita na mesma época que eles era bem maior. Mas muitos desistiram e voltaram ao Brasil, sem concluir os estudos. A disciplina da escola era muito rigorosa, segundo seus relatos, o que dificultou a adaptação da maioria motivando a desistência de quase todos. Um dos sheiks contou que há inclusive castigos corporais (os alunos apanham quando erram), mas justificou esta questão dizendo que na Inglaterra, até nas Universidades, ainda tinha castigos corporais (!).

No dia de nossa visita à mesquita apareceu um menino de 13 anos entusiasmado com o plano de viajar para Arábia Saudita dentro de 2 anos. Ele já tinha estado no Líbano em outra escola, mas não se adaptou. Um dos presentes lembrou da importância de se ter um pouco mais de idade e maturidade para poder aproveitar a experiência e suportar as pressões de uma disciplina de estudo e trabalho intensa.

Apesar de sua ênfase na ortodoxia religiosa, esse grupo também se mostrou preocupado com o diálogo com a sociedade mais ampla. Foi comentado sobre material impresso (fascículo sobre o Islã em coleção sobre as religiões)  e CD (com chamada para a oração e orações cantadas), com os quais tinham colaborado na elaboração e que estava sendo vendido em bancas de jornais. Também nos contou que estava dando subsídios e consultoria para uma escritora de novela da TV Globo que estava escrevendo uma novela onde alguns dos personagens centrais eram muçulmanos brasileiros. Ainda nos relatou a visita de um grupo de padres (ou seminaristas, não tinha certeza) que queriam conhecer mais sobre o Islã. Os conversos brasileiros são também um certo orgulho da mesquita. Nessa mesquita havia mais conversos do que na de Santo Amaro e na do Rio de Janeiro.  Não temos ainda os dados da mesquita Brasil, na capital paulista, que também tem conversos.

Nossa análise detectou, portanto essas duas tendências, ligadas a duas mesquitas. Em São Bernardo, nos pareceu que há um maior atrelamento da identidade religiosa a uma identidade cultural muçulmana. Em Santo Amaro uma compreensão da religião muçulmana como uma identidade religiosa dentro de um contexto cultural brasileiro.

As visitas e entrevistas às mesquitas Brasil e ao Rio de Janeiro, ainda não foram suficientes para observar se elas seguem uma dessas tendências ou não. De qualquer forma a mesquita Brasil tem na sua diretoria o sheik Ali, da mesquita de São Bernardo, o que nos indica certa proximidade entre as duas mesquitas, entretanto, não entrevistamos as outras lideranças para poder sugerir algo. Teceremos portanto, apenas alguns comentários iniciais sobre a sociedade muçulmana do Rio e a mesquita de São Paulo.

 A mesquita Brasil no centro de São Paulo é uma mesquita enorme. Estava em obras no momento da nossa visita e a reunião foi num salão de reuniões na parte social do edifício. Mesmo assim, na prece congregacional havia mais de 300 homens e nos disseram que esse havia sido um dia com pouca freqüência (em geral em torno de 600 pessoas), devido às obras. A prédica foi em árabe e depois traduzida. Um papel com a prédica traduzida foi entregue na saída. Depois da reunião costumam comer juntos num salão nas dependências da mesquita. Lá tivemos oportunidade de conversar com alguns fiéis e com o editor da revista Al Urubat, um jovem muçulmano, filho de imigrantes, mas não foi possível conversar com o sheik, que nos disseram também ser brasileiro formado na Arábia Saudita. A comunidade está constituída basicamente por imigrantes e seus descendentes. Um dos poucos conversos brasileiros sem ascendência árabe ou muçulmana, com o qual conversamos nos reclamou dessa situação (maioria de imigrantes e seus descendentes), dizendo que os mais velhos não falam com eles (brasileiros), nem sequer os cumprimentam.

No Rio de Janeiro, funciona um centro beneficente e a mesquita encontra-se fechada. Entretanto é importante se ressaltar que apesar de nas três mesquitas visitadas  de São Paulo haver em cada uma, um sheik estrangeiro (egípcio, sírio, financiado ou pelo Egito, ou pela Arábia Saudita), não havia sheiks na comunidade do Rio de Janeiro. Segundo outro estudo realizado (Montenegro 2000), isto se deve a que a liderança dessa mesquita é contra a arabização do Islã, ou seja, a associação do Islã aos árabes, defendendo a postura chamada “islamizante”, que busca desatrelar a religião de uma etnia e um território específico, no caso o árabe.  Há uma diretoria que dirige a Sociedade Beneficente e um imã, Abdul Bagi Sidahmed, que lidera as preces e faz a prédica da sexta-feira. Este imã, apesar de sudanês, fala um português quase sem sotaque algum. Ele imigrou para o Brasil há doze anos, e havia sido educado na Líbia Ele nos explicou a diferença entre sua posição de imã e a de sheik. O imã pode ser qualquer um da comunidade que tenha mais conhecimento da religião e que lidera as preces quando não há um sheik. Um sheik é aquele que domina o conhecimento da religião por ter estudado num centro especializado. Também nos disse que é obrigação de um estado muçulmano fornecer sheiks para as diversas comunidades, mas não se posicionou em relação ao fato de não terem um sheik, nem sobre a questão da arabização ou islamização.

A Sociedade Beneficiente do Rio foi fundada em 1950 e ocupa esta sede desde 1971. O imã está na diretoria desde 1993. Na nossa conversa, defendeu o Islã e criticou os governos islâmicos dos países do Oriente-Médio, dizendo que quase todos são ditaduras ou monarquias e que utilizam o Islã como uma camisa para se justificar e não entrar em colisão com o povo (seu discurso está em sintonia com certa corrente de oposição em alguns países islâmicos).

Assistimos à prece congregacional na sexta-feira, e sua prédica foi muito formal, discutindo o que um muçulmano pode ou não fazer, no caso específico falou das proibições relativas ao cachorro e às estátuas. Falou também em ser um bom caráter, que parece ser uma expressão comum entre eles, já que na mesquita de São Bernardo todo o sermão havia girado em torno do “bom caráter”. Ele também dirige as aulas de árabe que parecem ser uma das atividades responsáveis pela conversão de brasileiros.

            Segundo nos contou, recebe pouco apoio financeiro de fora. Falou também que participou de encontros que reúnem os representantes das sociedades muçulmanas brasileiras, organizados pelo sheik Ali em São Paulo que, segundo ele, têm muito recursos.

            A comunidade do Rio nos pareceu muito pequena e centrada nas suas questões, não tem o peso nem a influência das comunidades paulistas, principalmente a de São Bernardo, que parece atualmente liderar o movimento no Brasil. Apesar de seu estudo ser também relevante, nos parece difícil estudar o Islã no Brasil, sem recorrer ao grupo paulista, que por seu número, antiguidade e peso financeiro tem a liderança.

            Nosso estudo trata também dos conversos, mas devido ao nosso tempo aqui não será possível falar desse tema. Quero apenas dizer que o número é tão restrito que os conversos são em geral lembrados pelos nomes e contados nos dedos.

 

Conclusão

Concluindo, pode-se dizer que o Islã no Brasil ainda é uma religião de imigrantes, que não tem muito interesse em converter membros da população que os circunda. Entretanto, começamos a perceber pequenos sinais de mudança, principalmente no grupo de São Bernardo, ligado aos sheiks brasileiros. Nesse grupo começa a aparecer um interesse maior e isto já se nota na quantidade enorme de material (livros e revistas) impresso para a divulgação do Islã e distribuídos gratuitamente.

Este momento de mudança precisa ser observado e seria interessante saber se isto está ocorrendo em outros países do Cone Sul.

Nossa conclusão é ainda preliminar, por ser esse um primeiro estudo exploratório. Com certeza vemos a necessidade de seguir a pesquisa aprofundando além dos temas aqui abordados, alguns outros aspectos tais como a inter-relação entre as várias comunidades, as tensões internas e a relação das comunidades com as correntes internacionais (como se dá a relação com países como, por exemplo, a Arábia Saudita que financia diversas atividades no meio). Embora a conversão não seja uma prioridade nos grupos visitados acreditamos que seria interessante continuar observando não só os convertidos, mas também aqueles que são atraídos mesmo que não permaneçam.

Nosso objetivo é continuar pesquisando e observando principalmente as relações e tensões do Islã com a cultura brasileira. Como por exemplo, a questão da língua árabe, da mulher, da participação do movimento negro e dos códigos de comportamento.

 

Para terminar, gostaríamos de contar uma situação que ocorreu recentemente na mesquita Brasil, em São Paulo e que tivemos a oportunidade de conhecer um dos seus protagonistas. Esta situação nos pareceu emblemática destas tensões entre o Islã e a cultura brasileira. De certa forma, nos fez pensar em um Islã brasileiro, apesar dele mesmo.

No número comemorativo dos 500 anos do Brasil, a revista Al Urubat (ano 67 n. 764), que se intitulava “A chegada dos muçulmanos no Brasil dos quinhentos anos”, traz uma propaganda de sapatos e bolsas. Isto não seria nenhum problema é claro, já que a revista tem propaganda de vários produtos de comerciantes muçulmanos. O único problema foi que a propaganda trazia visível a perna de uma mulher com saia bem curta, descendo de um automóvel (com os sapatos e bolsa anunciados). O editor quase foi para a rua, segundo me contou um informante. A grita dentro da comunidade foi geral. E a foto da propaganda realmente destoa do resto da revista, onde há inclusive mulheres vestidas com roupas “muçulmanas” completas, ou seja, véu e bata cobrindo todo o corpo.

O interessante é que conversando com o editor, um jovem muçulmano paulista, filho de imigrantes, (e quando conversamos não sabíamos do fato) ele defendia uma visão do Islã bem ortodoxa, sua mãe usa véu, ele acha isso importante, etc. Isso nos fez pensar e nos levou a uma possível interpretação desta situação. E a nossa interpretação é que ele está tão imerso na cultura brasileira circundante, tão acostumado a ver pernas e comerciais com pernas, que passou por ele e ele não percebeu a gravidade da foto do comercial, para a visão de mundo e código de comportamentos da sua própria comunidade e que teoricamente ele defende.

 

BIBLIOGRAFIA CITADA

 

BAUSANI, Alessandro. El Islam en su cultura. México: Fondo de Cultura Económica, 1988 (c. 1980).

MERNISSI, Fátima. El harén político – el profeta y las mujeres. Madrid: Ed. Del Oriente y del mediterráneo, 1987.

MONTENEGRO, Sílvia. Dilemas identitários do Islam no Brasil – a comunidade muçulmana do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, IFCS, UFRJ, 2000. Orient. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.